(arte computacional)
Revista literária virtual de divulgação de escritores, poetas e amantes das letras e artes. Editor: Paccelli José Maracci Zahler Todas as opiniões aqui expressas são de responsabilidade dos autores. Aceitam-se colaborações. Contato: cerrado.cultural@gmail.com
quarta-feira, 1 de março de 2017
DÁDIVAS
Por Vânia Moreira Diniz (Brasília, DF)
Quando o meu céu clarear,
Quando as nuvens se condensarem,
Quando a luz aparecer brilhante,
E as estrelas voltarem a cintilar,
Quando entender minha linguagem,
A falar de amor com naturalidade,
E procurar em meu coração a liberdade,
Quando puder olhar para o horizonte,
Quando fechar os olhos suavemente,
E mesmo assim enxergar as imagens,
Que fazem parte da minha história,
Quando sonhar com arco-íris novamente,
Quando entender a ternura de teu olhar,
E segurar tuas mãos retendo o calor,
Verificando que o desejo está próximo
E a razão parcialmente encoberta,
Quando puder sentir em meus olhos
O colorido da natureza absorvente,
E a energia dominar meu inconsciente,
Quando comentar a beleza do planeta,
Quando os elementos naturais me dominarem,
E puder novamente alcançar minha alma,
Tê-la entre as mãos e compreendê-la,
Sem a estranheza de nenhum momento,
Então estarei vivendo copiosamente,
Saboreando o fruto especial e deleitoso,
Usufruindo da vida todos os elementos
E redistribuindo as dádivas que me doaram.
GOLDEN EARRINGS
By Arjun Singh Bahti (Jaisalmer, Índia)
Golden rings in the ears, a thick moustache, and a colorful
turban: this was the image of a perfect man in our society
some years ago.
I had two golden earrings in my ears when I was
studying at Jodhpur University in western Rajasthan. One
day I noticed that whenever I entered the class, a group of
girls always laughed at me. I asked them why. And there
was a very funny reply. They told me that in South India,
earrings are always worn by ladies.
“You look like a girl,” a voice came from the group.
Well, that was a big challenge for a boy who was thinking
he was a perfect man. The girls came from South India, and
they were studying here because their parents were working
in Jodhpur.
After some days I came back home. I told the funny
story of the earrings to my grandparents. I told them what
the South Indians thought about me. My grandfather became a little angry and said, “The
man who does not wear earrings is, of course, a woman.”
Well, I was a perfect man for my grandparents, having
earrings. At the same time, the South Indian girls had a
different idea about me.
I took a decision and removed one of the earrings when
I went back to college. I told my classmates that with a ring
I am a man of tradition and without an earring, I am a
man for a South Indian. But the mistake I made was that I
removed the wrong one.
I had no idea what mistake I had made. After some
months when I was in Jaisalmer, a foreigner called me and
asked me about the ring I had in one of my ears. I told him
the whole story. And then I heard something that made me
run away from the place. I rushed back home and removed
the ring from my ear. Now, either I wear both of the rings
or remove both of them.
I came to know how different cultures have different
meanings for different objects.
OS BRINCOS DOURADOS
Por Arjun Singh
Bahti (Jaisalmer, Índia)
Brincos
dourados nas orelhas, um bigode espesso e um turbante colorido: esta era a imagem
de um homem perfeito em nossa sociedade alguns anos atrás.
Eu
tinha dois brincos dourados nas minhas orelhas, quando eu estava estudando na
Jodhpur University, na parte ocidental do Rajasthan. Um dia, eu percebi que
toda vez que eu entrava na sala de aula, um grupo de meninas sempre ria de mim.
Eu perguntei a elas o porquê. E
tive uma resposta muito engraçada. Elas me disseram que, no Sul da
Índia, os brincos eram sempre usados por mulheres.
“Você parece uma menina”, disse uma voz vinda
do grupo. Bem, aquilo foi uma grande provocação para um rapaz que estava pensando
que ele era um homem de verdade. As meninas
tinham vindo do Sul da Índia e estava estudando aqui porque seus pais estavam
trabalhando em Jodhpur.
Depois
de alguns dias, eu voltei para casa. Eu contei a história engraçada dos brincos
para meus avós. Eu contei para eles o que os indianos do Sul pensavam de mim.
Meu
avô ficou um pouco irritado e disse:“O homem que não usa brincos é, obviamente,
uma mulher.”
Bem,
para os meus avós, eu era um homem de verdade usando brincos. Ao mesmo tempo,
as meninas do Sul da Índia tinham uma ideia diferente a meu respeito.
Decidi
tirar um dos brincos quando eu voltei para a faculdade. Disse aos meus colegas
de classe que, com um brinco, eu era um homem da tradição e, sem um brinco, eu
era um homem para o Sul da Índia. Mas o erro que cometi foi ter removido o
brinco errado.
Eu
não tinha ideia do erro que eu tinha cometido. Depois de alguns meses, quando
eu estava em Jaisalmer, um estranho me chamou e me perguntou sobre o brinco que
eu tinha em uma das minhas orelhas. Eu contei para ele toda a história. E, então, eu ouvi algo que me
fez perder o rumo. Corri para casa e retirei o brinco. Agora, ou eu uso os dois
brincos ou nenhum.
Vi
como diferentes culturas atribuem diferentes significados para diferentes
objetos.
(Traduzido
e adaptado por Paccelli José Maracci Zahler)
UMBERTO ECO (CORDEL)
Por Gustavo Dourado (Taguatinga, DF)
Umberto Eco da semiótica
Da estética medieval
A linguística, a ficção
O contexto cultural
Filosofia em voga
Multiversom literal
Semiólogo, filósofo
Ensaísta, professor
Romances e best-sellers
Na agenda do criador
Grandes livros escreveu
Com impulso inovador
Filho de Giovanna e Giulio
Nasceu em Alexandria
Família de 13 irmãos
No ser a filosofia
Pesquisa e linguagem
O texto na liturgia
1932
Dia 5 de janeiro
No Piemonte italiano
Deu o seu grito primeiro
Nasceu Umberto Eco
Um escritor timoneiro
Literatura na alma
A prosa do candeeiro
A busca da iluminação
O livro foi seu luzeiro
A mente esclarecida
Um artista por inteiro
Mentiras que Parecem Verdades
As Formas do Conteúdo
A Estrutura Ausente
De um escritor graúdo
Que quase tudo conhecia
E que amava o bom estudo
Em Turim, Bologna, San Marino
Destacado professor
Editor de cultura da RAI
Eterno pesquisador
Luminar da sapiência
Foi um livre pensador
Estudou Literatura
Filosofia Medieval
Amava bibliotecas
A essência cultural
Tinha milhares de livros
Verve intelectual
Foi militante católico
Depois veio o ateísmo
PHD em Turim
A língua no ativismo
Crítico da midiocridade
E do vão proselitismo
São Tomás de Aquino
Tese de doutoramento
Análise da cultura de massa
A crítica em seu pensamento
Com a alemã Renate Ramge
Expressou bom sentimento
Antologia de ensaios
"Obra Aberta" publicou
Gruppo 63, contracultura
Barthes o influenciou
"Apocalípticos e Integrados"
Muito bem comunicou
"Tratado Geral da Semiótica"
"Ilha do Dia Anterior"
"O Cemitério de Praga"
Na arte do pensador
"A História da Beleza"
Na senda do escritor
"A Misteriosa Chama da Rainha Loana"
"O Pêndulo de Foucault", "Baudolino"
"Número Zero", última obra
Deu seu toque cristalino
Como Se Faz Uma Tese
Despertou o nosso tino
“Crônicas de uma sociedade líquida"
Obra em preparação
Coletânea de ensaios
Pelo mestre de Milão
Escritos em L'Espresso
Com boa elaboração
Lançou "O Nome da Rosa"
Com fama internacional
Tradução em várias línguas
Referência cultural
Foi filmado por Annaud
Sétima Arte magistral
Prêmio Médicis, Prêmio Strega
Vasto reconhecimento
Doutor em sabedoria
Archote no pensamento
Alquimista da escrita
Reluz o conhecimento.
TORQUATIANA
Por Gustavo Dourado (Taguatinga, DF)
Anjo louco renascente
Anjo barroco cigano
Netuno do oceano
Sertanejo universol
Torquato fenomenal
És poeta soberano
Desfolhaste a
bandeira
Da manhã luz tropical
Estrela d'alva serena
Vespertina musical
Ritmaste a nova era
Iluminando o carnaval
Combateste o arcaísmo
O modismo, a
opressão,
Ao morrer
eternizou-se
Sem medo da repressão
Foste vítima da
tortura
Da angústia da razão
Antropófago criativo
MultiArtista criador
Mago do tropicalismo
Morreu de arte e amor
Morreste abandonado
Pelo sistema jogado
No precipício da
dor...
THE UNITED $TATES OF BRA$YL
Por Gustavo Dourado (Taguatinga, DF)
Lake Side
Quality Hotel
St. Peter
Mercure
Resort
Lake`s
Bob`s
Liberty Mall
Park Shopping
Corporate Center
Plaza Inn
Metropolitan Flat
Designer Center
Star Night
Kongre$$o Natyonal
Personal Banking
Drive thru
Happy hour
Delivery
Coffee Break
Fashion Mall
Manhattan Plaza
The Brazil $A
Onde fica o Central
Park?
Ainda tem Conjunto
Nacional?
SÁBIA SABIÁ
Por Gustavo Dourado (Taguatinga, DF)
Sabiá Sábia...
Sabe como ninguém
Encantar o canto...
Sabiá Sábia
Canta nas palmeiras
Encanto à brasileira...
Ave do Saber
Cantarola Poesia
Sabiave do Ser
Sabiarte do canto
Dádiva da natura
Dádiva da natura
PRISONS
Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)
I
close my eyes at the sight of cars
lined
up on the narrow street
standing
at the red light
those
which carry us
those
which take us and bring us back
the
sight is terrifying as it shows
imprisoned
people
by
closed windows
from
locked doors
the
red traffic light precedes
the
red of the
thrown
body
I
turn a blind eye to fate
in
repetition: I know about the signal
open
to the body
wich
narrowly escapes.
PRISÕES
Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)
Fecho os olhos na visão dos carros
enfileirados na rua estreita
parados no sinal vermelho
os que nos transportam
os que nos levam e nos trazem
a visão aterroriza no que mostra
pessoas encarceradas
em vidros levantados
de trancadas portas
o sinal fechado antecede
o vermelho do corpo
arremessado
não abro os olhos ao destino
em repetições: sei do sinal
aberto ao corpo
que escapa de raspão.
CLARISSE CRISTAL NA REALIDADE LIQUEFEITA
Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Os outros são um detalhe alheio,
A nós mesmo,
As nossas próprias existências
liquefeitas
Parada diante do estúdio de
tatuagens, Clarisse tomou fôlego e por fim decidiu entrar no recinto. Medos,
dúvidas e receios agora eram coisas do passado, se evanesceram no ar com a
claridão da luz do dia. O temor de sentir dores e das marcas indeléveis no
corpo já nãos existiam mais.
— Tu vai ficar ai! Parada por
muito tempo? Espantando a minha fiel clientela! — A voz fluiu melodiosa pelo
ar, apesar do tom grave, das palavras proferidas, que saíram do interior do
estúdio. Clarisse adentrou, e sentei uma estranha sensação de nostalgia a
percorrer-lhe o corpo inteiro, ao ser tragada, pela escuridão da antessala do
estúdio. Ela esqueceu totalmente do celular, último modelo, que a mãe dela lhe
dera de presente há pouco tempo. O aparelho moderno jazia em mil nanos-pedaços,
no meio da rua movimentada. A culpa não foi da jovem bibliotecária, pois o
aparelho vibrou e depois tocou, assim que ela saiu da livraria. Clarisse logo
imaginou a cena toda, Anna Victória ligando, em prantos, para mamãezinha
querida dela, em seguida um conversa breve, chorosa e rápida. E esta última
ligando para a mãe de Clarisse, que liga furiosa para a filhinha rebelde e
malcriada. A moça então põe fim ao melodrama, espatifando o aparelho no meio da
rua com muita força sem sequer atende-lo.
O estúdio de tatuagens era amplo
e moderno, com vários espaços, separados por biombos, estúdios menores dentro
de um grande estúdio. Clarisse longo percebeu, no ambiente maior, uma grande
lousa digital na lateral esquerda do amplo estúdio, vários cavaletes de muitos
tamanhos aqui e ali, notebooks, tabletes de vários modelos e tamanhos, vários
estojos de lápis aquarelável supracolor, muitos sprays de tintas, também de
várias cores, tamanhos, marcas e preços, vários quadros inacabados em vários
movimentos culturais e de escolas de belas artes. Era uma bagunça bem
organizada, ali funcionava uma estranha mistura de escola de belas artes com
estúdio de tatuagens.
— Então o que te trás ao meu
humilde comércio? — Foi Cris, que fez a pergunta de maneira afável. Clarisse já
tinha visto pessoas assim em revistas, filmes, reportagens na TV, em livros ou
mesmo andando na rua mesmo. Cris era uma figura andrógina e estava de pé bem
diante dela. Alta, pele amendoada, com os olhos castanhos rasgados, longos
cabelos lisos e negros reluzentes, usava uma camisa física preta, esmalte negro
despontavam nas mãos, calça larga e tênis de esqueitista. Mas a voz melodiosa e
cheia de vida, a pele sedosa e o sorriso delicado denunciavam era uma mulher.
— Quero fazer uns riscos e furar
as orelhas também, minha querida! Aceita cartão?— Clarisse riu sozinha com a
própria tentativa patética de ser engraçada. — Os outros são um mero detalhe,
alheio a nós mesmo, as nossas existências liquefeitas!— Clarisse leia a frase
em voz alta e de forma imponente, que estava pintada na parede do lado direito
cada palavra estava escrita com cores diferente e de fonte manuscrita. — Coisa
de marqueteiro, metido a poeta frustrado me parece! Qual é o teu nome afinal de
contas?
— Podes em chamar de Cris...
— Já sei: — Sua criada, pronta
para te servir!
— Mais ou menos isso, começa a
falar logo mais especificamente. O que queres minha querida? O que tu pensas em
fazer nesse corpinho que Deus te deu?
— Quero fazer uma tatuagem de
dragão, no meu braço e por um piercing na orelha!
MAIS UMA VEZ CLARISSE CRISTAL
Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Dá-me a tua delicada mão!
Vamos juntos...
Vagar pelo infinito.
***
Vem luz da minha vida!
Quero me perder...
Nos teus olhos verdes infindos!
Mergulhar nos teus trigais
cabelos
***
Quero passear pela infinitude...
Do teu ser imortal
Descortinar-te por inteiro...
Desvendar o teu ser absoluto
Por fim
A nova Clarisse reapareceu na
livraria, parcialmente repaginada. Com o cabelo bem curto e pintado de vermelho
pitanga, deu adeus ao longo cabelo preto e reluzente. Um piercing ornamentando
a orelha direita, uma tatuagem de dragão que cuspia fogo, que nascia no ombro
esquerdo, serpenteava até o fim do antebraço, a pesada maquiagem desaparecer
por completo. O sobretudo preto godê inverno ficou sabe-se lá onde, perdeu-se
para sempre no tempo e no espaço. Contudo, as vestes escuras como a noite,
ainda reinavam soberanas no corpo hialino da jovem bibliotecária, as mesmas que
mais tarde dariam adeus. O fato de sair e voltar pela porta da frente e plena
luz do dia, o sorriso radiante no rosto e o brilho no olhar denunciavam
mudanças profundas e drásticas. Em suma, Clarisse Cristal era uma típica
criatura de noite que invadira o dia em definitivo. Ela
voltou para o ponto de partido, a livraria seu sagrado local de trabalho e
estava com o firme propósito de saber o destino do livros As cinzas das horas.
— Desculpem minhas doces crianças
do leste do Éden, meus pequenos arcanjos e querubinas, mas demorei muito para
retornar do Café ivory tower! — A voz alta e estridente de Clarisse percorreu
toda a livraria. Todos pararam para olhar a moça parada na porta de livraria.
Passado o susto inicial todos voltaram para o que estavam fazendo. A senhora do
cafezinho vestida elegantemente prosseguiu a sua marcha para a copa, o operador
da fotocopiadora abaixou a cabeça, voltou para operar a fotocopiadora de forma
mecânica e sonolenta, o subgerente da livraria, com seu paletó impecável não
presenciou a cena, estava muito ocupado no escritório no piso superior a
receber vendedores, os dignos representantes do mercado livreiro e bem como as
estagiárias e os estagiários que só trabalhavam no período da tarde.
Clarisse viu, a poucos metros
dela, Anna Victória atender um elegante e exótico casal, estavam os três
parados diante balcão de embrulhos para presentes, sem notar da presença dela.
Uma jovem balconista estava de costas, alheia a tudo e a todos, procurando algo
na estante de embrulhos. Os olhos de Clarisse se detiveram no casal, a mulher
uma jovem senhora de meia idade, tinha a pele alvíssima. Uma teuta de cabelos
louros, curtos, seios fartos, olhos verdes bem vivos, uma pequena tatuagem
verde escura no pulso esquerdo, ladeado de duas estrelas de cinco pontas
menores da mesma cor. Clarisse leu o que estava escrito ali, em letra
manuscrita e em itálico: Agnes. Ela estava vestida de forma sóbria e elegante,
usava um tailleur azul escuro em malha com design quadrado muito sofisticado.
Usava um blazer curto em formato arredondado com decote em V, mangas três por
quatro, com pequenas fendas nos punhos, fechamento com três botões, forrado,
saia com cós largo e pregas na frente zíper na lateral. E por fim uma flor
branca pregada na lateral esquerda, entre o ombro e o coração, quebrava um
pouco a clima formal do traje. Clarisse deduziu que ela era uma estudante
estrangeira pós-graduanda em belas artes ou cadeira correlata, pelos trejeitos
da jovem senhora e pelo perfume extravagante e da maquiagem, muito carregada
para uma executiva. Também não passou despercebido, para Clarisse, as olheiras
da jovem senhora, e o olhar vazio e perdido, para o outro ao lado dela. A outra
ponta do casal era senhor de idade indefinida, de pela negra que brilhava na
luz do sol, rosto sem barba e o cabelo cortado à moda militar. Ele trajava um
clássico paletó azul escuro, calça da mesma cor, colete e vestia sapatos marrom
de crocodilo Oxford preto. Clarisse deduziu que se tratava de um estrangeiro
também, um africano provavelmente, um professor visitante, ou mesmo um adido
cultural. O homem era todo sorriso ao ver o embrulhado delicadamente, passando
das mãos da balconista para jovem promotora sênior de vendas.
— Mais uma boa venda amiguinha
Aninha? — Falou Clarisse furiosa para a vendedora sênior, que nada sabia de
literatura, atendendo aquele elegante casal. Ela calculou que era o livro As
cinzas da horas mudando de mãos.
E qual o motivo da Anna Victória
atender os dois pessoalmente e não ela, a resposta veio rápido, o homem
estrangeiro falou em francês com Anna Victória. O homem falava francês com uma
elegância aristocrática, um sotaque de Paris e Anna Victória o respondia com um
sotaque canadense. Ele tomou o livro embrulhado da empacotadora e agradeceu e
logo mostrou para a jovem senhora ao lado dele. A teuta sorriu amarelo para o
elegante senhor africano, e esse engole o sorriso e se vira a moça dos, ele deu
um cartão e fala em francês que Anna Victória logo repassa para a balconista e
traduz o que o homem acabara de falar.
CLARISSE CRISTAL, A CIDADÃ DAS NUVENS
Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Eu
prefiro frases feitas...
Adoro
lê-las… E pensar que são minhas!
Dizer:
- Vou te amar para todo o sempre!
Usando
velhos clichés.
***
Finjo
ser poeta! Às vezes contista...
Nessas
horas uso velhos clichés.
Porque
dizer: - Eu te amo, não é dizer bom dia!
***
Às
vezes leio velhas poesias.
Mas
só às vezes! E penso que são meus...
Aqueles
idílios de saudade...
***
Às
vezes penso ser poeta!
Na
pós-modernidade liquefeita!
A
usar velhos clichés!
Para
poder ousar dizer:
˗Te
amo, não é bom dia!
Agora
é oficial, Clarisse Cristal é a mais nova cidadã das nuvens, pois
passou aquela manhã cinzenta e sonolenta, de outono sem sol, com a
cabeça flutuando em brancas nuvens. Naquela hora de extrema dor e
desespero, o pensamento de Clarisse pairava, na jovem mãe que
acabara de se matricular, em uma academia de musculação, só para
mulheres, era a novíssima fixação da jovem mulher naquele momento.
Como o clube do livro, fora no mês passado, a redecoração completa
da casa no mês anterior, e outros objetos de desejos efêmeros de
quem não tem preocupações mais sérias na vida. Sempre era assim,
a jovem mãe de Clarisse Cristal sempre tinha uma novidade premente e
urgente de tempos em tempos que não chegam vivas ao fim do mês. E a
cada efemeridade premente e urgente trazia junto, como subproduto, o
pouco tempo para se dedicar a filha única. Já o pai, de Clarisse,
era todo e só trabalho, o executivo de meia idade regozijava ao
falar a toda hora, em qualquer lugar e para qualquer um, sobre
planilhas de custos, relatórios, projeções futuras, mercado
internacional, flutuação do cambio, retração da bolsa de valores
e uma série de burocratizamos entediantes para os meros mortais.
Agora
parada diante da estante de livros, usando um pesado avental de couro
cru, usava vestes negras como a noite, a bota cano alto ornamentadas
com as cinco fivelas cromadas, a veste nascia na palma dos pés e ai
esvanecer nos joelhos, a saia preta crazy-in-love Portugal, um
crucifixo, artesanalmente entalhado em madeira, Paolo Santo
envernizada, estava no pescoço e uma blusa justa gothic oco rendas
cor de vinho emoldurava o tronco. E ela ali estática diante da
estante de madeira, repletas de livros velhos, a mais nova cidadã
das nuvens pensou em tudo isso e indo por fim parar de forma
intempestiva no seu amor platônico pelo o motoboy da livraria.
Talvez o estilo de vida dele fosse de fato a real paixão derradeira
de Clarisse. As idas e vindas, com o vento morno beijando o rosto,
sem horários definidos ou mesmo itinerários preestabelecidos por
quem quer que seja. Foi em olhada rápida nas redes sociais do moço,
que Clarisse Cristal pode se deliciar e passar a amar mais ainda,
aquela figura ideal, com os gostos daquele homem recoberto de doces
mistérios, aquela homem um pouco mais velho que ela. A paixão por
fotografia, jardinagem, viagens sem destinos certos, tatuagens
tribais, música romântica e poesia por fim, logo ele, uma pessoa
tão calada no ambiente de trabalho. Isso tudo se passou num estante
pela cabeça sonhadora de Clarisse, a mais nova cidadã das nuvens.
Até uma voz estridente a trazer de volta para a realidade em que
vivia: — Adeus mundo das nuvens, ou melhor, até breve! — Falou
uma voz sonolenta e distante dentro dela, que Clarisse reconheceu
sendo dela mesma, mas com muito dificuldade.
—
Astride... Astride… Astride desce dai guria... E vem cá, sua
sonsa, sua tapada. Olha pra mim mulher!
Não
tinha jeito, fingir estar ocupada já não dava mais, agora era
descer da pequena escada de madeira, se virar e sorrir docilmente,
escutar aquela criatura enfadonha e fútil , como se importasse com
ela e a vida vazia de objetivos que levava. E a palavra cavalgadura
brotou instantaneamente na mente de Clarisse, de forma natural e mais
que espontânea. Ela pensou no fato de trabalhar no lugar há quase
um ano e do enorme e o chamativo crachá em seu peito, escrito com
letras garrafais a nome Clarisse Cristal não fazia diferença para a
anencéfala. E foi quase vinte minutos de um relato monocórdio, sem
sal e muito chato, onde Anna Victória contou em minúcias atômicas
do fim de semana dela em família, que teve a felicidade de conhecer
o novo namorado da própria Anna Victória.
—
Nossa amiga! Que interessante, meu Deus que bom amiga! Simplesmente
fantástico mesmo!
E
a vontade de sair dali correndo, é outro clichê que Clarisse
tentava evitar, mas em vão, pois o sentimento vinham sem perguntar
se poderia vir ou não. E o terraço mais próximo era outra opção
a ser considerado, em momentos como aquele era outro clichê a bem da
verdade que também chegava sibilante. E a cena insólita, de ver do
alto do prédio, o próprio corpo espatifado no asfalto quente e as
pessoas passando ao lado do seu corpo sem vida e em pedaços, sem se
importarem com ela, a deixou com dor de cabeça.
E
entre a família problema, subemprego e vazios colegas de trabalho,
paixonite pelo motoboy e repetidos clichês, ela vivia a vida na
espera de algo novo, não melhor, mas novo e diferente daquela rotina
claustrofóbica e mais que angustiante.
TURA-MALI VIRIDE (ENTRE A LUZ E A ESCURIDÃO)
Por Samuel da Costa
(Itajaí, SC)
É o brilho límpido
Vívido
Do cristalino olhar
Da Ninféia-Alba
***
São os verdes olhos
Luminescências
atrozes
Vorazes
A me fitar
Da sacrossanta diva
Que na densas alturas
vive
***
É sempre
Em tediosas horas
mortas
E é sempre ela
A lasciva negra dor
Pungente
De ser eu mesmo
E mais ninguém
Que me condena
Ao infinito sidéreo
Da equidistância
Mais-que-perfeita
***
É o brilho vago
Límpido
Vívido
Ebúrneo
Do cândido olhar
Da magnifica Alba
***
Sempre ela
E mais ninguém
NO RAIAR DO NOVÍSSIMO DIA
Por Samuel da Costa
(Itajaí, SC)
Felicidade
Em um instante
Em nanossegundos
Fluidos
Cristalinos
Velozes
Vorazes
Fugazes
Que desintegram em
belas letras
***
Felicidade eviterna
Minha siberiana musa
É escutar
A tua arcangélica voz
A segredar-me
Em horas extremas
Impróprias
Inexatas
Ao pé-do-ouvido:
- Já não posso mais
viver sem
A tua presença na
minha vida!
***
Muito breve
amanhecerá
Para nós dois
Sacrossanta ninfa dos
bosques
Saudamos o novíssimo
dia
No sacrário
No átrio
Das nossas vidas sintéticas
E de mãos das dadas
Sagramos o arrebol
Irmanados
Para todo o sempre
SOMOS MAUS E HIPÓCRITAS
Por
Humberto Pinho da Silva (Vila Nova de Gaia, Portugal)
A maioria das pessoas declara: todos
os homens são iguais: raça, religião, posição social, não é motivo de se
apartarem.
Mas será que falam verdade?
Tirando exceções – sempre as
há, – a maioria assevera o que é politicamente correto.
Usam palavras, ritos,
formalismos, que estão na moda. Pretendem enganar-se ou enganarem os outros?
Não sei.
Dizem que não são racistas; e
realmente não são, desde que tudo se passe longe e com os outros…
Mas, se filho ou filha,
pretendem namorar alguém de raça diferente, a atitude muda.
No Brasil, durante anos – e
ainda, infelizmente, acontece, – famílias de raízes orientais, não aceitavam
casamentos mistos.
Recordo – nos anos setenta, – a
mocinha que foi morta pelo pai, porque teimava namorar jovem de religião
diferente da sua!...
Os homens são todos iguais…mas
há, uns, mais iguais do que outros…
No tempo de juventude, tive
colega no liceu, que viu o namorico terminar, porque a mocinha não queria
unir-se ao filho de um polícia…
Ela
pertencia a família de doutores…
Salazar não pode casar com a
filha dos Perestrelos, apesar de ser professor notável, e a menina nutrir
grande afeição por ele, porque era filho do feitor! …
-“ Olha António: nós somos muito
teus amigos, e temos razões para isso. Tu tens sido um rapaz exemplar e a tua
inteligência deve levar-te longe. Isso agrada-nos muito; mas, apesar de tudo,
lembra-te de que para nós hás-de ser sempre o filho do nosso feitor.” – Palavras de D. Maria Luiza, mãe da menina.
(O Príncipe Encarcerado de Barradas de Oliveira)
Quantos descendentes de
humildes cavadores do campo, uma vez obtido grau académico superior, esquecem
os companheiros de infância, que não tiveram igual sorte?
Até filhos,
há, que escondem a origem modesta dos progenitores! …
Cada qual pensa, consoante a
posição que ocupa no xadrez da vida. O povo diz – e diz com razão: “ Se
queres conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão.” E Millôr
Fernandes, definia, formas de governo, deste modo: “ Democracia, é quando
eu mando em você. Ditadura, é quando você manda em mim.”
Amigo meu, dizia que os
comunistas deviam ser muito felizes no amor…porque nunca ouvira dizer, que
distribuíssem – pelo menos parte, – do que lhes saia, na lotaria…Nesse tempo
não havia euromilhões.
O modo de pensar e agir,
depende, quase sempre, das condições económicas, e do lugar que se ocupa na
sociedade.
Os republicanos – nem todos, –
invejam a fidalguia, porque não nasceram em família nobre. Todavia, na
República, há verdadeiras dinastias. “ É a nobreza republicana…”,
dizia, com graça, velha fidalga.
Em suma: asseveramos o que é de
bom-tom afirmar; mas, no íntimo, por trás de cada frase, de cada palavra,
muitas vezes, há outra frase, outra palavra…outro pensamento.
Queremos parecer: democratas,
descomplexados, amigos de todos, e compreensivos; mas – salvo almas santas, –
pouco nos importa o bem ou o mal dos outros…
“ Não preciso dele para
nada!”, declarava jovem
universitário, ao pai, quando este recomendava visitar velho amigo de escola; e
realmente não precisava, porque se precisasse, apresava-se a telefonar, e a
convida-lo para almoçar…
Como
somos egoístas e maus!
O INTELECTUAL É UM ETERNO INCOMPREENDIDO
Por Humberto Pinho da Silva (Vila Nova de Gaia, Portugal)
Para o vulgo, estudar, escrever e pensar, não é
trabalho. Para a maioria das pessoas, trabalho : é o braçal. O do espírito: é
puro passatempo ou divertimento.
Diz Fulton - Sheen, que quando se observa alguém com a
cabeça entre mãos, logo lhe perguntam, se está com dor de cabeça…
Alçada Baptista, certa ocasião, em entrevista realizada
pela RTP, contou que seu antepassado, conheceu velhinha que fora criada de
Herculano.
Quando lhe perguntavam: - “A senhora conheceu o Senhor
Alexandre Herculano? Não conheceu?”
Ria-se muito, e dizia com indiferença:
_ “Conheci, conheci… Era um grande
preguiçoso!…Passava o tempo a ler e a escrever!…”
Meu pai era jornalista. Frequentemente era abordado por
amigos e leitores, que inqueriam quanto ganhava pelos “escritos”.
Como lhes dissesse que fora a remuneração mensal, nada
mais recebia, e ainda colaborava, graciosamente, noutras publicações, pelo
prazer que isso lhe dava. Ficavam admiradíssimos. Pasmados… Como podia passar
horas a escrever sem receber nada!
Ao falar de Herculano, recordei-me da admiração que o
Imperador do Brasil, D. Pedro II, tinha pelo historiador.
Veio visitá-lo na quinta de Vale de Lobos.
O escritor, receou recebe-lo. Em sua opinião, a casa era
demasiadamente modesta para um Imperador.
D.Pedro II insistiu, e foi convidado para almoçar.
Conversaram quase três horas. Tão encantado ficou com o
Imperador, que logo, que pode, o foi visitar. A simplicidade e a cultura de D.
Pedro II ,a todos cativava.
Também o Imperador nunca o esqueceu. Na última visita, que
fez a Portugal, a caminho do exílio, ao passar por Lisboa, depositou uma coroa
de flores, sobre o tumulo de Herculano, no Mosteiro dos Jerónimos.
O Imperador tinha atenções, pouco usuais, em reis do seu
tempo.
Mas, como ia dizendo, o povo admira-se que possa haver,
quem escreva por prazer, e muitos, também não entendem, que haja quem trabalhe
na vinha do Senhor, apenas para servir.
Amiga minha, sabendo que tinha uma filha catequista, na
paróquia da localidade onde reside, inqueriu-me: “Quanto ganha” (!);
porque pensava empregar uma “pequena” como catequista!…
Dizem que Miguel Torga recusou o cargo de ministro, porque
precisava de tempo, para pensar e escrever.
Esse prazer, era, para ele, superior à honra de ser
Ministro de Estado…
Para o povo, o intelectual é um excêntrico, que passa
horas e horas a ler e a escrever, apartado de tudo e de todos.
Mas, como podem compreender o intelectual, se a maioria
trabalha, exclusivamente, por dinheiro, para amealharem sempre e sempre mais?!…
AO LADO DA ESTRELA D’ ALVA
Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)
Quando eu
era pequena, havia aquela estrela no céu, assim, de tardinha, sozinha e
luminosa, e aprendi cedo que se tratava da Estrela Vésper, ou da Estrela
d’Alva, e desse nome eu gostava mais, pois tinha até uma música homenageando
aquele astro mágico, que vinha antes da noite, e que diziam que, de manhãzinha
cedo, quando todas as outras estrelas iam embora, ela continuava lá, firme,
como nenhuma outra.
Pensei muito
nela, hoje, nessa estrela que aparecia dentre morros de verdura e umidade,
quando era criança com tempo para prestar atenção a tudo, principalmente quando
se tratava de astros. Ao longo da vida o tempo foi encurtando e os horizontes
estreitos da minha cidade de morros foram fazendo com que eu prestasse menos
atenção na Estrela d’Alva, até que hoje, bem no dia de hoje, lembrei tanto, de
novo, daquela estrela que tinha até música, e saí para a amplidão da minha
Enseada para verificar se ela continuava lá no mesmo lugar, chegando antes da
noite, encantando o mundo com sua presença luminosa em plena tarde, e foi aí
que veio a surpresa: a Estrela d’Alva já não está sozinha!
Incrivelmente, agora lá no horizonte, no final da tarde, são duas as
estrelas. Julguei entender o que acontecia: aquela um pouco menor, se bem que
tão cheia de luz, era a mesma Estrela d’Alva que via dentre os morros
verde-escuros da minha infância – mas, e a outra? Muito mais luminosa, maior,
irradiando uma luz que tanto era vermelha, quanto terna, quanto doce, lá estava
a nova estrela, e não ficava dúvida sobre de onde vinha: era a estrela chamada
Marisa Letícia que hoje tomou o rumo do céu, que agora sempre vai estar por lá
cuidando do que se passa com esta humanidade que consegue ser tão vil, às
vezes, que a gente nem entende como o universo a suporta. Bom demais saber que
Dona Marisa está lá, agora, livre e solta, sem mais sofrimentos, acima de
qualquer opressão ou maldade que queiram lhe fazer, como aquela dos pedalinhos
para os netinhos – ô gente nojenta que há sob o sol, gente podre, capaz de
fazer maldades desse tipo – se bem que ela também viveu coisas muito
grandiosas, como receber chefes de Estado na sua cozinha de gente humilde para
comer o seu arroz com feijão e bife, e lembro de Fidel Castro, vindo do
continente africano e dando uma paradinha na casa de Dona Marisa, e quando os
repórteres insistiram para que viesse até à porta e dissesse alguma coisa, ele
declarou, sumamente satisfeito: “Que delícia essa comida proletária!”.
Comidinha feita por Dona Marisa, a querida, agora Estrela.
Sou pobre de
palavras quando se trata de falar de Dona Marisa, e então vou me apropriar do
que disse hoje o professor Dr. Jaci Rocha Gonçalves, dentre outras coisas
teólogo e antropólogo, a respeito dessa mulher que tão luminosa foi que acabou
virando estrela: “Uma trajetória de luta, de sabedoria silenciosa, de coerência
e firmeza com os valores que contam. O maior deles: cuidar, como mãe, dos
excluídos. A história reconhecerá no tempo oportuno em que toda a verdade virá à
tona.”
O amor que
eu tinha por ela era de tal monta que passei a maior parte do dia de hoje
chorando dolorosamente – só comecei a me conformar quando a tarde foi para o
fim e a vi, luminosa e encantadora, lá no céu, assim como tinha sido aqui na
terra.
Aumenta,
hoje, a minha galeria de perdas irreparáveis, mas nasceu uma nova estrela!
Querida Dona Marisa, a gente ainda vai se encontrar!
(Enseada de
Brito, 02 de fevereiro de 2017)
FEVEREIRO NA PRAIA GRANDE DO ITAPOCOROY
Por Urda Alice Klueger
(Blumenau, SC)
Eu lembro muito bem: era fevereiro, e eu estava adolescendo naquele tempo
mágico em que amávamos os Beatles e os Rolling Stones. Meu pai tinha um
restaurante lá na Praia Grande do Itapocoroy, mas eu nunca morei lá: ficava em
Blumenau durante os meses de aula, e ia para a praia nos meses de dezembro,
janeiro, fevereiro e julho.
Estar adolescendo naquele tempo mágico em que o mundo fervilhava com uma coisa
totalmente nova chamada Movimento Hippie, e ir passar as férias num lugar
privilegiado como a Praia Grande do Itapocoroy era mais que passar manteiga em
focinho de gato. Se gato fosse, com certeza lamber-me-ia toda de tanta beleza,
de tanto encantamento, de tanto mistério que havia naquele canto onde
morávamos, e na vizinha praia de Armação do Itapocoroy. Eu e minha irmã Margaret
tínhamos nossas obrigações, em tempo de férias, como ajudar nossos pais em
coisas do restaurante (havia manhãs em que eu descascava um saco inteirinho de
batatas!) e outras coisas assim, mas, nas tardes, baldes de plástico em punho,
éramos encarregadas de ir até a vizinha Armação buscar camarão fresco. O
plástico ainda era uma coisa um tanto nova no nosso mundo, e os baldes
coloridos tinham seu charme, e lá íamos nós, vencendo a branda elevação que
separava uma praia da outra, e que, na direção da Praia Grande, era forrada de
uma vegetação baixa, pois o vento Sul, quando batia, cortava qualquer coisa
mais alta que quisesse se criar por ali. E na Armação, deixávamos nossos baldes
coloridos nas salgas (para quem não sabe, salga é o lugar onde se descasca o
camarão), e caíamos na água, por muitas horas, até de tardinha, quando o
camarão pescado pela manhã já estivesse descascado e os nossos dedos estivessem
roxos e murchos de tanto ficar na água.
Tínhamos uma turminha de tomar banho, naquelas tardes, e lembro agora do Nel do
seu Biéli, do Sérgio Pequeninho (que era um grandão, apesar dos seus 12 anos,
que ele mentia dizendo serem 14), e outras crianças e adolescentes dos quais já
não sei mais o nome. Brincávamos muito na água, naquelas tardes de férias, e
mergulhávamos, e quando percebemos, estávamos todos nadando, sem que ninguém
tivesse nos ensinado.
Há milhares de coisas para contar daquele tempo encantado em que o mundo se
movia entre as amarguras de uma guerra do Vietnã e a mensagem de Paz e Amor dos
meigos hippies que nos encantavam. Uma, porém, está muito forte dentro de mim
nesse fevereiro: era o florescimento de todas as ervas, arbustos e capins da
Praia Grande a cada vez que fevereiro chegava.
Era muito lindo! Já disse que havia uma suave subida da Praia Grande, que
descia em Armação, e que ali o vento Sul não deixava se criar nenhuma planta
grande. Tudo era forrado, porém, de capins, matinhos e pequenos arbustos, que
pareciam enlouquecer em fevereiro! Todos aqueles seres vegetais explodiam em
flores e florinhas brancas e prateadas, desde o mais avantajado arbusto até o
mais humilde fiapo de capim, que criava toda uma espiga cheia de florzinhas brancas
grávidas de finas sementes, e tudo ficava tão branco e prateado que se tinha a
ilusão que, em fevereiro, nevava na Praia Grande do Itapocoroy! Eu
primeiro olhava, depois andava no meio daquela loucura da natureza, tão grávida
de beleza quanto as plantas estavam grávidas de sementes, e já de noitinha,
quando o sol se punha lá no fundo daquele aclive nevado, e deixava o céu com
todos os matizes do vermelho, eu olhava pela janela da nossa cozinha e nem
conseguia acreditar que tanta beleza fosse possível. Aquilo me gerava uma
grande angústia – era beleza demais para ser absorvida por uma simples
adolescente que mal entendia da vida.
Há uma cena daqueles tempos que nunca se apagou da minha alma: eu andando
por entre a loucura branca daquele florescimento de fevereiro, cantando a
música de Chico Buarque que acabara de sair, e que começava assim: “Você era a
mais bonita/ das cabrochas desta ala/ você era a favorita/ onde eu era o mestre
sala...” Era o verão de 1967, e eu já sabia que os verões nunca voltavam,
mas também sabia que, nos fevereiros, a Praia Grande do Itapocoroy sempre
ficaria coberta da neve de suas flores de novo. Ou não? Talvez hoje tenham
construído casas por toda ela, e já não tenha sobrado espaço para viverem ali
capins e matinhos que enlouquecem em fevereiro. Tomara
que não! Não é lícito que o Ser Humano quebre a magia dos verões.
(
Blumenau,SC,19 de Fevereiro de 2002)
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