sábado, 1 de fevereiro de 2020

FAMÍLIA CAZUMBÁ


Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

                                    Fico aqui pensando: a vida imita a arte ou a arte imita a vida? Penso num romance que escrevi faz tempo, e que se chama Cruzeiros do Sul, onde acompanho uma família chamada Souza durante três séculos e meio pelas antigas vastidões ermas de Santa Catarina até os tempos mais recentes. Famílias como essa devem ter existido, e garimpei os acontecimentos históricos do estado através de livros científicos, para que tudo ficasse mais verossímil, e nos altos e baixos por onde a família andou, acabei contando a história de Santa Catarina, mesmo que tenha sido a grosso modo. Foi um ato de arte a imitar a vida.
                                    E agora leio essa admirável Família Cazumbá (Família Cazumbá – As peculiaridades dos descendentes de africanos nos últimos anos da escravidão e no pós-abolição – Recôncavo da Bahia – c. 1879-2015 – autoria de José Bento Rosa da Silva) e dou-me conta do inverso: a vida também imita a arte, sem dúvida. Bento, que um dia já foi meu professor, mergulhou na senda que trilha essa família Cazumbá que hoje está, inclusive, nas redes sociais, e a trouxe desde o século XIX, passo a passo pelos caminhos do Brasil, essa gente que conserva um sobrenome africano, coisa tão rara no nosso país. Seu livro é precioso em minúcias e investigações, e de mãos dadas com a família Cazumbá, Bento andou com ela por três séculos, subindo e descendo os tantos caminhos da vida, como uma vez eu fiz com esquecidos seres imaginários que usavam o nome Souza.
                                    Fui ao Facebook agora ver mais de perto a família Cazumbá, e ela está lá, com muitas e muitas pessoas, e fiquei a pensar que eu nunca teria sabido delas se o Bento não tivesse escrito esse livro – vieram-me à mente, então, os tantos personagens dos tantos livros que li, desde a infância, e que se tornaram muito fortes dentro do meu cérebro ou dentro do meu coração. Toda essa gente que me habita, hoje, está viva em mim e comigo, às vezes fica a me acompanhar nas mais inesperadas atividades.
                                    Moro numa casa com muitas vidraças luminosas e muita água de cachoeira na torneira, onde lavar louça é algo muito prazeroso, uma atividade que permite ficar pensando durante o trabalho, e como penso, nessas horas, em personagens que existiram ou não no mundo, mas que acabaram chegando até mim dentro de livros! Eu não saberia delas e não as teria como companheiras, hoje, caso não tivesse lido as suas histórias. Seria uma pessoa bem solitária, creio, não fosse a companhia delas, que sempre estão por perto e sempre me fazem refletir sobre elas próprias, sobre suas épocas e suas histórias, além de trazerem nos seus embornais os aromas daqueles dias em que as conheci dentro de livros, com informações adicionais, como, por exemplo, se era dia de chuva ou dia de recém-abertas flores de laranjeiras, talvez. É bem grande esse círculo de amigos que me acompanha vida afora – agora, por conta do Bento, também a família Cazumbá tem frequentado a minha cozinha de muitas vidraças e muita água de cachoeira, e ao meu redor eles, os Cazumbá,  andam e conversam, tanto aqueles lá do século XIX, quanto os jovens que foram encontrados na internet. Como é bom quando chega nova gente nos velhos anos mágicos que se vive!
                                    Parabéns, Bento! A vida imita a arte, sim!

Sertão de Enseada de Brito, 09 de janeiro de 2020.

Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutora em Geografia



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