segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

O CORTE

Por Catarina Denise Rabello Osoegawa (São Paulo, SP)

 

Jacques Lacan, o psicanalista francês conhecido mundialmente pela releitura da psicanálise de Freud, nos apresentou a máxima afirmação “O inconsciente estruturado como linguagem”, agregando as visões da linguística da época, e invertendo a lógica da linguagem proposta por Ferdinand de Saussure. Para Lacan, o significante não corresponde ao significado. Pelo contrário, o significante no discurso psicanalítico se liga a outro significante, que se liga a um outro, e assim indefinidamente, tendo o significado um valor de um conteúdo suposto, mas difícil de ser decodificado por estar vinculado aos mecanismos do inconsciente. Toda a linguagem se expressa em um encadeamento marcado por cortes sucessivos, e a vida nos mostra que suportá-los é uma experiência que temos que enfrentar desde o nascimento.

O corte é ruptura, mas também uma possibilidade de costura. Na convivência que tivemos com nossas avós, tias e mães, apreendemos um saber que não se ensina nas escolas. No delicado ponto em que era necessário religar algo que havia sido rompido, elas estavam lá, totalmente presentes, dispostas a nos ajudar, com a agulha e o fio de linha nas mãos e a palavra de acalanto para acalmar. Talvez esta seja uma das funções maternas mais lindas e afetuosas, o costurar e o religar. Sem o corte não há nascimento...nem renascimento, como nos declaram as religiões, desde as mais antigas, que estão ao nosso dispor, até as contemporâneas que se apressam a conquistar o nosso louvor. Dispomos de uma infinidade de crenças, filosofias e religiões como uma tentativa de alcançarmos alguma compreensão sobre o mistério do binômio vida e morte no decurso da existência. Porém, o que aprendemos com as nossas mães sobre a capacidade de amar e suportar a dor, supera todo o ensinamento proveniente de uma vasta cultura do educador.

Se a dureza do corte que enseja o fantasma da morte nos machuca demais, o recorte nos abre um universo de possibilidades, uma paisagem cheia de cores, de altos e baixos, de ângulos e horizontes infinitos de criação e reciclagem.

Um dos cortes interessantes que podemos divagar é sobre o medo. O medo da morte pode se transformar rápida e sutilmente em medo da vida, já que o viver é pleno de riscos a todo momento. Já dizia Cecília Meireles “Ou compro o sorvete e gasto o dinheiro, ou guardo o dinheiro e não tomo o sorvete”. O medo que nos protege de situações adversas pode se transformar em uma prisão e um enclausuramento tão antinatural quanto uma doença capaz de invadir o corpo, a mente e o coração.

Segundo a OMS, a saúde se define como um estado de bem-estar físico, mental e social, o que significa que a sensação de bem-estar se sobrepõe à ausência de doença. Todo corte, físico, mental ou social implica processos de reconstituição e a humanidade tem se debruçado constantemente a este empreendimento, especialmente no século XXI, quando se deu conta que o corte da natureza foi profundo demais, e as possibilidades de recuperação agora são mínimas e frágeis, frente às ambições do poder e o controle das sociedades que se submetem a ele.

Uma das experiências mais curiosas que tive, foi a observação dos ciclos de vida do bicho-da-seda, experiência rara que tive à oportunidade de criar dentro do meu apartamento quando os meus filhos eram ainda pequenos, sobre todo o processo de metamorfose que este bichinho passa. E aqui se instaura um paradoxo, como compreender a engenhosidade e grandiosidade do fio da seda?


O fio da seda, este fio inquebrável, brilhante, resistente, finíssimo, caríssimo e tão cobiçado, se forma nada mais, nada menos, a partir de uma simples espécie de baba que sai da boca da larva! A secreção contínua que envolve todo o corpo do bicho-da-seda, se cristaliza e permite a construção do casulo com um único fio enrolado que chega a medir mais de mil metros de extensão! Com esta argamassa fina, branca, lisa e delicada da mistura de duas proteínas, a lagarta se recolhe no seu interior e se protege do mundo exterior e de seus predadores por alguns dias. Permanece segura em seu casulo, após ter se alimentado o suficiente para passar esse tempo de metamorfose em reclusão e sem alimento. O alimento d lagarta antes da fase de casulo é muito peculiar, ela sabe o que quer, o aroma das deliciosas folhas de amora a fazem tremer de tanta alegria, quando as encontra em plena fase de crescimento. Recorta as folhas uma a uma, serrilhando-as, como se os dentes muito finos e cortantes, de maneira organizada, seguissem um sentido pré-determinado, sem desviar o olhar para outras folhas aparentemente mais atraentes, mantendo-se obediente ao seu curso natural.



Passados alguns dias, neste processo delicado de metamorfoses sequenciais, a lagarta que se transformou em crisálida e depois em mariposa começa a se sentir sufocada, precisa experimentar uma nova vida, agora modificada. Criou asas e quer voar, viver a vida livremente, degustar muitas e muitas amoras. Talvez descubra que as amoras podem ser mais apetitosas do que as suas folhas. Enfim, sonha com uma vida completamente nova, atraente e prazerosa. Inicia-se um processo de desconstrução. A mariposa, agora um ser adulto e maduro, suavemente vai rompendo o seu casulo em uma única extremidade, e finalmente abre uma janela redonda por onde passa em liberdade. O fio da seda se fragmenta na abertura do casulo e a liberdade da mariposa, por tanto tempo sonhada... se torna tão efêmera! Pelo menos, para nós, seres inteligentes, acreditamos que o tempo de vida da mariposa é por demais breve e fugaz, que pena...ela nem vai poder aproveitar as asas para voar!? Ao sair do casulo, a mariposa se revela em toda a sua exuberância, vestida de branco como uma noiva, recoberta com uma camada fina de penugem aveludada e logo começa a colocar os seus pequeninos ovos em torno de si mesma, aquecendo-os sob as suas asas... e em questão de horas, ela se imobiliza.



Seria esta constatação apenas uma perversidade da natureza? Desta forma o ciclo do bicho-da-seda ilustra um paradoxo fundamental da existência: no exato momento em que a vida recomeça, com a eclosão dos ovos, também ocorre o encerramento do ciclo da mariposa, que morre logo após cumprir a sua missão de perpetuar a espécie. Esta constatação traz à tona uma reflexão sobre a aparente crueldade da natureza, impondo a morte como parte inevitável do processo. Não se trata aqui de uma perversidade. Se observarmos melhor, descobriremos que esta é uma dinâmica essencial e recorrente em todos os ciclos vitais. Os cortes que geram dor são os mesmos tão necessários ao movimento contínuo de renovação e transformação que permeia a vida.

O corte que se embala no reencontro com o renascer pode ser mais sublime do que a vã tentativa de prolongar a vida. Se a mariposa cumpriu tão lindamente a sua missão, não há motivo para exigir dela mais do que foi realizado! Agora exausta após obedecer a todos os ciclos, encerra a sua projeção no mundo através de seus descendentes. Estes vão seguir a trajetória materna na produção dos mais lindos fios de seda. Esses fios, frutos de um trabalho minucioso e natural, carregam uma perfeição e uma delicadeza impossíveis de serem replicadas, mesmo pelas máquinas mais sofisticadas da indústria têxtil. Assim, cada geração perpetua e reafirma o valor da experiência vivida e do legado transmitido de maneira única e insubstituível.

Segundo Freud, o corte representa um dos temas mais intrincados e difíceis de serem elaborados pelo ser humano, demandando, muitas vezes, anos de análise para serem trabalhados. A partir de sucessivas releituras recupero a lembrança de Cecília Meireles, cuja obra se destaca pelo tratamento suave e primoroso de temas profundos.     Novembro, mês de seu nascimento e morte, ficou marcado pelo legado da escritora que tratou de temas tão delicados e sensíveis com o seu dom poético e capacidade singular de traduzir emoções por meio da literatura. Sua frase: “Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira”, revela a resiliência e a força de reconstrução diante dos cortes da vida, reafirmando a possibilidade de renascer mesmo após as rupturas.

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário