sábado, 1 de julho de 2017

COISAS TENEBROSAS

Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

A minha infância foi muito marcada pelo terror semanal, às vezes até diário, emanado pela Igreja Católica pré-Concílio Vaticano II. Não era nada agradável para uma criança de 5, de 8, de 10 anos ouvir, em quase todos os domingos, o Frei João, nosso padre no Bairro Garcia, em Blumenau, falar sobre o fogo eterno do inferno, sobre o sofrimento requintado e interminável destinado às pessoas que não conquistavam o céu, sobre o Grande Inimigo chamado Diabo.
Havia uma alternativa para não se ir para o inferno, é claro: a Igreja Católica. E ela nos impingia quase o tempo todo a imagem de um Deus sofredor, um Jesus Cristo torturado, pregado a uma cruz, retorcido de sofrimento. Brevemente, em tempo de Páscoa, falava-se de Jesus Cristo ressuscitado, mas o efeito era pequeno, depois de toda uma Quaresma a se curtir com volúpia os atrozes sofrimentos do Filho de Deus. Para que gente comum, como nós, pudesse um dia ter acesso ao maravilhoso céu que Jesus Cristo um dia conquistara para nós, havia que se sofrer nesta vida. E os heróis que a Igreja Católica nos apresentava eram os mártires da fé, pessoas que tinham sofrido horrores sem abjurarem a sua fé. O mais popular era São Sebastião, cuja imagem eu podia ver na Igreja, bonito moço com o corpo todo trespassado de flechas. O que mais terror me causava era São Lourenço, que fora assado numa grelha para que desistisse do cristianismo. São Lourenço, além de não desistir, ainda avisava aos seus algozes quando estava bem assado de um lado, para que o virassem. Com certeza, não eram aquelas imagens adequadas a uma criança.
É claro que com todo aquele clima de terror, eu queria ir para o céu, embora achasse o céu bem enfadonho, com todo o mundo cantando e rezando eternamente, sem tempo para brincar. Mesmo muito pequena, eu já arranjara autonomia para separar as coisas, e tinha compartimentos estanques para a vida religiosa e para a vida real, e a vida real era ótima, e nela eu podia imaginar milhares de histórias lindas, todas sem sofrimento, todas cheias da mais pura felicidade. E ainda era muito pequena quando o Diabo foi personificado no mundo em que vivia: passou a chamar-se Comunismo.
Fez furor, naqueles tempos, o livro de um padre católico que fora preso e torturado na China comunista. Eu já fora alfabetizada e li o livro, e aquele padre passou a representar o ideal moderno de mártir da fé. As pessoas faziam a maior cara de piedade ao falar nos sofrimentos do padre, mas eu tinha a minha secreta opinião pessoal: não gostava nada do sofrimento, principalmente do sofrimento físico. E como, dia a dia se avolumava no Brasil a idéia de que o Comunismo era uma grande ameaça, que o Comunismo poderia tomar conta do nosso País, aumentava o meu pavor de que, chegando o Comunismo, eu iria ser torturada. A Igreja Católica botava a maior lenha na fogueira contra o Comunismo, e a opinião geral era de que chegaria a haver uma guerra.
Sempre fui muito prática. Com a idéia da guerra comunista achei logo uma solução para não ser torturada: quando a guerra começasse, quando os comunistas chegassem, eu iria me esconder. Vivia num vale cercado de morros ainda cobertos de mata nativa, não seria difícil me esconder. Eu levaria para o morro um caixote grande, para dormir dentro, garrafas com água, uma boa quantidade de farinha de mandioca, já que tal farinha poderia ser comida sem ser cozida. Ficaria lá até a guerra passar e os comunistas irem embora, e, assim, não seria torturada. Só que eu não sabia quanto tempo demorava uma guerra: dois dias, cinco dias? Fui perguntar isso, então, à minha prima Hélia, que já era moça de ginásio, a mais sabida de todos nós. Quanto tempo durava uma guerra? Fiquei arrasada com a resposta de Hélia: a última grande guerra durara mais de quatro anos! Como poderia levar para um morro água e farinha para tanto tempo? Prática como sempre fui, pensei numa alternativa: virar comunista para escapar à tortura. Só que aí dava com a cara na parede: virar comunista significava ir mais tarde para o inferno, para uma tortura maior. O que fazer?
Foi tenebroso o que a Igreja Católica fez com as crianças do meu tempo. Foi tenebroso o que as autoridades fizeram, permitindo que se disseminasse entre nossa ignorância tal medo do comunismo. Tive que viver muito, tive que ir a um país comunista (Cuba), para ver o quanto tinham nos mentido. Eu amei Cuba, até escrevi um livro sobre a minha viagem (Recordações de amar em Cuba II) – as pessoas em Cuba são felizes e cultas, muito mais cultas que nós, muito mais cultas que um europeu comum. Encheram a minha infância de terror injustificado, e tenho, ainda, laivos de mágoa por terem me mentido assim.
Blumenau, 02 de junho de 1996.

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