Por
Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal)
Não sei se já vos falei de
amoroso menino, que conheci, nos anos sessenta, na velha cidade de Bragança.
Tinha a cabeça coberta de farto
e fino cabelo; cabelo macio, escorrido, de nuances em ouro velho, que
lhe descia até aos ombros. Rosto oval. Pele branca, cetinosa, ligeiramente
tostadinha. Olhos vivos e meigos. Lábios bem desenhados. Pescoço alto e
esbelto; e cândida expressão, que cativava.
Foi meu companheiro.
Companheiro dedicado, com quem passei largos e longas horas de ameno convívio
fraternal.
Certa ocasião, após ter vindo,
definitivamente, para a cidade do Porto, hospedei-me em modesta pensão
bragantina, cuja fachada era fronteira à velha estação ferroviária.
Após o almoço, inesperadamente,
surgiu-me, num lanço das escadas, que comunicavam com os quartos, sorrindo.
Sorriso lindo, que jamais pude esquecer.
Admirei-me da insólita
presença, e indaguei, curioso, a razão de me esperar:
- “ Olá! Então por aqui?! …”
Num trejeito juvenil, disse-me,
encolhido, titubeando:
- “ Minha mãe pediu-me para
o vir buscar, e ajudá-lo a levar a mala… – Explicou, de mãos enlaçadas,
balanceando o corpo.
Agradeci, penhorado, a
gentileza, e cortesmente, esclareci que não pretendia incomodar.
- “ O primo Humberto nunca
incómoda! …Assim ficamos todos juntos…”
Fiquei sem palavras.
Emocionado. Sabia que falava com sinceridade. Os olhos não enganavam…
Não o deixei trazer a mala,
como queria. Mala antiga, de cartão endurecido, de cor acastanhada. Insistiu.
Recusei. Vencido, acompanhou-me em silêncio.
Ao cruzarmos a Praça da Sé,
junto ao Café Central, voltou-se para mim, e, timidamente, declarou:
- “ Minhas irmãs estão
ansiosas de o ver…”
Este rapazinho, de bondade e
sensibilidade extrema, foi o meu companheiro predileto; amigo sincero e leal,
nos anos, que, por obrigação, permaneci na sua velha e encantadora cidade.
Decorrido um bom par de anos,
após a derradeira visita, que fiz, encontrei-o, já adolescente, na bonita
aldeia de seu pai.
Avizinhou-se, numa tarde
abafada de Agosto, com a mesma simplicidade de sempre, e convidou-me para
acompanhá-lo a bonito prado, onde pesada vaca, malhada, branca e preta, pastava
pachorrentamente, com chocalho barulhento.
Deitamo-nos na relva fofa,
mirando o céu azul – onde vagavam pequenas e esfarrapadas nuvens brancas, – sob
frondosa e farfalhuda figueira. Uma andorinha, num voo baixo e elegante, rasgou
o ar, pairando sobre a relva.
Raios doirados do Sol, crivados
pela espessa e fresca ramagem, manchavam-nos o rosto de sombras escuras e
claras. Enorme e acolhedora paz, envolvia-nos. Calor de rachar! …Cantavam, não
sei onde, à compita, cigarras e grilos – gri, gri.gri…; crass,crass…zzz…-
quebrando o murmúrio do silencio.
Os cavalos – que nos
transportaram – libertos do selim, espojavam-se, retoiçando e relinchando, alegremente,
na relva verde-escura. Ao longe, ladravam cães, e chegavam vozes
imperceptíveis, de mulheres e crianças.
Conversamos sobre a canícula,
que tudo secava; da beleza de viver à beira-mar; e da tumultuosa vida citadina.
Disse-lhe, então, que dentro de
dias tinha que regressar.
- “ E não vai a Bragança?! –
Indagou, com pontinha de censura.
- “ Não. Parto diretamente
para o Porto.”
_ “ Fique mais uns dias! …A
mãe, e minhas irmãs, também gostam muito do primo…”
Não fiquei. Não podia. Na hora
da despedida, abraçou-me, beijou-me, e não sei se chegou a chorar.
Fiquei com a sensação – talvez
errada, – que me queria dizer, muito baixinho: “ leve-me consigo…”
Soube, mais tarde, por meu
irmão, que havia falecido, de forma trágica.
Fiquei triste. Muito triste…
Triste, por não o ter visitado
mais vezes. Triste, porque amizades assim, nunca mais encontrei.
Escrevo, esta crónica, ao cair
da tarde. Em breve, para as verdes várzeas do Candal, o céu azul,
alaranjar-se-á; e tonalidades quentes de vermelho-sangue e
amarelo-ouro-esverdeado, pintarão o azul desmaiado do céu, desta tórrida tarde
de Verão.
É o pôr-do-sol. Espetáculo
apoteótico de luz e cor. Extasiante; sempre renovado e belo, que encanta, e
deixa paz na alma angustiada.
O Sol sempre nasce e sempre
morre; morre e nasce todos os dias: iluminando, dando vida e cor à Terra.
Mas…Ai de mim! …, que,
vertiginosamente, caminho para as derradeiras cores do meu crepuscular…
Em breve chegará a noite negra;
mas enquanto não vier o sono, viverei dos lindos sonhos, que vivi, e dos que
não vivi, mas gostaria de os ter vivido…
Recordando companheiros que
partiram… mas vivem, eternamente, dentro de mim; e os que ainda não partiram…
mas já me sepultaram no esquecimento…
Este garotinho não morreu: repousa
no meu coração saudoso: sempre jovem, sempre sorrindo, sempre a dizer muito
baixinho à minha alma contristada: “ Gosto muito do primo! …”
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