segunda-feira, 1 de outubro de 2018

TIA FRIEDA


      
Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)


              (Para tia Frieda Klueger Klein)

              Sei que tia Wanda nasceu em 1909 e tio Erich era um recém-nascido na grande enchente de 1911. Em algum momento entre essas datas e 1922, que foi quando nasceu meu pai, veio ao mundo tia Frieda, uma das 3 filhas mulheres dos meus avós Klueger.
              Ela era quase que como uma lenda da minha infância: morava no Rio de Janeiro e vinha uma vez por ano, normalmente em dezembro. Num país ainda sem estradas, tenho lembrança do tempo em que vinha de navio, mas depois vinha de avião, que era um grande luxo para aquela época (vou me omitir de falar na década em que viajar de avião deixou de ser luxo, para não ferir suscetibilidades). Sua chegada era uma festa, por seu sotaque diferente, seus lindos sapatos feitos sob medida num sapateiro para comportar seus pés grandes e magros e também pelos presentes que trazia para as sobrinhas, as últimas novidades da moda, como anáguas de pele de ovo recobertas de renda de nylon, coisa mais linda, como ninguém aqui pela província ainda não tinha, sem contar umas inteiramente diferentes balas de coco que se derretiam na boca, inigualável iguaria. Uma vez quis inovar, comprou chocolates suíços, mas viu meninas pequenas reclamando:
              - Tia Frieda, e as balas de coco?
              Nunca mais se esqueceu de trazê-las.
              No decorrer da minha vida fui aprendendo a dela: estimulada pela minha avó, que na juventude vivera experiência semelhante, aos 15 anos respondeu a um anúncio de jornal, que procurava moças distintas e trabalhadeiras para serem governantas na então capital do país, e de Blumenau foi para o Rio de Janeiro, via Itajaí, onde viveu uma aventura que me encantava: como havia que esperar alguns dias pela saída do navio em que viajaria, ficou numa hospedagem onde também estava uma Fraulein Schossland, jovem como ela, e as duas aprontaram uma arte: quando o cervejeiro parou sua carroça diante da hospedagem e entrou para saber se se precisava de mercadoria, elas subiram à carroça e manobraram a mesma até uma outra rua, onde a abandonaram. Voltaram andando calmamente, a tempo de verem o cervejeiro em desespero pelo sumiço do seu veículo. Nunca ninguém desconfiou delas.    
              Não deve ter sido fácil seus primeiros tempos no Rio, e ela contava do seu choro de tristeza nos domingos solitários numa cidade desconhecida. Mas em algum momento apareceu o príncipe encantado, o namorado, tio Sebastião Klein, simpático cavalheiro que foi seu companheiro o resto da vida.
              Viviam-se tempos atrozes, no entanto. Na Europa grassavam as loucuras de Hitler e o antissemitismo, e o tio Sebastião era judeu, coisa que até então não me dizia nada, e eles viviam com muito medo do que poderia vir a acontecer. Quanto mais aprendo a História desse período, mas vejo que eles tinham razão.
              Assim, esperaram o final da Segunda Guerra para casar-se – ela tinha, então, 30 anos, e ele, 45. Devido à instabilidade histórica em que viviam, decidiram não ter filhos. Na casa dos meus pais havia uma bela fotografia desse casamento, bem como cartões postais e outras fotografias do Rio e da vida que levavam num lugar chamado Cosme Velho, que sempre soube que era perto dos Arcos da Lapa, mas aonde nunca fui: quando, afinal, conheci o Rio, tia Frieda e tio Sebastião tinham vindo morar em Joinville/SC. As fotos lá de Cosme Velho a mostram sempre muito elegante, cuidando de uma pequena horta e um pequeno galinheiro. Sei que ela recebia pedidos para fazer esmeradas tortas que deve ter sido daquelas que aprendeu na casa da minha avó, e que tinha seu pé de meia por conta disso.
              Tio Sebastião partiu antes dela, e ela o seguiu um pouco depois, morrendo daquelas mortes ímpares, quando se sente um primeiro mal-estar e, sem sofrimento, sai-se voando para outras plagas.
              Tenho dela uma foto que minha mãe usava sobre a mesinha da sala. Acabei de ver, no entanto, que o tempo e a umidade estão fazendo seu trabalho, e que já há danos na foto. Achei que era tempo de fotografar a mesma e escrever isto – como ela era linda! É como uma despedida, e choro um pouco, aqui, porque o tempo não volta. Nunca poderei esquecer a emoção das chegadas dela, a cada ano, com suas balas de coco e suas anáguas de nylon!
              Herdei uma pequena biblioteca que ela tinha, e foi através dela que conheci Jane Eyre! Quem diria que uma das minhas tias lia romances de tal quilate!

   Sertão da Enseada de Brito, 25 de agosto de 2018.


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