segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

O CAUSO DO COURO SECO (3º LUGAR NA FESTLENDA)

Por Severino Moreira (Bagé, RS)

Se estou bem lembrado, eu já contei o causo de uma cobra, bicho cuiudo de tão grande, que de certa feita comeu uma ninhada de pintos e, ainda, matou um galo “nanico capão”, que tomava conta dos bichinhos, mas se por acaso algum vivente não se lembrar disso é só dar de rédeas pra trás, na direção do começo desses escritos, que na cabeça do lombilho eu fiz, que por certo há de achar o causo que hora lhes falo.

Por outro lado não preciso nem olhar pra trás, para lembrar que dessa feita eu cortei o couro da tal cobra, bem de contra a cabeça, e saquei fora prometendo pra quem quisesse ouvir, que n’outra hora que me pegasse com tempo sobrando, eu haveria de contar pra que serviu.

Acontece que o dia de hoje, me pega mais devalde do que bichará em tarde de janeiro, de modos que vou lonqueando tentos do meu próprio pensamento, e desencravando esse pedaço de história, já quase morto e enterrado, para aqui relatar.

Engraçado, me saiu até algumas palavras bonitas, bem diferentes desse bagualismo medonho, que já é de minha marca, deve ser por certo palavras saídas desses trechos escritos por índios de língua sovada e idéias desembaraçadas, como Apparício Silva Rillo, Simões Lopes, Pedro Wayne e outros tantos a quem forcejo pra seguir o rasto, embora sabendo que as léguas que nos separam são muitas.

Bueno, mas isso não faz parte do causo, de maneira que a meu jeito. Voltemos ao “couro da cobra”.

Pois haveria de ser, que eu na minha santa ignorância de guri tinha passado algumas noites em claro. Imaginava que as cobras fossem veneno desd’o dente até a ponta da cola, de modo que não era pouco o meu sestro de estar meio envenenado, por ter passado a mão de ponta à ponta no couro daquele bicho asqueroso, e só findei por sossegar depois de algumas horas de prosa com o falecido tio Artur Afonso, que era o entendido nas “meopatias”, lá naqueles confins de Santaninha, e olhem que não foram poucas as horas de prosa. O velhito gastou uma “carreta lotada até os fueros” de paciência, até me convencer que o veneno do bicho era só nas presas, que, grosseiramente, falando eu entendi que seriam aqueles dentes mais pontudos, parecidos com aqueles primeiros que aparecem quando um cachorro está “rosnando”. Disse que depois da cobra haver picado o galo, levaria um certo tempo pra acumular veneno de novo, assim imaginei ”grosseiramente falando”, e não mal comparando, que nem vaca depois de tirar leite, leva algum tempo pra encher o “ubre”, outra vez.

Pelo menos foi desse jeito que eu entendi, isso se levasse em conta o fato da cobra estar viva, mas é claro que não estava.

Isso me tranquilizou, e me acendeu a idéia de fazer um cinto desse couro. Seria sem dúvidas o único cinto de couro de cobra naqueles grotões, um motivo de inveja, que fazia muito bem a minha vaidade, de guri sotreta.

Bueno, o couro dessa cobra que mais parecia um saco que se afunilava, na medida em que chegava pra ponta da cola, terminou por ficar pendurado lá no galpão, esperando ”para quando” eu crescesse, então, fazer o tal cinto. Afinal, eu não era bobo de fazer uma obra de arte para em dois ou três anos não me servir mais.

Ficou por lá algum tempo, até que pelas tantas sumiu, e eu como sempre acontece nessas horas, imaginei que me tivessem roubado, pois apesar da cobra ser feia o couro até que era bonito, e não era de duvidar que alguém o levasse.

Passaram-se um lote de anos, e certa feita eu retirava uns feixes de Santa-fé de um canto do galpão, quando de repente eu encontrei o couro da cobra, ou melhor dizendo o meu couro de cobra, amontoado num canto, duro e seco.

Reencontrando o couro, de pronto me atinou a idéia de fazer o meu cinto, seria por certo o primeiro peão a usar um cinto de couro de cobra, até já imaginava, com fivela de prata, guaiaca do mesmo couro virado pelo avesso e pra acompanhar eu faria uma tarca com guizo de cascavel.

Iria por certo ficar um cinto de respeito, mas eu só não contava com um inconveniente, pois depois de todos esses anos amontoado, o couro estava tão duro e seco que não ouve faca que cortasse. Era pior que esfregar no osso da canela de um boi velho.

 Acreditem, mas tentei, até serrar, e se debulharam os dentes do serrote velho, que tanto osso e guampa de touro havia cortado, e no couro...nem móça fez.

Mas, sou teimoso e já tinha botado na cabeça que faria meu cinto, então, atravessei o couro no picador de lenha e sentei o machado, com vontade, “e lhe digo” o cabo partiu em três e o fio remachou, ficando igual bolquete de arado. E olhem que era um “Colin”, legítimo. No couro... nem móça fez.

Não atinando outra forma de amaciar aquele tróço resolvi botar de molho, e passando a presilha do laço por um buraco, não sei se do olho da cobra ou feito pelas “punilhas”, atirei para dentro do açude, deixando a parte da argola enfiada numa trama do alambrado.

          Uns dias depois, principiava escurecer, quando montei no sogueiro e fui dar uma bombeada lá no açude pra ver se tinha amolecido o couro, e pode até ser vergonhoso, mas não vou negar, que levei um “cagaço” medonho, pois a água se mexia e de quando em vez destapava o lombo do que me pareceu uma cobra. Bicho “munaia” de tão grande, por certo, era pra mais de palmo só o pedaço do lombo que se podia ver, entre uma onda e outra.

         Quanto ao comprimento não se via direito por causa dos aguapés, mas não era por certo coisa pouca, a julgar pela onda e o aguapezal que deitava, quando o animal se mexia.

Cheguei a pensar que fosse uma cobra, buscando acasalamento, sem saber que a outra não era mais do que a casca d´uma “cobra defunta”.

Dei uma procurada no resto de coragem que me sobrava, já que com cobra não se facilita, fui soltando a argola da trama e puxando o couro pra fora, usando para isso os encontros do cavalo, pois o desgraçado pesava tanto que até pensei que se tivesse enredado em alguma raiz ou pedra no fundo do açude.

Lhe digo, não foi com pouca “luita” que o couro saiu pra fora, e só então descobri, que a razão do meu susto era o próprio que tinha dentro nove traíras, cada uma com um jundiá na barriga e cada jundiá com um lote de lambari, o que me fez entender, que os peixes embretavam uns aos outros dentro do couro, e como o couro se afunilava no sentido da cola e o peixe é bicho que não se dobra terminaram ficando todos entalados, assim que nem mundéu de caçar tatu.

Bueno, para encurtar o causo eu digo, que é assim que tenho pescado ultimamente, o único inconveniente é que precisa ter óleo de capincho pra dar uma azeitada no couro de vez em quando, senão o índio morre seco e não desentala os peixes de dentro.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário