Por Sérgio Moacir Pereira Fontana (Pelotas, RS)
João Cândido era um apaixonado por futebol. Tinha o hábito de escrever para os colunistas das seções de esportes dos jornais da capital e sentia-se muito satisfeito quando um de seus questionamentos ou opiniões caía no gosto do responsável pelas matérias, o que culminava com a publicação do seu texto, na íntegra, e com o seu nome no rodapé. Ficava mais feliz ainda quando outro leitor, ofendido por um ataque eventual a determinado clube ou jogador de futebol, transformava-se em antagonista e respondia, raivoso, a quaisquer das suas cartas, principiando, daí em diante, um debate que se estendia por algumas semanas. Mas isto tudo ele só fazia nas horas vagas. A maior parte do seu tempo era dedicado à Companhia de Trens, empresa pública onde trabalhava como telegrafista. Não cogitava, todavia, jogar futebol na várzea com os colegas de serviço. Esquivava-se, dizendo que tinha uma lesão crônica no joelho, oriunda de jornadas passadas. A verdade é que ele nem sabia chutar direito. Na adolescência ganhara o apelido de “pé-de-tábua” porque só conseguia impulsionar a bola com o lado do pé, e muito mal. Com vergonha das suas limitações técnicas, fugia da prática do futebol como o diabo foge da cruz.
A Copa do Mundo de 1950, que estava sendo realizada no Brasil, era o principal assunto nos bares e cafés do centro da cidade, distante uns 380 quilômetros da capital. João que estava sempre atento às notícias publicadas nos jornais e no rádio, entusiasmava-se quando era solicitado a esclarecer dúvidas ou explicar alguma coisa aos amigos a respeito das seleções envolvidas na competição, os resultados dos jogos e suas conseqüências mais imediatas.
A seleção brasileira, embalada depois de um quatro a zero no México, na abertura da Copa, no Maracanã, foi até a cidade de São Paulo enfrentar a Suíça, no estádio do Pacaembu. O resultado desse jogo já não foi tão bom. Um empate em dois a dois deixou a torcida brasileira - incluindo aí o “seu” João - muito preocupada. Mas o jogo contra a seleção da Iugoslávia, uns dias depois, no estádio do Maracanã, serviu para devolver a confiança ao time e ao povo brasileiro. Uma vitória por dois a zero classificou o Brasil para a próxima etapa do torneio.
Fanático pelo selecionado brasileiro, João Cândido tentava enquadrar os seus dias, ou as suas horas, de folga aos horários dos jogos do Brasil, com o objetivo de poder acompanhá-los em casa, pelas ondas curtas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, já que na repartição onde trabalhava não era permitido esse tipo de regalia. E assim ficou sabendo que as quatro seleções que se classificaram para a fase final jogariam um quadrangular, o que correspondia a três jogos para cada equipe. O escrete que fizesse o maior número de pontos, dentre os quatro, seria declarado campeão.
Os jogos do Brasil, pela ordem, seriam contra a Suécia, a Espanha e o Uruguai. Era só isto o que interessava. Os arrasadores escores obtidos contra os dois primeiros adversários, sete a um, seguido de um seis a um, com direito a gritos de “olé!” por parte da torcida brasileira no Maracanã, creditaram ao Brasil todo o favoritismo e, ao mesmo tempo, aliviaram a tensão do, cada vez mais feliz, telegrafista. O Uruguai também ganhara da Suécia, mas o empate com a Espanha tirava as suas chances de atrapalhar o Brasil. Bastava então aos brasileiros um simples empate contra o próprio Uruguai.
Muitos anos depois, João Cândido afirmou que na tarde de domingo, 16 de Julho, nem se preocupou em sintonizar o rádio. Lembrou ter visto que o cartaz do cine Avenida, no dia anterior ao jogo, anunciava para as quatro e quinze da tarde de domingo a reprise da comédia “Às Voltas com Fantasmas”, com Abbott e Costello. Foi ao cinema, tranqüilo. Um pouco antes de iniciar a sessão, já dentro da casa de espetáculos, ouviu muitos foguetes a pipocar. Suspirou aliviado e concentrou-se no filme. Provavelmente as demais, onze ou doze, pessoas que se encontravam no local, também fizeram o mesmo. Na saída, sob a tênue luz natural do sol poente, encontrou a rua vazia e silenciosa. Nem foguetes, nem carros, nem gente festejando. Disse ainda que durante, pelo menos, um minuto não compreendeu o que estava acontecendo, e revelou a seguir, com lágrimas nos olhos:
- É como se o tempo tivesse parado e levado todo mundo embora, só esqueceu da gente porque estávamos dentro do cinema.
O povo da pequena cidade onde o “seu” João residia, até hoje diz que o tradicional “um minuto de silêncio”, destinado a homenagens póstumas e adotado pelos árbitros antes do início de todas as partidas oficiais de futebol no Brasil, tem sua origem nesse relato de João Cândido.
Sobre o autor:
Sérgio Moacir Pereira Fontana, brasileiro, nascido em 1959 na cidade de Bagé, estado do Rio Grande do Sul, é Bacharel em Meteorologia, Engenheiro Civil e Servidor Público da Universidade Federal de Pelotas, onde atua na área de telecomunicações.
O tempo livre é dedicado, na sua maior parte, a pesquisas históricas e tecnológicas de diversas fontes, as quais lhe garantem subsídios seguros para desenvolver o que mais aprecia que é a arte de escrever. Em seu blog "O Século XX" http://oseculoxx.blogspot.com e no blog "Auxiliadora, Bagé, RS - 1976" http://auxiliadora1976.blogspot.com , como colaborador, exercita esta vontade.
(Originalmente publicado no nº 2 da Revista Cerrado Cultural).
Nenhum comentário:
Postar um comentário