Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
Fico aqui
pensando: a vida imita a arte ou a arte imita a vida? Penso num romance que
escrevi faz tempo, e que se chama Cruzeiros do Sul, onde acompanho uma família
chamada Souza durante três séculos e meio pelas antigas vastidões ermas de
Santa Catarina até os tempos mais recentes. Famílias como essa devem ter
existido, e garimpei os acontecimentos históricos do estado através de livros
científicos, para que tudo ficasse mais verossímil, e nos altos e baixos por
onde a família andou, acabei contando a história de Santa Catarina, mesmo que
tenha sido a grosso modo. Foi um ato de arte a imitar a vida.
E agora leio
essa admirável Família Cazumbá (Família
Cazumbá – As peculiaridades dos descendentes de africanos nos últimos anos da
escravidão e no pós-abolição – Recôncavo da Bahia – c. 1879-2015 – autoria de
José Bento Rosa da Silva) e dou-me conta do inverso: a vida também imita a
arte, sem dúvida. Bento, que um dia já foi meu professor, mergulhou na senda
que trilha essa família Cazumbá que hoje está, inclusive, nas redes sociais, e
a trouxe desde o século XIX, passo a passo pelos caminhos do Brasil, essa gente
que conserva um sobrenome africano, coisa tão rara no nosso país. Seu livro é
precioso em minúcias e investigações, e de mãos dadas com a família Cazumbá,
Bento andou com ela por três séculos, subindo e descendo os tantos caminhos da
vida, como uma vez eu fiz com esquecidos seres imaginários que usavam o nome
Souza.
Fui ao Facebook
agora ver mais de perto a família Cazumbá, e ela está lá, com muitas e muitas
pessoas, e fiquei a pensar que eu nunca teria sabido delas se o Bento não
tivesse escrito esse livro – vieram-me à mente, então, os tantos personagens
dos tantos livros que li, desde a infância, e que se tornaram muito fortes
dentro do meu cérebro ou dentro do meu coração. Toda essa gente que me habita,
hoje, está viva em mim e comigo, às vezes fica a me acompanhar nas mais
inesperadas atividades.
Moro numa
casa com muitas vidraças luminosas e muita água de cachoeira na torneira, onde
lavar louça é algo muito prazeroso, uma atividade que permite ficar pensando
durante o trabalho, e como penso, nessas horas, em personagens que existiram ou
não no mundo, mas que acabaram chegando até mim dentro de livros! Eu não
saberia delas e não as teria como companheiras, hoje, caso não tivesse lido as
suas histórias. Seria uma pessoa bem solitária, creio, não fosse a companhia
delas, que sempre estão por perto e sempre me fazem refletir sobre elas
próprias, sobre suas épocas e suas histórias, além de trazerem nos seus
embornais os aromas daqueles dias em que as conheci dentro de livros, com
informações adicionais, como, por exemplo, se era dia de chuva ou dia de
recém-abertas flores de laranjeiras, talvez. É bem grande esse círculo de
amigos que me acompanha vida afora – agora, por conta do Bento, também a
família Cazumbá tem frequentado a minha cozinha de muitas vidraças e muita água
de cachoeira, e ao meu redor eles, os Cazumbá, andam e conversam, tanto aqueles lá do século
XIX, quanto os jovens que foram encontrados na internet. Como é bom quando
chega nova gente nos velhos anos mágicos que se vive!
Parabéns,
Bento! A vida imita a arte, sim!
Sertão
de Enseada de Brito, 09 de janeiro de 2020.
Urda
Alice Klueger
Escritora,
historiadora e doutora em Geografia
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