Por Severino Moreira (Bagé, RS)
Se estou bem lembrado, eu já contei o causo de uma cobra, bicho cuiudo de
tão grande, que de certa feita comeu uma ninhada de pintos e, ainda, matou um
galo “nanico capão”, que tomava conta dos bichinhos, mas se por acaso algum
vivente não se lembrar disso é só dar de rédeas pra trás, na direção do começo
desses escritos, que na cabeça do lombilho eu fiz, que por certo há de achar o
causo que hora lhes falo.
Por outro lado não preciso nem olhar pra trás, para lembrar que dessa
feita eu cortei o couro da tal cobra, bem de contra a cabeça, e saquei fora
prometendo pra quem quisesse ouvir, que n’outra hora que me pegasse com tempo
sobrando, eu haveria de contar pra que serviu.
Acontece que o dia de hoje, me pega mais devalde do que bichará em tarde
de janeiro, de modos que vou lonqueando tentos do meu próprio pensamento, e
desencravando esse pedaço de história, já quase morto e enterrado, para aqui
relatar.
Engraçado, me saiu até algumas palavras bonitas, bem diferentes desse
bagualismo medonho, que já é de minha marca, deve ser por certo palavras saídas
desses trechos escritos por índios de língua sovada e idéias desembaraçadas,
como Apparício Silva Rillo, Simões Lopes, Pedro Wayne e outros tantos a quem
forcejo pra seguir o rasto, embora sabendo que as léguas que nos separam são
muitas.
Bueno, mas isso não faz parte do causo, de maneira que a meu jeito.
Voltemos ao “couro da cobra”.
Pois haveria de ser, que eu na minha santa ignorância de guri tinha
passado algumas noites
Pelo menos foi desse jeito que eu entendi, isso se levasse em conta o
fato da cobra estar viva, mas é claro que não estava.
Isso me tranquilizou, e me acendeu a idéia de fazer um cinto desse couro.
Seria sem dúvidas o único cinto de couro de cobra naqueles grotões, um motivo
de inveja, que fazia muito bem a minha vaidade, de guri sotreta.
Bueno, o couro dessa cobra que mais parecia um saco que se afunilava, na
medida em que chegava pra ponta da cola, terminou por ficar pendurado lá no
galpão, esperando ”para quando” eu crescesse, então, fazer o tal cinto. Afinal,
eu não era bobo de fazer uma obra de arte para em dois ou três anos não me
servir mais.
Ficou por lá algum tempo, até que pelas tantas sumiu, e eu como sempre
acontece nessas horas, imaginei que me tivessem roubado, pois apesar da cobra
ser feia o couro até que era bonito, e não era de duvidar que alguém o levasse.
Passaram-se um lote de anos, e certa feita eu retirava uns feixes de
Santa-fé de um canto do galpão, quando de repente eu encontrei o couro da cobra,
ou melhor dizendo o meu couro de cobra, amontoado num canto, duro e seco.
Reencontrando o couro, de pronto me atinou a idéia de fazer o meu cinto,
seria por certo o primeiro peão a usar um cinto de couro de cobra, até já
imaginava, com fivela de prata, guaiaca do mesmo couro virado pelo avesso e pra
acompanhar eu faria uma tarca com guizo de cascavel.
Iria por certo ficar um cinto de respeito, mas eu só não contava com um
inconveniente, pois depois de todos esses anos amontoado, o couro estava tão
duro e seco que não ouve faca que cortasse. Era pior que esfregar no osso da
canela de um boi velho.
Acreditem, mas tentei, até serrar,
e se debulharam os dentes do serrote velho, que tanto osso e guampa de touro
havia cortado, e no couro...nem móça fez.
Mas, sou teimoso e já tinha botado na cabeça que faria meu cinto, então,
atravessei o couro no picador de lenha e sentei o machado, com vontade, “e lhe
digo” o cabo partiu em três e o fio remachou, ficando igual bolquete de arado.
E olhem que era um “Colin”, legítimo. No couro... nem móça fez.
Não atinando outra forma de amaciar aquele tróço resolvi botar de molho,
e passando a presilha do laço por um buraco, não sei se do olho da cobra ou
feito pelas “punilhas”, atirei para dentro do açude, deixando a parte da argola
enfiada numa trama do alambrado.
Uns dias depois,
principiava escurecer, quando montei no sogueiro e fui dar uma bombeada lá no
açude pra ver se tinha amolecido o couro, e pode até ser vergonhoso, mas não
vou negar, que levei um “cagaço” medonho, pois a água se mexia e de quando em
vez destapava o lombo do que me pareceu uma cobra. Bicho “munaia” de tão
grande, por certo, era pra mais de palmo só o pedaço do lombo que se podia ver,
entre uma onda e outra.
Quanto ao comprimento não
se via direito por causa dos aguapés, mas não era por certo coisa pouca, a
julgar pela onda e o aguapezal que deitava, quando o animal se mexia.
Cheguei a pensar que fosse uma cobra, buscando acasalamento, sem saber
que a outra não era mais do que a casca d´uma “cobra defunta”.
Dei uma procurada no resto de coragem que me sobrava, já que com cobra
não se facilita, fui soltando a argola da trama e puxando o couro pra fora,
usando para isso os encontros do cavalo, pois o desgraçado pesava tanto que até
pensei que se tivesse enredado em alguma raiz ou pedra no fundo do açude.
Lhe digo, não foi com pouca “luita” que o couro saiu pra fora, e só então
descobri, que a razão do meu susto era o próprio que tinha dentro nove traíras,
cada uma com um jundiá na barriga e cada jundiá com um lote de lambari, o que
me fez entender, que os peixes embretavam uns aos outros dentro do couro, e
como o couro se afunilava no sentido da cola e o peixe é bicho que não se dobra
terminaram ficando todos entalados, assim que nem mundéu de caçar tatu.
Bueno, para encurtar o causo eu digo, que é assim que tenho pescado
ultimamente, o único inconveniente é que precisa ter óleo de capincho pra dar
uma azeitada no couro de vez em quando, senão o índio morre seco e não
desentala os peixes de dentro.
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