Por Von Steisloff (Brasília, DF)
Na realidade, aquela insistente conversa do meu acompanhante estava enfadonha e conseguia, no máximo, me irritar. Eu não tinha qualquer interesse em saber dos intrincados caminhos da politicagem nacional adotados pelo senhor Ronald Reagan para escolher os seus secretários. Mas o acompanhante tinha todas as características de um neurótico de guerra com uma acentuada mania de perseguição. Ele tinha alcançado um elevado grau acadêmico com um aperfeiçoamento profissional invejável. Já ultrapassava dos quarenta anos de idade e continuava na situação de um medíocre técnico. As funções da alta direção eram sempre destinadas aos bajuladores escolhidos pelos políticos. O maluco, espumando de raiva, despejava torrentes de palavras ofensivas ao presidente dos Estados Unidos da América e ia conduzindo perigosamente o veículo enquanto percorríamos as longas fileiras de milhares de pés de uma fruteira cor de sangue.
Era o mês de julho e o hemisfério Norte parecia mais uma grande fornalha. Embora ainda fosse seis horas da manhã, o sol era abrasador. Meu amigo de poucos momentos resolveu estacionar o veículo à sombra de uma das belas árvores carregada de frutas. Perguntou-me se eu gostava daquela fruta. Para surpresa minha, eram nectarinas. Pelo tamanho da fruta eu tinha pensado que era maçã. Da minha parte, aquilo demonstrava uma imensa ignorância por dois motivos: minha formação profissional exigia que eu soubesse diferenciar, mesmo de longe, as duas frutas. Por outro lado, a maçã apresenta aquele nível de maturação no período de Inverno e nunca naquela época de intenso Verão como era o caso. Pela primeira vez, saboreei e fiquei encantado com o aroma e aquele sabor mesclado de pêssego e maçã.
Descobri logo que aquela parada para colher nectarina tinha sido premeditada, pois o meu companheiro tomou de uma faca afiada e de lâmina do brilhante aço que estava no porta-luvas do veículo que usava para fatiar a fruta. Eu estava muito próximo daquele homem neurótico e fiquei meio apreensivo com a ameaça do punhal. Fiquei um pouco aliviado ao constatar que o interesse dele se prendia em colher o máximo de frutas, colocando tudo dentro de uma caixa de papelão estrategicamente escondida atrás do banco em que estávamos sentados. Bastava esticar o braço e ir colhendo. Quando ele conseguiu encher a caixa, perguntou se eu queria também algumas frutas. Argumentou que aquilo era do governo e que não merecia ser respeitado. “Afinal - dizia o aparente celerado - O governo era do senhor Reagan”. Agradeci dizendo que não poderia levar nada, pois estava preocupado com qualquer excesso de volume para levar em viagem de trem dentro de poucas horas para New York. Ele concordou e insistiu que comêssemos ali mesmo o que fosse possível. Depois de empanturrado comecei a ficar preocupado, pois estávamos em uma propriedade oficial do Departamento de Agricultura e aquele cultivo de nectarina se destinava certamente para as observações da pesquisa e experimentação. O homem parece que lia os meus pensamentos ou os deduzia pelo meu comportamento comedido. Com um grande pedaço de fruta na boca, enquanto ele tentava mastigar, consegui entender numa espécie de grunhido que lhe brotou do fundo da garganta; “Não se preocupe, pois isso é tudo do governo do Reagan!” Era mesmo uma fixação contra o governo daquela época. Daí para frente fiquei mesmo muito preocupado com a faca nas mãos do doutor maluco.
Eu já vinha há alguns anos desenvolvendo uma atitude mental para abstrair meus pensamentos de qualquer situação emocional incômoda como aquela perante um homem doente da cabeça. Assim, a sua voz era como uma coisa distante e quase inaudível para mim. Eu não estava mais nem prestando atenção ao que ele dizia e, por outro lado, não tinha mais qualquer temor de uma faca brilhante, afiada e pontiaguda. Fiquei mesmo até em situação confortável e orgulhoso de minha capacidade para enfrentar aquele momento aparentemente perigoso. A situação exigia que eu pudesse exercer, ao máximo, a minha capacidade de desligamento emocional, retirando-me mentalmente para outras distantes galáxias do pensamento. E isso eu deveria fazer não só por estar ali diante daquela figura extremamente desagradável mas, sobretudo, pelo desconforto do sentimento de insucesso da minha missão que naquele dia terminava ali em Beltsville no histórico Estado de Maryland. De fato, a cruel e irracional burocracia americana tinha me vencido: eu viera de longe para ajeitar as coisas e não tinha conseguido absolutamente nada. Meus objetivos não tinham sido alcançados e isso era profissionalmente muito ruim. Eu tinha de me esforçar para que pudesse ficar em uma zona de conforto comigo mesmo. Mas o infeliz acompanhante no imenso pomar de nectarinas insistia, provavelmente sem o saber, em piorar o dia que já iniciava nada bem para mim.
– Eu sempre tive um verdadeiro ódio aos dirigentes do meu país!
Essa afirmação daquele homem era feita quase aos gritos. Parece que se dava conta da minha completa ausência e só poderia interromper-me nas minhas abstrações com aqueles gritos. E aos berros, ele continuava no mesmo tom agressivo, olhando-me fixamente com os seus olhos lacrimejantes e muito claros:
- Foram todos esses miseráveis - acrescentou - Que me mandaram para duas guerras!
Naquele momento, fui tomado por um sentimento de piedade para com o desvairado pesquisador, aquele pobre americano de duas guerras. E quando ouvi a palavra guerra, assomou-me um equilíbrio comum com o neurótico devorador de nectarinas: eu também odiava a guerra com suas motivações mercenárias, suas justificativas políticas, e as suas trágicas conseqüências. Mas, mesmo naquele momentâneo estado de piedade e identificação com o meu louco cicerone, passei a assustar-me com a continuidade de suas palavras:
- Eu odeio desde Lincoln a Reagan! - gritou por fim olhando para o horizonte tomado pela vermelhas e saborosas frutas.
Confesso que o inusitado da cena deixou-me bastante confuso. Não sei se por causa do que estava ocorrendo, mas o vermelho exuberante passou a exercer em mim um incontrolável poder e domínio mórbidos: imaginei estar sentindo um cheiro de pólvora e sangue! Era evidente que eu estava sendo submetido a um típico surto psicótico. Eu ouvia nitidamente o troar dos velhos canhões. Fui sendo tomado de contagiante emoção. Não era para menos. Ali naquelas mesmas paisagens onduladas tinham sido sacrificadas milhares de vidas dos jovens americanos. Concentro minha emoção e os estrondos se sucedem. Minha “fuga” daquele homem do meu lado me transporta para uma época, ali mesmo, entre 1861 e 1865. Carinhosamente me recordo de Abe Lincoln: depois de muito sangue molhando aquelas terras que se transformariam em pomares, o dia 15 de abril de 1865 seria marcado pelo seu sangue também derramado, perto dali, por um outro louco que sabia odiar tal como meu acompanhante.
Não me dou conta que o meu louco já tinha dado partida no nosso carro e tomado o caminho para o local onde eu aproveitaria um pequeno ônibus circular para retornar a Washington. Nada mais ouço do que o vizinho de viagem está dizendo. Qualquer lembrança da Guerra Civil americana sempre me impressionava. Muitos romances tinham se baseado naquele momento terrível da história da América. Por isso, me desligara das arengas do maníaco de 1982 e desfrutava, melancolicamente, das paisagens fumegantes da destruição dos homens ali em Maryland do século XIX!
Volto à realidade e peço ao homem que faça uma rápida parada no Baltimore Boulevard, na porta do Del Haven Motel. Eu ainda tinha de pagar a conta e retirar a minha pequena bagagem. Eu tinha saído muito cedo e não pudera tomar essas providências. Faço isso agora rapidamente e volto minha atenção para o acompanhante pedindo que me deixe perto, em outro local, em um estacionamento do microônibus do governo que me levará para o centro de Washington pela rota número 1. Eu precisava afastar-me com urgência daquela situação. Eu não merecia aqueles constrangimentos mentais que o homem me oferecia. Assim, enquanto o pequeno ônibus amarelo seguia pela rota 1, eu, sem grandes esforços, abstraia o espaço e o tempo. Estava novamente em pleno século XIX! Naquela maravilhosa situação, como se um torpor me envolvesse, pelas margens da estrada eu via somente belas fazendas e senhoriais mansões de estilo vitoriano. Não via - ou não queria ver - os modernos edifícios da Universidade de Maryland. E como o meu ônibus teve de sair da rota número 1 provavelmente devido a um acidente à frente, desviamos por alguns quilômetros aproveitando a Capital Beltway. Mesmo nessa moderníssima estrada eu conseguia imaginar e sentir os solavancos das estradas carroçáveis dos anos 1800. Naquele momento, em 1982, eu deveria enxergar as instalações do Goddard Space Flight Center da NASA. Que nada! Minha imaginação, quase infantil, e o meu devaneio de maravilhosa psicose consentida me proporcionavam somente imensas planuras e fazendas nas ondulações verdejantes. Minha ausência no tempo e no espaço parecia real e sem limites.
Finalmente, no centro da cidade, o pequeno ônibus pára bem em frente da Union Station e sou obrigado a sair dos meus sonhos para o embarque em poucos minutos. Enquanto espero a chamada pelo alto-falante autorizando a descida para as plataformas, fico olhando o teto da encantadora estação ferroviária e me distraio o suficiente para não prestar atenção aos avisos. Felizmente, uma senhora se aproxima e me pergunta se eu também não estaria esperando o embarque para New York. Ao agradecer e confirmar, noto que se trata de uma dama no mais apurado trajar. Roupas simples, mas elegantes e bem talhadas em seda, emolduravam o seu corpo aparentemente frágil. Na cabeça, um belo chapéu de veludo verde claro à moda do Tirol suíço, completava a graça da minha salvadora. Descemos as escadarias para a plataforma indicada e deparamos com os vistosos vagões de aço da Amtrak e, por coincidência, escolhemos aquele que estava destinado aos passageiros não-fumantes. Desejando demonstrar minha intenção de retribuir a gentileza daquela senhora, ofereço ajuda para alcançar o degrau da escada do vagão. Não foi necessária a minha colaboração. Noto que imediatamente à minha oferta de apoio surge um outro cavalheiro que auxilia a elegante dama. Mesmo assim ela sorri para mim em sinal de agradecimento. Enquanto caminhamos pelo corredor do vagão, ela toma a iniciativa de entabular a conversa para passar o tempo da viagem de cerca de três horas até o nosso destino comum.
– Então o senhor é também um cidadão de New York?
– Não - afirmo sem esconder meu orgulho - Sou brasileiro!
- Mas que ótimo! Gosto muito dos brasileiros!
Por conta daquela “declaração de amor” para com os brasileiros me tomo de intimidades e não me faço mais de rogado. Apresento-me e vou logo ocupando um lugar na mesma confortável poltrona de couro verde ao lado da agradável companhia. Vejo que meu dia estava mesmo mudando: daqueles momentos de angústia perto do louco de Beltsville, estava agora junto de uma pessoa que dizia gostar dos brasileiros. A dama toma novamente da conversa e me pergunta sem muita cerimônia. “O senhor gosta do canto clássico?” Um pouco surpreso e sem poder negar, arrisco aprofundar na pergunta e respondo com outra pergunta:
– A senhora quer saber se entendo do canto lírico?
– Não - contesta com um doce sorriso - Só quero saber se o senhor gosta dos intérpretes clássicos.
Fico alguns segundos procurando na memória de qual intérprete eu mais gostava. Quero impressionar a minha inquiridora, mas minhas incursões pelo mundo artístico do belo canto não passam de Pavaroti, Maria Calas e tenho de confessar a minha pobreza cultural. Ela ri gostosamente e continua naquilo que parecia um exame oral: “E dos brasileiros de quem o senhor mais gosta?” Nesse momento a minha acompanhante tocou em um ponto fraco e delicado e respondo com firmeza de um entendido do mundo artístico do meu país. “Dos brasileiros, não conheço nenhum digno de minha admiração. Mas, uma brasileira marcou a minha infância e toda a minha vida - e continuei sem poder disfarçar a minha emoção - Era, e ainda é, uma espécie de amor que tenho por quem nunca pude ver pessoalmente!”
– Interessante! Muito interessante! – agora a dama não sorriu talvez por respeito à solenidade de minhas palavras, mas continuou – Este seu grande amor ainda vive?
– Tenho certeza que sim – afirmei já refeito da emoção e acrescentei – Ela vive aqui nos Estado Unidos! Eu gostaria de um dia – acrescentei como se fosse uma confissão – Poder falar com ela e dizer da minha antiga admiração e respeito!
– Mas que impressionante! O senhor parece mesmo ter um grande amor guardado e que nunca pôde realizar um sonho!
– É verdade, é verdade! – concordei sem esconder minha desolação – Pode crer minha senhora, parece coisa infantil, mas não é!
Como nossa conversa se prolongou por quase uma hora, a dama manifestou a vontade de tomar as providências para nosso almoço que seria servido no vagão- restaurante, adjacente ao que estávamos instalados.
Ao tomarmos assento em uma mesa comum no vagão restaurante, a minha dama de companhia sugeriu que se fizesse um brinde ao meu amor contido pela cantora brasileira. Achei aquilo estranho, mas concordei com o despropósito. Em seguida, ela com desembaraço e demonstrando desenvoltura e segurança no que deveria ser feito, fez um sinal para o garçom. Quando o elegante e bem vestido garçom se aproximou, foi logo consultando a refinada dama: “O mesmo de sempre, miss Carol?.” Naquele momento em que tomei conhecimento do nome da minha acompanhante, ela não escondia uma espécie de satisfação e, sorrindo, aprovou recomendando: “Sim e do melhor!.”
Os minutos foram preenchidos com a agradável conversa com miss Carol enquanto o veloz Amtrak avançava em direção a New York. Por nosso turno, sorvíamos preciosos champanhes sem a preocupação com o almoço. Por força dos diversos brindes trocados, ao tilintar das nossas taças de puro cristal, fomos nos embriagando. De minha parte me rendia ao champanhe em razão da armadilha melancólica em que eu tinha sido apanhado. Ao que parece, pelo que toca à miss Carol, ela estava preparando-me para a crucial satisfação de sua curiosidade feminina:
– Então, estás pronto para revelar o nome desse grande e respeitoso amor?
– Sim! Ela se chama Dodô Salinas – e repeti com um sentido de confissão tardia de minha vida - A fabulosa soprano Dodô Salinas!
– Mas esta Dodô Salinas - inquiriu a dama – será a mesma soprano que estreou em 1937 aqui no Metropolitan Opera House of New York?
– Sim! – confirmei quase regurgitando a mistura de champanhe e nectarina – É esse o meu amor sonhado!
No momento em que voltava do lavatório, onde tinha ido me socorrer dos copos de champanhe, eu pude notar que a elegante dama acabava de trocar algumas palavras com aquele mesmo cavalheiro que a socorrera para adentrar no vagão ainda lá em Washington. Achei ainda mais estranho aquela atitude, pois o homem não tinha se aproximado enquanto nos divertíamos nos alegres brindes ao longo da viagem que estava por terminar. Fiquei mais intrigado quando, já novamente acomodado, pude constatar que o estranho homem parecia cumprir uma ordem de miss Carol. Ele trancou-se na transparente cabina telefônica do mesmo vagão e falou com alguém, gesticulando e rindo muito. Após isso, ele fez um discreto sinal para minha acompanhante como dizer que estava tudo OK. Eu fingi que não tinha notado aquelas misteriosas manobras. Eu era agora um bêbado sem medo.
Logo que a composição parou nos subterrâneos da Penn Station, no coração da ilha de Manhattan, a descontraída dama foi logo dizendo: “Nos distraímos no champanhe, e nem almoçamos”. Era verdade, passava das duas horas da tarde e meus únicos alimentos tinham sido as nectarinas e as garrafas de champanhe.
– Aceita um convite para almoçar, senhor Steisloff?
Minha curiosidade ficou aguçada com aquele convite e ainda mais quando vi o estranho cavalheiro carregando a única mala de miss Carol e nos acompanhar para fora da estação. Atravessamos a estreita passagem de pedestre e o cavalheiro se adiantou para abrir as portas traseiras de uma limusine Cadilac negra, onde nos acomodamos em um ambiente refrigerado e sem os ruídos da rua 31 naquelas horas da tarde.
– Podemos sair da 31 e seguir pela Broadway - ordenou delicadamente miss Carol – Depois siga direto para o Lincoln Center.
Pensei lá com meus botões: “Ôpa, no Lincoln Center, então vamos ter um almoço supimpa!” O potente Cadilac cumpriu galhardamente a distância entre a estação e o ponto de chegada na velocidade máxima permitida e, por sorte, com todos os sinais de trânsito a nosso favor. Quase no final de nossa pequena viagem, o motorista retorna à esquerda pela avenida Columbus, já na frente do Lincoln Center, entrando na 66 para tornar à direita para avenida Amsterdam e descer a rampa da garagem privativa do Metropolitan Opera House. Quando entramos naquela garagem tive a curiosa sensação de que estávamos entrando em um túmulo. Tudo escassamente iluminado e um silêncio quase aterrador. O que estaria para ocorrer dali para frente? Será que miss Carol estaria me conduzindo para o museu do Metropolitan? “Que bom” – pensei – “Ali, eu poderia ver, pelo menos, as velhas fotos das centenas de divas que brilharam naquele teatro acima de nós.”E, que pena!” – continuei imaginando – “Nunca poderei ver a minha Dodô!”. Já com a visão um pouco mais acostumada à penumbra, saímos do enorme veículo já estacionado e nos dirigimos para uma rampa. A medida em que íamos subindo, podíamos ir melhor percebendo alguns maravilhosos gorjeios dos prováveis ensaios daquela tarde. Bem mais acima, em um longo corredor de macio atapetado já se podia distinguir que se tratava mesmo de um ensaio de uma soprano. A orquestra parava a todo instante, conforme as exigências da pessoa que dirigia o ensaio. Ao chegar no enorme salão pude vislumbrar, extasiado, o fabuloso palco precariamente iluminado. Senti as minhas entranhas sufocando, comprimindo meu coração. Eu estava no mesmo local onde, há 45 anos, minha adorada Dodô tinha se lançado para o mundo maravilhoso da ópera! Sentia um pouco de tristeza enquanto continuava caminhando em direção ao monumental palco. Ali, bem perto, continuava o ensaio para a próxima temporada de agosto do Metropolitan. Minha anfitriã guiou-me até as escadas laterais que davam acesso ao palco. “Mas que intimidade!” - cochichei para miss Carol - “A senhora vai interromper o ensaio?”. Já bem perto, pude notar que a preceptora do ensaio dava instruções, ao que parece, sobre as técnicas de ritmo e técnicas para respiração correta. A preceptora estava de costas para nós e pressionava o diafragma da soprano. Já perto dos artistas, em pleno placo e para surpresa, miss Carol segreda no meu ouvido:
– Aqui mando eu! Sou a curadora artística do Metropolitan Opera House of New York!
Mais assustado fui ficando, a medida que o ensaio foi paralisado para atender à miss Carol que estava chegando. De repente, a preceptora, uma veneranda senhora, se volta para nós e, sorrindo todos do meu embaraço, sou introduzido formalmente:
– Senhor Steisloff, quero apresentar-lhe minha antiga amiga, miss Dodô Salinas!
– Muito prazer – responde miss Dodô com uma classe de diva – Estávamos esperando para o almoço!
Minhas pernas fraquejaram não sei se por causa do meu estado etílico ou devido ao choque emocional pela repentina surpresa. E, de inopino, miss Dodô vem em minha direção. Nervosamente, eu estendo minha mão trêmula para um cumprimento formal. A minha inatingível deusa despreza a mão estendida e, sem nenhuma cerimônia, abraça-me com desembaraço e concede-me um beijo. Mantenho-me nos seus braços que me apertam e participo, mesmo assustado, daquele seu beijo profundo, demorado e descaradamente sensual. Não foi um simples ósculo de pessoas que apenas se gostam e se reencontram. Foi um beijo devasso, público e convidativo para outros desdobramentos mais profundos. Terminado o beijo, do qual tenho que desvencilhar-me, eu não sabia se meus sentimentos agora eram de vergonha ou de decepção para com a cena. Para piorar a situação, não pude constatar em nenhum dos presentes, ali no palco, qualquer sinal de reprovação àquela atitude de miss Dodô. Ao contrário do que eu esperava – uma condenação mesmo velada – todos aplaudiram e ficaram esperando a minha reação. Sorriram às gargalhadas quando a grande Dodô Salinas me largou e disse, avaliando seu contraparte no escandaloso beijo:
– E ele beija bem! E com sabor de nectarina!
Entristecido e bastante encabulado, sigo todos em direção à uma escada atrás do palco, provavelmente para o local onde deverá ser servido o prometido almoço. Começo a ficar imaginativo e quase revoltado por ter alimentado aquele amor antigo e religiosamente guardado. “É mesmo um ambiente promíscuo o meio artístico!” – cogito olhando para a velha Dodô bem acabada pelo tempo - “Como fui ingênuo por toda a minha vida!”. Vou subindo a escada, mas a tristeza vai me invadindo de forma tão avassaladora que não desejo mais acompanhar os comensais. Acho-os um bando de depravados nova-iorquinos e desejo fugir para o meu cantinho. Meu lugar protegido junto à minha esposa que me espera em Roboken, no outro lado do rio no Estado de New Jersey.
De repente sou sacudido por uma pancada no ombro e uma pessoa fala alto, quase gritando junto ao meu rosto:
– Senhor Steisloff, acorde que já chegamos ao centro de Manhattan!
Totalmente confuso, abro os olhos e vejo o rosto de miss Carol junto ao meu e ela bondosamente repete:
– Está na hora do senhor acordar e desembarcar para tomar o outro Amtrak para New Jersey.
O trem pára e eu pergunto ainda estonteado se dormi todo aquele tempo. Miss Carol sorri e diz despedindo-se:
– Senhor Steisloff, logo depois da primeira garrafa do champanhe foi um sono só. E o senhor parecia tão cansado e feliz...
Sobre o autor:
O autor Amauri Rodrigues, nasceu na tradicional, piedosa e gloriosa São João del Rey, berço, também, do mais distinguido mártir da nossa Independência. Amauri vem a ser trineto de Heinrich Christoph Steisloff que aportou no Brasil no início do século XIX para abrir, na picareta, a Estrada União e Indústria que liga Petrópolis-RJ à Juiz de Fora, em Minas Gerais. Talvez pela saga desse seu mais antigo parente conhecido, o autor escreve sob o pseudônimo literário Von Steisloff cujas mentiras não ofendem nem magoam. Ao contrário, as ficções bem postas têm o poder de desencadear fantasias pessoais, eliminando os medos e outros segredos.
(Originalmente publicado no nº 3 da Revista Cerrado Cultural, 2008).
Nenhum comentário:
Postar um comentário