Empertigado, pescoço erguido,
bico levantado, rabo empinado, o ganso Vitorino descia, amparado pelas fortes
asas, a rampinha que entestava com o velho e pesado portão de ferro, datado de
1874, da Quinta da Bandeira.
Depois, muito emproado, de
olhinhos bem abertos, pata aqui, pata ali, ia pela rua Marquês de Sá da
Bandeira, muito teso, muito vaidoso, muito altivo comprar seu jornal.
Na banca do jornaleiro,
escancarava o largo e espalmado bico amarelo; recebia o matutino, e regressava
rebolando, muito senhor do seu imponente bico.
No portão entreaberto,
refastelado em sólida cadeira, o Sr. Artur Rangel, dono da propriedade, ficava
a ler o diário, enquanto o Vitorino trilhava carreiritos da quinta, em busca de
guloseimas - que eram minhocas e sementes silvestres.
Certo dia o Sr. Rangel, que
chegou a pesar 200 quilos, faleceu.
Vitorino viu chegar
cavalheiros de gravatas pretas, fumos pretos e fatos pretos. Viu senhoras de
chapéus negros, véus negros e vestidos negros. Viu homens de preto, de
semblantes caídos, levar o esquife negro, acompanhados de senhores e senhoras
de rostos tristes, conversando em leves murmúrios.
Assistiu a tudo. Tudo viu,
olhando de lado. Percebeu a tragédia. Não verteu lágrimas, porque os gansos são
como os homens de barba rija: não choram; mas chorou o coração de dor.
Era uma tarde de temporal
desabrido. O vento furioso arrepiava as árvores da quinta, e a chuva que
desabava copiosamente, tamborilava nas pedras do pátio e da calçada.
Esvai-se o cortejo fúnebre.
Cai um silêncio mudo na velha
casa. Tudo se cala: nem os passarinhos gorjeiam, nem os patos grasnam, nem as
galinhas cacarejam. Mergulha tudo numa infinita tristeza; num silêncio pesado.
Só a água, que ensopa a terra, cantava nos córregos e regueiros.
Vitorino embrenha-se numa
hortinha, balanceando pensativamente, até ao fundo da quinta. Volta-se para
velho muro musgoso e permanece, empedernido, parado, como se estátua fosse.
Em vão o chamam. Em vão
queriam que comesse. Em vão lançaram milho ao redor.
Dias depois encontraram-no,
tombado, de patas e pescoço esticado; gelado, encharcado; rijo. Morrera de Amor
e saudade.
Vitorino vivia na Quinta da
Bandeira, em Vila Nova de Gaia. Pertencia ao avô do euro deputado Prof. Doutor
Paulo Rangel.
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