Por Luiz Eduardo Caminha (Ratones, Florianópolis, SC)
Iaraguaçu, grande mãe d’água, era uma velha índia da aldeia Mbyá, do tronco Guarani-karijós, que habitava a ilha de Santa Catarina nos séculos XVI a XVIII, quando o homem branco chegou. Sua tribo descendia dos últimos sete casais fugitivos dos brancos invasores que massacraram a maioria dos Guaranis-karijós da Ilha da Magia. Antes, os casais refugiaram-se no sul da ilha, donde atravessaram para a Praia da Pinheira. Ali, permaneceram apenas um verão, temerosos de novos massacres. Foram para o Morro dos Cavalos. Anos mais tarde, seus pais e parentes migraram para o local onde vivia. Eram pescadores e não podiam viver longe das águas. Dela tiravam seu sustento em canoas de um pau só de garapuvu. Assentaram-se, ainda na segunda metade do século XVII, às margens da Lagoa de Fora, como chamavam a Lagoa de Santo Antônio onde, na margem oposta, crescera a Vila de Laguna.
Iara, como gostava que a chamassem, vivia numa choupana de paus e telhado de folhas de Indayá, uma palmeira da região. Desde pequena tinha visões que prenunciavam coisas boas ou ruins. Na tribo, estas atribuições eram próprias dos Pajés, mas muitos de seus “irmãos da terra” - como ela chamava os índios – dela se valiam. Também era dada a práticas medicinais e até caciques vinham atrás de seu conhecimento sobre as ervas.
Era o ano de 1838. Sua idade era desconhecida, mas os fatos que narrava ter vivido, como a fundação de Laguna em 1776, supunham que beirava os 75 anos. Sua vida resumia-se aos arredores da choupana e, boa parte do dia, em torno de um fogão de barro construído por um de seus netos. Curava muita gente, dava muitos conselhos e mesmo as autoridades de Laguna e as famílias de posse, de vez em quando, a ela recorriam. Afirmavam que, além das curas, ela mudara a vida de muita gente com seus aconselhamentos e adivinhações.
Ainda menina, fora levada pela mãe para servir a uma família da Vila, mas não sabia viver longe da liberdade da mata. Quase nada fazia que fosse costume dos brancos. Sua Senhora, uma mulher má, surrava-lhe com açoites e com uma espalmadeira “pra aprender as coisas”, como dizia.
Um dia, já moça feita, depois de inúmeras tentativas de fuga, fora mandada embora. A mãe já não vivia mais. Havia morrido de fraqueza nos pulmões, doença trazida pelos brancos. A maioria da aldeia havia deixado o lugar.
Iara foi catequizada aos 30 anos e aprendeu malmente a língua dos brancos misturando palavras com o tupi-guaraní. Era assim que falava com as pessoas que a procuravam. A todos atendia e transmitia sua paz interior, fruto das bênçãos de Nhanderú-etê, o Deus Verdadeiro, em quem acreditava.
Vivia com o neto, um cachorro velho e uma formosa águia cinzenta que ela mesma amestrara. Os moradores de Laguna já haviam se acostumado com sua presença soberana e solitária nos céus. Sempre que ela aparecia com seus estridentes trinados, alguma coisa estava por acontecer. Diziam que era Iaraguaçú que a enviava para lhes avisar. Era corrente a crença: quando a águia de Iaraguaçú plainava silente era época de calmaria e peixe em abundância, mas quando aparecia gritando e fazendo voos rasantes, um tempo ruim estava por vir. Era melhor guardar os animais, não sair para o mar e recolherem-se em suas casas, “prá modo de mal algum assussedê”, como diziam os matutos pescadores. Era dito e feito. Quando alguém desafiava o aviso, alguma tragédia acontecia. Barcos que soçobravam, pessoas que adoeciam – e até faleciam – vítimas de uma molha de chuva, gado que morria por ter ficado fora dos potreiros, enfim, o melhor era se precaver.
Uma das protegidas de Iaraguaçú era Aninha, a quem chamava kunhataí, filha do tropeiro Bentão. Fora Iara quem prevenira Aninha que seu casamento, arranjado pela mãe, com o sapateiro da cidade, não vingaria. Também previra que Aninha iria esposar um aventureiro de outras terras, vindo do mar, um valente que viria junto com a guerra que aconteceria no sul do Brasil e que tentaria criar em Laguna uma outra nação, a República Juliana. Tudo acontecera como dissera. Até a doença do pai, também vítima dos pulmões, quando tomara uma chuvarada no alto da Serra do Dose, assim escrita, com “esse”, em virtude de um estalajadeiro italiano da família Dose que vivia no sopé da escarpada montanha. O pai não aguentara e, como previra Iara, atravessara “manõ yvy ugwa” - o vale da morte, para se juntar a Nhanderú-etê.
Aninha não dava um passo sem consultar a velha índia. Muitas vezes, quando algo lhe afligia, era a própria águia que pousava num galho alto de um garapuvu, perto de sua casa, emitindo trinados peculiares, sinal de que a índia queria lhe falar.
Por isso, Aninha muito chorou quando a velha amiga partiu. Teve um estranho pressentimento naquela manhã, ao ver a chuva incomum com raios e trovões como se fosse uma chuvada de verão.
De repente, o sol se abriu, o vento parou e um duplo arco-íris, que ia em direção à Lagoa de Fora, apareceu no céu.
A passarada, que já vinha se ocupando do acasalamento, no leva e trás de palhas e raminhos para os ninhos, parecia ter sido convocada por um Ser Supremo para uma revoada conjunta. O barulho dos pardais, tico-ticos, sabiás laranjeiras, coleirinhas e dos sanhaçus azuis, se misturavam com o gorjeio das pombas rolas e com o grito agudo dos gaviões. Uma Sinfonia da Natureza. Todos os pássaros seguiam o mesmo rumo, em direção ao final do arco-íris. Nas ruas, cavalos relinchavam como se pressentissem um predador. Cães ladravam. Não um latido comum. Uivavam como se estivessem a sofrer, a chorar.
Foram três minutos daquela algaravia. E uma calada se fez. Um grito agudo, da águia cinzenta que voava acima de tudo, rompeu o silêncio. A atenção se voltou para os lados da Lagoa de Fora.
A notícia correu pela Vila como o vento gelado vindo do Sul. Era trazida por “pena-esvoaçante” o pequeno indiozinho carijó, o neto que vivia com Iaraguaçu.
~ Mãe Iara suspirou! Foi pra terra de seus pais! Seu espírito viaja pra encontrar “Nhanderú etê”.
Aninha montou seu cavalo assim mesmo, no pelo, sem perder tempo de encilhá-lo. Disparou em cavalgada para as bandas de onde, à beira da laguna, jazia no leito de palha, o corpo da amiga. Chorava pelo caminho. Suas lágrimas escorriam pelo rosto e embaçavam-lhe a visão.
Não foi só Aninha a única que para lá se dirigiu. A cidade quase se esvaziara para reverenciar a velha índia. Até o Vigário se abalou, em uma charrete, para lá estar. Embora guardasse alguma ligação com aquela espécie de ocultismo dos silvícolas, ele não tinha dúvidas, ali, naquele corpo, habitara um Anjo. Não! Iaraguaçu não era uma bruxa como insistiam alguns poucos maldizentes. Seu Deus era o mesmo Deus da Cristandade. Quando fazia uma prece a “Nhanderú etê”, estava orando ao Deus Verdadeiro dos cristãos. Quando rogava a “Nhanderu ra'y”, o filho de “Nhanderú etê”, era a Jesus Cristo que evocava. Por isso, e por ser batizada, merecia um enterro cristão, no Cemitério da Vila.
Mas, estas vãs preocupações eram desnecessárias. Iara tinha um testamento. Queria um enterro cristão, mas também, de acordo com a tradição tupi-guarany, ser enterrada no Campo dos Espíritos, aonde muitos de sua tribo jaziam em paz. Manifestou ainda em vida, o desejo de ter os serviços funerais de um padre, mas queria que seus restos repousassem com sua gente.
Aninha estava desolada, mas ao mesmo tempo resignada. Embora triste, ficou ali, velando aquele corpo cuja alma, cujo espírito, já estava no lugar que a vida eterna lhe reservara. Um lugar diferente da choupana humilde e pobre que vivera, embora Iara sempre lhe dera a impressão que era feliz do jeito que vivia, da sorte que “Nhanderú etê” lhe reservara. Talvez porque soubesse que a morte era uma passagem para um lugar de Paz, sem sofrimentos, sem o frio gelado do inverno e o calor insuportável dos verões. Uma vida onde as primaveras e os outonos eram as únicas estações. Lá, onde dizia que seu pai Bentão também estava, Iara seria uma luz a brilhar em todos os momentos.
Hoje, as águias cinzentas são uma raridade. Como os índios, foram enxotadas por seu predador, o homem. Mas o espírito de Iaraguaçu ainda paira sobre a Lagoa. Dizem os mais antigos que quando uma tormenta vinda do sul ameaça os pescadores, basta uma prece: “Iaraguaçu, grande mãe d’água, socorrei-nos!” Logo o vento se dissipa e a calmaria reina absoluta.
Quando uma águia cinzenta ainda é vista plainando silente e graciosa sobre os céus da região, os mais velhos sabem que a pesca do camarão e das tainhas será afortunada.
E ainda se recolhem e se protegem quando ouvem alguma delas, com trinados agudos voarem em rasantes por ali.
* Lenda premiada em 1º. Lugar no 1º. Concurso Internacional de Lendas e Poesia ME - 2010
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