Por Catarina Denise Rabello Osoegawa (São Paulo, SP)
Jacques Lacan, o psicanalista francês conhecido mundialmente pela
releitura da psicanálise de Freud, nos apresentou a máxima afirmação “O
inconsciente estruturado como linguagem”, agregando as visões da linguística da
época, e invertendo a lógica da linguagem proposta por Ferdinand de Saussure.
Para Lacan, o significante não corresponde ao significado. Pelo contrário, o
significante no discurso psicanalítico se liga a outro significante, que se
liga a um outro, e assim indefinidamente, tendo o significado um valor de um
conteúdo suposto, mas difícil de ser decodificado por estar vinculado aos
mecanismos do inconsciente. Toda a linguagem se expressa em um encadeamento
marcado por cortes sucessivos, e a vida nos mostra que suportá-los é uma
experiência que temos que enfrentar desde o nascimento.
O corte é ruptura, mas também uma possibilidade de costura. Na
convivência que tivemos com nossas avós, tias e mães, apreendemos um saber que
não se ensina nas escolas. No delicado ponto em que era necessário religar algo
que havia sido rompido, elas estavam lá, totalmente presentes, dispostas a nos ajudar,
com a agulha e o fio de linha nas mãos e a palavra de acalanto para acalmar.
Talvez esta seja uma das funções maternas mais lindas e afetuosas, o costurar e
o religar. Sem o corte não há nascimento...nem renascimento, como nos declaram
as religiões, desde as mais antigas, que estão ao nosso dispor, até as contemporâneas
que se apressam a conquistar o nosso louvor. Dispomos de uma infinidade de
crenças, filosofias e religiões como uma tentativa de alcançarmos alguma
compreensão sobre o mistério do binômio vida e morte no decurso da existência.
Porém, o que aprendemos com as nossas mães sobre a capacidade de amar e
suportar a dor, supera todo o ensinamento proveniente de uma vasta cultura do
educador.
Se a dureza do corte que enseja o fantasma da morte nos
machuca demais, o recorte nos abre um universo de possibilidades, uma paisagem
cheia de cores, de altos e baixos, de ângulos e horizontes infinitos de criação
e reciclagem.
Um dos cortes interessantes que podemos divagar é sobre o
medo. O medo da morte pode se transformar rápida e sutilmente em medo da vida,
já que o viver é pleno de riscos a todo momento. Já dizia Cecília Meireles “Ou
compro o sorvete e gasto o dinheiro, ou guardo o dinheiro e não tomo o
sorvete”. O medo que nos protege de situações adversas pode se transformar em
uma prisão e um enclausuramento tão antinatural quanto uma doença capaz de
invadir o corpo, a mente e o coração.
Segundo a OMS, a saúde se define como
um estado de bem-estar físico, mental e social, o que significa que a sensação
de bem-estar se sobrepõe à ausência de doença. Todo corte, físico, mental ou
social implica processos de reconstituição e a humanidade tem se debruçado
constantemente a este empreendimento, especialmente no século XXI, quando se
deu conta que o corte da natureza foi profundo demais, e as possibilidades de
recuperação agora são mínimas e frágeis, frente às ambições do poder e o controle
das sociedades que se submetem a ele.
Uma das experiências mais curiosas que tive, foi a observação
dos ciclos de vida do bicho-da-seda, experiência rara que tive à oportunidade
de criar dentro do meu apartamento quando os meus filhos eram ainda pequenos,
sobre todo o processo de metamorfose que este bichinho passa. E aqui se
instaura um paradoxo, como compreender a engenhosidade e grandiosidade do fio
da seda?
O fio da seda, este fio inquebrável, brilhante, resistente, finíssimo,
caríssimo e tão cobiçado,
se forma nada mais, nada menos, a partir de uma simples espécie de baba que sai
da boca da larva! A
secreção contínua que envolve todo o corpo do bicho-da-seda, se cristaliza e permite
a construção do casulo com um único fio enrolado que chega a medir mais de mil
metros de extensão! Com esta argamassa fina, branca, lisa e delicada da mistura
de duas proteínas, a lagarta se recolhe no seu interior e se protege do mundo
exterior e de seus predadores por alguns dias. Permanece segura em seu casulo,
após ter se alimentado o suficiente para passar esse tempo de metamorfose em
reclusão e sem alimento. O alimento d lagarta antes da fase de casulo é muito
peculiar, ela sabe o que quer, o aroma das deliciosas folhas de amora a fazem
tremer de tanta alegria, quando as encontra em plena fase de crescimento. Recorta
as folhas uma a uma, serrilhando-as, como se os dentes muito finos e cortantes,
de maneira organizada, seguissem um sentido pré-determinado, sem desviar o
olhar para outras folhas aparentemente mais atraentes, mantendo-se obediente ao
seu curso natural.
Passados alguns dias, neste processo delicado de metamorfoses
sequenciais, a lagarta que se transformou em crisálida e depois em mariposa
começa a se sentir sufocada, precisa experimentar uma nova vida, agora
modificada. Criou asas e quer voar, viver a vida livremente, degustar muitas e
muitas amoras. Talvez descubra que as amoras podem ser mais apetitosas do que
as suas folhas. Enfim, sonha com uma vida completamente nova, atraente e
prazerosa. Inicia-se um processo de desconstrução. A mariposa, agora um ser
adulto e maduro, suavemente vai rompendo o seu casulo em uma única extremidade,
e finalmente abre uma janela redonda por onde passa em liberdade. O fio da seda
se fragmenta na abertura do casulo e a liberdade da mariposa, por tanto tempo
sonhada... se torna tão efêmera! Pelo menos, para nós, seres inteligentes, acreditamos
que o tempo de vida da mariposa é por demais breve e fugaz, que pena...ela nem
vai poder aproveitar as asas para voar!? Ao sair do casulo, a mariposa se revela
em toda a sua exuberância, vestida de branco como uma noiva, recoberta com uma
camada fina de penugem aveludada e logo começa a colocar os seus pequeninos
ovos em torno de si mesma, aquecendo-os sob as suas asas... e em questão de
horas, ela se imobiliza.
Seria esta constatação apenas uma
perversidade da natureza? Desta forma o ciclo do bicho-da-seda ilustra um
paradoxo fundamental da existência: no exato momento em que a vida recomeça,
com a eclosão dos ovos, também ocorre o encerramento do ciclo da mariposa, que
morre logo após cumprir a sua missão de perpetuar a espécie. Esta constatação
traz à tona uma reflexão sobre a aparente crueldade da natureza, impondo a
morte como parte inevitável do processo. Não se trata aqui de uma perversidade.
Se observarmos melhor, descobriremos que esta é uma dinâmica essencial e
recorrente em todos os ciclos vitais. Os cortes que geram dor são os mesmos tão
necessários ao movimento contínuo de renovação e transformação que permeia a
vida.
O corte que se embala no reencontro com o renascer pode ser
mais sublime do que a vã tentativa de prolongar a vida. Se a mariposa cumpriu
tão lindamente a sua missão, não há motivo para exigir dela mais do que foi
realizado! Agora exausta após obedecer a todos os ciclos, encerra a sua projeção
no mundo através de seus descendentes. Estes vão seguir a trajetória materna na
produção dos mais lindos fios de seda. Esses fios, frutos de um trabalho
minucioso e natural, carregam uma perfeição e uma delicadeza impossíveis de
serem replicadas, mesmo pelas máquinas mais sofisticadas da indústria têxtil.
Assim, cada geração perpetua e reafirma o valor da experiência vivida e do
legado transmitido de maneira única e insubstituível.
Segundo Freud, o corte representa um dos temas mais intrincados
e difíceis de serem elaborados pelo ser humano, demandando, muitas vezes, anos
de análise para serem trabalhados. A partir de sucessivas releituras recupero a
lembrança de Cecília Meireles, cuja obra se destaca pelo tratamento suave e
primoroso de temas profundos. Novembro, mês de seu nascimento e morte,
ficou marcado pelo legado da escritora que tratou de temas tão delicados e sensíveis
com o seu dom poético e capacidade singular de traduzir emoções por meio da literatura.
Sua frase: “Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre
inteira”, revela a resiliência e a força de reconstrução diante dos cortes da
vida, reafirmando a possibilidade de renascer mesmo após as rupturas.
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