terça-feira, 1 de outubro de 2024

A REVOLTA DOS TOUROS

Por Dias Campos (São Paulo, SP)

 

            De todos os incidentes internacionais de que tive notícia nesses meus longos anos dedicados ao serviço diplomático, nenhum deles se comparou ao que a imprensa madrilena resolveu noticiar como “A revolta dos touros”.

Foi em 1935, um ano depois da entrada em funcionamento de Las Ventas, a maior Praça de Touros da Espanha.

Os espanhóis acorriam como formigas atraídas pelo mel. As touradas popularizavam-se cada vez mais, cresciam em importância e em público, e elevavam os toureiros ao patamar de verdadeiros heróis.

É claro que, de vez em quando, um ou outro desses heróis talvez preferisse ser lembrado como um covarde vivo... Mas como esse infortúnio foi sempre exceção, nenhuma morte jamais inibiu que outros continuassem a buscar a glória nos estimulantes “Olés!”, no tremular dos lenços brancos, nas rosas deitadas aos seus pés, e, se tudo saísse perfeito, no prêmio máximo de levar consigo as orelhas e o rabo do touro decepados na hora.

            Como embaixador, fui naturalmente convidado para a tourada inaugural. E como não pudesse fazer desfeita, confirmei minha presença e para lá me dirigi.

Acabei sentando bem ao lado do embaixador mexicano. E se bem que ele não se cansasse de parabenizar o governo espanhol pela imponência daquela Praça, não deixou de passar adiante, mesmo que a baixa voz, que um dia seu país construiria uma Praça de Touros ainda maior.

Não que já não soubesse como se desenrola uma tourada... Mesmo assim, presenciar um espetáculo desses não foi nem um pouco agradável. A cultura de um povo é sempre respeitável. Mas, como pensa a maioria dos brasileiros, o que vi poderia ser classificado como uma ode à carnificina.

Não vou negar que no último tercio da tourada, onde o toureiro pratica as evoluções com suas capas vermelhas (passes com a muleta), todos ficamos empolgados. Aí se aferem a coragem, a destreza, o bailado.

Mas quando, no primeiro tercio, entraram os picadores, cuja função é atiçar a raiva do touro e minar as suas forças, espetando em seu dorso a ponta das lanças em forma de T, daí senti muita dó, e um tanto de náusea. Aliás, o enjoo só não se intensificou porque foi amenizado pela revolta que em mim crescia. Afinal, enquanto os picadores ferem sem piedade o animal, ficam a salvo em cima dos seus cavalos, que sequer sofrem as chifradas da pobre vítima, pois que envolvidos por lonas grossas que os protegem.

A ânsia tornou a crescer, todavia, quando, no segundo tercio, os banderilleros passaram a agir. A sua performance, sem dúvida mais arriscada que a dos picadores, consiste em encarar o touro de frente, ficar na ponta dos pés, levantar um par de banderillas coloridas sobre as próprias cabeças, apontando os seus espetos para o que ainda resta do lombo, e, como se fora um louva-a-deus, precipitá-las sobre o alvo, cravando-as para deleite dos espectadores e saindo ilesos do revide dos chifres.

O touro, já de língua de fora e com o sangue a escorrer em profusão, nada mais pode fazer senão tentar atacar quem ainda vê caminhando na arena. Reação alucinada de quem talvez pressinta a morte.

Daí retorna o toureiro, que evoluciona mais um pouco para dar o golpe final.

Deitando a capa ao chão, pega a sua espada, fica diante daquele que um dia foi considerado campeão, como a mostrar grande coragem, aponta a lâmina para o seu dorso, e, com um golpe certeiro, crava-a por inteiro até atingir a aorta.

E enquanto o matador passa tranquilo por sua vítima, aguardando os hurras, o touro cospe sangue, convulsiona, e tomba já sem vida.

Bem diferente foi a minha reação se comparada à euforia do meu colega mexicano, bem como a da quase unanimidade dos espectadores.

Pois foi aproveitando dessa extrema alegria que me levantei sem alarde e saí de fininho.

Devo confessar, contudo, que se fiquei enjoado e entristecido pelo resto daquela tarde, continuo carnívoro e um bom garfo. Apenas que, como sabia que o destino daqueles touros era o açougue, tive um pouco mais de respeito às suas memórias antes de devorar um filé à Chateaubriand no almoço do dia seguinte.

            Nos meses subsequentes, recebi convites para assistir a outras touradas; e sempre na Tribuna de Honra. Mas deles declinei com a diplomacia de praxe.

            Tudo teria ficado por isso mesmo, não fosse uma carta que recebi do Brasil...

Meu irmão, que já não via há um bom par de anos e por quem nutro grande estima, escreveu-me dizendo de sua saudade. E como minha sobrinha, Ana, completara nove anos, gostaria de presenteá-la, e à sua esposa, com uma viagem para a Europa, começando pelo país onde o tio Olegário estava acreditado. Terminava perguntando se poderiam ficar hospedados na residência do embaixador.

            A carta apertou este velho coração... Afinal, desde que nossos pais se foram, como não tive a graça de casar e constituir família, meu irmão, minha cunhada e a pequena Ana eram o que de mais feliz me sobrava.

            Nem pestanejei. Escrevi que os receberia com toda a alegria do mundo e que não se preocupassem com a hospedagem, pois a residência do embaixador estaria à sua disposição. E terminava dizendo que viessem o mais rápido possível e que ficassem por pelo menos duas semanas, tempo suficiente para que pudesse mostrar as principais belezas da terra de Cervantes. E despachei pelo malote oficial.

            Quando o navio aportou, fui eu quem primeiro os vi. E esquecendo toda e qualquer reserva a que um embaixador sempre estará sujeito, acenei como fazem os pais à vista do filho que retorna da guerra, tamanha a emoção que de mim se apossava.

            Não sei a quem mais abracei, se ao meu irmão ou cunhada. Só sei que saí com minha sobrinha no colo, cobrindo-a de beijos e elogios, enchendo-a de perguntas e revelando que muitos presentes a aguardavam na embaixada.

            Depois que meus parentes foram devidamente instalados, de abertos os presentes a Ana – confesso que acertei na escolha, pois seus olhinhos brilhavam a cada embrulho desfeito –, e de trocadas as lembranças entre os adultos, passamos ao jantar e aos mais diversos assuntos. Tinha tanto que perguntar, e que contar!... As saudades precisavam ser satisfeitas, não importando se a entrada ou o prato principal esfriassem.

            A pouco e pouco nossos corações serenaram. Foi quando ouvi de Ângelo um pedido que, se era natural a um turista, para mim tornava-se no mínimo espinhoso. Meu irmão queria levar a filha para assistir a uma tourada.

            Minhas sobrancelhas levantaram-se. Afinal, como imaginar minha sobrinha assistindo àquela atrocidade? E fiquei sem saber o que dizer.

            Como percebessem o meu retraimento, meu irmão e cunhada anteciparam-se. Aquele, dizendo que não via nada de mal, pois, ao que sabia, os espanhóis também levavam os filhos às touradas, meninos ou meninas, e ninguém saía traumatizado. E Patrícia, pondo-se veementemente contra, pois uma garotinha de nove anos não poderia presenciar tamanha selvajaria, o que a deixaria, sim, traumatizada para o resto da vida.

            E como apreendesse, pela divergência nos semblantes, que os pais já tinham se debruçado sobre essa questão ainda no Brasil, alternativa não tive senão a de me esquivar desse impasse com um diplomático “Vamos passar ao fumoir?...”

            No dia seguinte, iniciamos nosso passeio pelas alamedas e recantos da capital. E posso me orgulhar de ter sido um cicerone exemplar. Pudera! Além do roteiro não ter sido preparado por mim, e, sim, por minha experiente e prestativa assessoria, minhas credenciais franqueavam lugares antes vedados aos madrilenos, o que deixava eletrizados os meus parentes.

            É verdade que Las Ventas não foram esquecidas. E como nesse dia não houvesse touradas, não achei mal mostrar a Plaza deserta à minha família, na esperança de que meu irmão se satisfizesse em sua grandiosidade e abandonasse a ideia de levar Ana ao mortífero espetáculo.

            Minhas credenciais, como sempre, foram suficientes a que entrássemos. E assim que descortinamos, lá de cima, a “pequenina” arena, lá embaixo, meus parentes ficaram impressionados!

            Até minha cunhada teve que ceder ante a sua imponência, não deixando de comentar, à voz maravilhada, o tamanho da balbúrdia que deveria ser se todos os lugares estivessem ocupados.

            E quando respondi, pelo que me lembrava das conversas que travara, que a capacidade do edifício é para mais de vinte mil espectadores, Patrícia franziu a testa.

            Não deixei de reparar que meu irmão, que segurava Ana no colo, procurava passar à filha como deveria ser empolgante estar no meio de milhares de pessoas arrepiando-se com o touro enfurecido, vibrando com a coragem do toureiro e gritando “Olé!” a uma só voz.

Por óbvio que a pequenina não alcançava tudo o que o pai tentava retratar. No entanto, ela era toda atenção, e empolgação, reações naturais a uma filha ao ouvir o seu primeiro herói.

Patrícia, por sua vez, aproximou-se sorrindo de ambos e, com aquele jeitinho materno que nunca falhava, retirou sem dificuldades a filha dos braços do pai. Em seguida, passou aos contra-argumentos, buscando desfazer qualquer encanto que aquelas cativantes palavras pudessem ter produzido.

Como antevisse um novo impasse, encontrei na brisa que incomodava e nas nuvens que assomavam a saída oportuna. E sugeri suspendêssemos o passeio e retornássemos para a embaixada.

No entanto, como fazia muito tempo que não viajavam, e como estavam encantados com a capital, meu irmão e cunhada não queriam perder um só segundo. Daí que ambos desdenharam da ameaça de chuva e insistiram para que continuássemos. Se a chuva sobreviesse, que nos metêssemos em algum Café e a esperássemos passar, ocupando-nos com suas delícias.

Não me opus, e prosseguimos.

Como aos meus parentes tudo era novidade, e encantamento, nem se deram conta de que a brisa ficava cada vez mais fria. E se desprezaram essa advertência, nem por isso atrasaram a anunciada. E a chuva nos pegou em cheio.

E como ninguém pensara em guarda-chuvas, a alegria por encontrarmos um Café fez-se menos pelo que consumiríamos do que pelo aconchego de um abrigo.

É verdade que os cafés ajudaram a que nos aquecêssemos. E, de igual forma, que os doces e a conversação contribuíram para que o tempo passasse sem tédio.

No entanto, tínhamos nos molhado muito, e nossas roupas não secavam.

E se bem que ficássemos apreensivos quanto à saúde de Ana, dela só ouvimos alguns espirros, e nada mais.

Quanto a Patrícia, porém...

É que minha cunhada já chegara do Brasil com a garganta arranhando. Daí que se a manhã seguinte amanhecia ensolarada, ela seria a única que não a aproveitaria, preferindo sacrificar um dia de passeio, prevenindo-se de uma gripe, a estragar toda a viagem, internando-se em um hospital.

Mas como estivesse bem acomodada na embaixada, sob os cuidados da governanta e do nosso médico particular, Patrícia não quis que Ana e o marido se privassem dos passeios. Que saíssem e depois contassem cada detalhe.

E tanto insistiu, que aceitaram.

Assim, lá fomos nós três pelas ruas de Madri; desta vez, porém, munidos de guarda-chuvas.

Apreciamos fontes e monumentos, entramos em mais uma das muitas igrejas e almoçamos no icônico Sobrino de Botín. – Ângelo prometeu voltar com a esposa tão logo ela se recuperasse.

Mas como insistisse para que fôssemos à minha confeitaria predileta, que ficava a uma boa distância de onde estávamos, tive a ideia de alugar uma charrete, o que divertiria ainda mais minha sobrinha.

Só que a Praça de Touros ficava no trajeto...

Quando a viu de longe, os olhos do meu irmão brilharam. E como ele soubesse, porque já se informara na embaixada, que as touradas aconteciam neste exato momento, não pensou duas vezes e sugeriu que fôssemos assistir a pelo menos uma, antes de fecharmos o dia com chave de ouro, na confeitaria.

Fiquei sem palavras, pois sabia que Patrícia não gostaria que sua filha entrasse.

Minha indecisão, contudo, não perduraria. É que Ana também pedia para que assistíssemos à tourada; e com tal graciosidade que dobraria até o mais austero dos puritanos. E como Ângelo garantiu que assumiria toda a responsabilidade...

Dava para ouvir os “Olés!” já de fora, o que evidenciava a habilidade do toureiro e uma Plaza lotada.

E, com efeito, parecia que Madri inteira elegera o domingo para se comprimir. Não fosse minha credencial, e certamente não passaríamos do portão de entrada.

Rumamos para a área reservada às autoridades, talvez o único lugar em que ainda sobrasse espaço.

Realmente, só havia mais dois assentos disponíveis.

Meu irmão pegou a pequenina no colo para que ela pudesse ver alguma coisa. Sua alegria era visível, não só porque atiçada pela euforia da multidão, mas, também, pela grande expectativa que Ângelo ajudara a construir.

O toureiro, moço ainda desconhecido, exibia um talento promissor. Sua postura era garbosa, e a destreza com que manuseava a capa fazia do touro marionete e levava o público ao delírio.

Ana perguntou ao pai se o touro estava suando muito.

Ângelo não entendeu a pergunta.

A menina insistiu, referindo-se às costas do animal. – ela confundia suor com o sangue que escorria e se espalhava pelo lombo, depois da intervenção dos picadores, e que se evidenciava sob a ação dos raios solares.

 Meu irmão, então, buscando uma justificativa que a contentasse, respondeu que como o touro ia e vinha com muita rapidez, naturalmente suava muito nas costas.

Ocorre que o tercio de matar caminhava para o ápice...

E como a visão a todos aprisionava, ninguém teve a ideia de colocar Ana no chão para que não a presenciasse.

O toureiro perfilou-se defronte ao touro, apontou a espada, e arremeteu com precisão. E saiu para os aplausos...

            Ana acompanhou toda a tragédia, incluindo o consequente cuspir do sangue, o rápido estrebuchar, e o tombar fatal.

            E ao mesmo tempo em que Las Ventas iam ao delírio, Ana abria o berreiro; e não porque tomasse um susto com a troada que explodia, mas, sim, porque sua pureza se chocara com a brutal realidade.

            Ângelo tentou em vão afagar a filha, dizendo, entre outras bobagens, “Não foi nada, não foi nada...” e “Calma, já vai passar...”

Mas ela continuava a soluçar.

Uma das autoridades que estavam ao nosso lado, porque já tivesse extravasado o seu júbilo, percebeu o choro compulsivo e se aproximou preocupada.

Não sei se isso foi decisivo, mas o fato é que ela foi se acalmando, se acalmando... e parou de chorar.

E quando todos já sorríamos, minha sobrinha soltou esta frase, dita na mais pura ingenuidade:

- “Vou pedir pro menino Jesus pra nunca mais o touro morrer.”

Mesmo falando em português, o espanhol compreendeu a frase. E nós três nos compadecemos dela.

O melhor a fazer, portanto, seria irmos embora. E partimos na direção da minha confeitaria preferida.

Lá, a vermelhidão nos seus olhinhos sumiria e daria lugar a um cativante sorriso, pois Ângelo prometera à filha tudo o que ela quisesse, mas com a condição de não contar à mãe o fato de termos ido às touradas.

E não é que a menina aceitou!...

Ana cumpriu o prometido, o que nos deixou bem junto a Patrícia.

No dia seguinte, como já estivesse bem melhor do mal que lhe acometera, minha cunhada não se fez de rogada e foi logo perguntando aonde iríamos.

Como já verificara o itinerário traçado por minha equipe, não titubeei e recomendei o Parque del Retiro. Assim, nós passearíamos, Ana brincaria, e depois almoçaríamos ali perto, em um pequeno restaurante que, segundo as mesmas fontes, preparava a melhor paella da cidade.

Quando caminhávamos às margens do Estanque Grande, o grande lago, demos com um banco convidativo, pois era sombreado e o sol já incomodava.

Ana preferiu correr atrás das pombas, mas com a promessa de não ir muito longe; se bem que Patrícia não lhe desgrudasse os olhos.

Mas quando nossa conversa deu uma pausa, percebemos uma discussão entre dois senhores, sentados em banco próximo.

Pelo que ouvia, comentavam uma notícia de primeira página. Um, revoltava-se, pois não acreditava que o principal jornal da Espanha tivesse a coragem de publicar tamanha asneira; o outro, dele discordava, pois ouvira de fontes confiáveis que o fato tinha realmente acontecido. E gesticulavam, e defendiam os seus pontos de vista. Até que se levantaram e foram embora.

Como o meio-dia se aproximava, Ana já reclamava de fome. E fomos à nossa maravilhosa paella.

Quando chegamos ao restaurante, que estava cheio, mas não lotado, percebemos um alvoroço. É que aquela notícia já se espalhara por toda a cidade e não havia um só homem ou mulher que não a estivesse comentando ou procurando mais notícias nos periódicos.

O maître nos conduziu a uma mesa e não perdeu a oportunidade de perguntar se já sabíamos do acontecido.

E como disséssemos que não, ele, muito solícito, tratou de providenciar um exemplar para que nos inteirássemos.

Porque estivéssemos bastante curiosos, resolvi traduzir rapidamente a chamada para os meus parentes. E li em voz alta estas letras garrafais:

“Criança brasileira suplica a Jesus. E os touros se revoltam!”

 Não preciso dizer que assim que terminei, e me dei conta do que acabara de ler, meus olhos se arregalaram e minha face ficou vermelha.

E também é desnecessário acrescentar que assim que levantei a cabeça, procurando meu irmão, seus olhos e face estavam em pior situação.

Minha cunhada percebeu a nossa reação – se bem que até um cego perceberia... – e, desconfiada, insistiu para que eu lesse toda a reportagem em voz alta.

Ainda bem que Ana, pequenina que era, não deu importância à notícia. Até porque, como estivesse faminta, toda a sua atenção convergia para o jamón cerrado que pedimos como entrada.

Segundo a notícia, que resumirei com minhas palavras, depois da tourada a que tínhamos assistido, estavam programadas outras duas. Ocorre que, assim que o portão foi aberto, ao invés de surgir um monstro enfurecido, como fazem os campeões, Las Ventas viu entrar, a trote manso, um bicho meio apagado, nada atemorizante, e que parou no meio da arena, deitou-se, e lá ficou. E por mais que os peones, os assistentes do toureiro, tentassem açular o animal com suas capas, o touro permanecia impassível, como se recusasse a investir contra quem quer que fosse. Mesmo quando os picadores resolveram intervir para enfurecê-lo, o máximo que ele fazia era mugir de dor, mas não se levantava.

E enquanto o matador testemunhava, estarrecido, a inacreditável cena, as vaias começaram a pipocar e logo tomaram conta de toda a Plaza.  

O jeito foi laçar o animal e puxá-lo para fora da arena com o auxílio das mulas.

O mesmo fato aconteceu ao touro seguinte, o que deixou a arquibancada furiosa, os assistentes, sem saberem o que fazer, e os toureiros, envergonhados e de unhas roídas.

Mas ao mesmo tempo em que o público começava a abandonar Las Ventas, um boato se espalhava mais rápido do que rastilho aceso: Alguém teria ouvido da boca de uma menininha brasileira, que chorava muito, um pedido para que o menino Jesus interviesse e nunca mais permitisse que os touros morressem.

E a reportagem terminava dizendo que, pelo visto, a súplica daquela “santinha” tinha sido atendida.

O silêncio imperou na mesa por alguns segundos. E só foi quebrado porque Ana, que pensávamos não tivesse ouvido nada, soltou esta pérola, enquanto mastigava uma fatia de presunto:

- O menino Jesus meu ouviu. – E deu uma risadinha.

Ainda bem que minha cunhada sempre primou pela compostura. Mas que ela disse ao marido que depois teriam uma bela conversa, ah! isso ela disse!...

Tudo teria acabado neste particular, que tiveram na mesma noite, não fosse o fato de a embaixada ter sido cercada na manhã seguinte...

Sim, centenas de espanhóis cercaram a nossa embaixada, e gritavam para que a “santinha” desfizesse o pedido ao menino Jesus!

Ao que parecia, aquele alto funcionário espanhol, que conosco dividira a Tribuna de Honra, não só deu causa ao boato, estupefato que ficou assim que fomos embora, como, também, deduzindo onde Ana estava hospedada, provavelmente por ter me reconhecido, não se aguentou e forneceu aos jornais a maior das manchetes.

Ficamos sitiados até que a polícia chegasse e fizesse debandar os cidadãos.

Mas isso estava longe de terminar. Como os touros de Las Ventas permaneciam revoltados, inúmeros jornalistas acamparam defronte à embaixada, vários romeiros já tinham cruzado os limites da cidade, a Igreja ameaçou excomungar minha sobrinha, e o Alcaide, em pessoa, requereu a mim uma audiência, e com urgência!

Mas como desgraça pouca é bobagem, é óbvio que essas notícias cruzaram o Atlântico e foram todas bater às portas do gabinete de Sua Excelência, o Presidente da República.

Pois não é que recebi um telefonema do próprio Getúlio Vargas, cobrando-me explicações!

No pé em que estávamos, a presença dos meus parentes, que só deveria trazer alegrias, já se transformara em um terrível pesadelo, um verdadeiro incidente internacional, com cobranças de todos os lados e, o que é pior, com a possibilidade de sermos todos declarados personae non gratae!

E como minha carreira estava por um fio, chutei o meu positivismo, amordacei o meu agnosticismo, e, engolindo o meu orgulho, também fui suplicar – às escondidas, que fique bem claro – à minha sobrinha para que pedisse ao menino Jesus para que tudo voltasse ao normal.

E não é que a meninota revelou-se intransigente, e, desta vez, insubornável!

Mas se até então não acreditava em milagres, fiz questão de agradecer aos céus pela notícia que li semanas depois, e que foi estampada nos principais jornais do país. – Depois de minuciosas análises, uma equipe de renomados veterinários descobriu certa substância química que jamais fizera parte da dieta regular dos touros, sendo essa a verdadeira causa da sua apatia.

Daí que os animais passaram a ser alimentados com o melhor dos fenos, e sob a fiscalização governamental. – A par disso, um inquérito policial foi instaurado para apurar se aquela adulteração foi ou não criminosa.

Passado o período necessário à recuperação, e os touros voltaram a reagir como verdadeiros campeões.

            Quando a poeira abaixou, nem se pensou em almoço ou jantar de despedidas. Meus parentes arrumaram as malas, saíram discretamente da embaixada, e partiram direto para o Brasil. – Aposto que nunca mais pisarão na Espanha.

Os jornais logo se esqueceram da “santinha” e da “Revolta dos touros”; até porque, o generalíssimo Franco ocuparia as manchetes por um bom tempo ainda.

Eu me aposentei três anos depois, e retornei ao Brasil.

            E basta que nós quatro nos reunamos para que aquele episódio volte à tona. E nos desmanchamos de tanto rir.

            No fundo, eu até gostaria que minha sobrinha tivesse mesmo o privilégio de pedir a Jesus e ser por Ele imediatamente atendida. Não digo isso só pelos touros. É que, segundo me confidenciaram amigos do Itamaraty, neste início de 1939, os ânimos lá na Europa andam um tanto beligerantes...

 

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