Por Severino Moreira (Bagé, RS)
O cemitério do Rodeio Velho estava entupido de gente, ao ponto de não se
saber se havia mais sobre a terra ou nos sete palmos abaixo do chão pois o
pessoal era tanto que se cruzavam por entre as paredes brancas e as cruzes
plantadas no solo, tomando o maior cuidado pra não pisar por cima daqueles, que
por infortúnio não haviam tido sorte na vida e nem na morte e descansavam as
“ossamentas” ali na terra úmida e fria, coberta de pasto e “mal-me-quer”.
Engraçado, alguns dizem mal-me-quer, outros dizem bem-me-quer, de maneira
que, não sei qual dos dois é o nome real dessa florzinha tão bonita, acho até
que é o estado de espirito e o momento que definem qual dos dois usar.
Era costume naquelas campanhas lá de Santaninha, o pessoal se reunir no
dia de finados e entre choramingos de saudade, velas acesas, flores e terços,
também, tratavam negócios, atavam pencas e até algum namoro se ajeitava por lá.
Posso até afirmar que não foram poucas as “percantas” que arrumei no
cemitério, embora, também, possa afirmar que nenhuma fosse tão bela quanto a
que deu origem a esse causo.
A dona Telícia, que até hoje eu não sei se esse era o nome ou algum
apelido que tinha, era a pessoa mais procurada para puxar os terços, em razão
da simpatia, e a voz suave e compassada que tinha a velha senhora.
Rezava-se na hora de um terço em memória da minha falecida avó Severina,
pra quem ainda não falei, meus avós paternos tinham o mesmo nome por herança de
avô já que eram primos e foi deles que herdei o nome que me batizaram.
Os “Pai Nossos” e as “Ave Marias” iam saindo encarreraditas que nem teta
de mulita, uma atrás da outra, e umas vinte ou trinta pessoas, quase numa só
voz repetindo, “Santa Maria, Mãe de Deus ... Rogai por Nós”.
Eu, entre uma oração e outra, olhei o retrato de minha avó, já desmerecido
pelo tempo, que descansava ao lado de um cocho improvisado como vaso, onde
estava plantado um pé de onze horas. Vi que as flores principiavam a se abrir.
Devia ser mesmo umas onze horas e julgar pelo sol que já começava a me queimar
o “coco” da cabeça.
“Coringuei” p´ra minha direita e enxerguei uma cabeleira ruana, quase
escondida por trás de outra pessoa que na hora não lembro quem era, me encantou
o brilho daquela cabeleira, de uma cor assim igual barba de milho branco,
ainda, “verdolengo”, que caía por sobre os ombros da moça, como se tivesse, um
raiozinho de sol guardado em cada fio.
Eu estava tão encantado com aquela cabeleira que, quando me dei conta a
chinóquinha, também, me olhava. Olhava e sorria, de uma maneira que lhe digo, a
boca era, ainda, mais bonita que os cabelos e os olhos, ainda, mais bonitos que
a boca, e o resto...
Bueno, o resto era, ainda, mais bonito que as três coisas juntas.
Por certo, não era dali. Naquelas campanhas, não havia quem eu não
conhecesse e aquela chinóquinha, não era do tipo que passasse despercebida, nem
pelos mais descuidados e eu por certo não era um deles, principalmente se
tratando de uma moça tão bonita.
O que me deixava “deverasmente” espantado era o fato da chinóquinha andar
solita, pois se compromissada fosse, o índio seria por certo igual a um
quero-quero, com os olhos cravados em cima, e se descompromissada fosse, seria
por certo como uma borrega arrodeada de sorros de tão linda que era.
Eu me encontrava em pé, com o “mata piolho” da mão direita enfiado na
fivela do cinto, e em cima da mão direita descansava a esquerda, de maneira que
o meu chapéu, meio sobre o peito, meio sobre a barriga, tinha cada braço meu
apertando uma ponta da aba, ficando, portanto, a copa entre os dois.
Lembro que cocei o nariz, com a borla do barbicacho, e a moça que ainda
me olhava fez o mesmo com o crucifixo do rosário branco, que trazia nas mãos,
depois desceu o crucifixo até a boca, beijou e me sorriu, de maneira que fiquei
sem saber se o beijo era para a imagem de Cristo no rosário ou para mim.
Terminei por fazer o mesmo com a borla do barbicacho e ela riu de novo.
Nessa hora, a Dona Telícia rezava a última Salve Rainha, em seguida fez o
sinal da cruz e o pessoal foi se dispersando aos poucos, até ficar só ela me
olhando com o mesmo ar de doçura nos olhos e aquele sorriso que me trazia as
“frussuras” pra boca.
Me aproximei e tentei puxar uma prosa, mas não tive resposta, parecia um
bicho-do-mato com medo de gente e foi com aquele silêncio de “túmulo”, que deu
as costas e se foi, sem que eu a tocasse ou sequer lhe ouvisse a voz.
Foi a primeira e a última vez que a vi, pois logo se foi montada num
tordilho, que por mais estranho que pareça, eu não tinha visto que estava com a
rédea arrastando no chão, ali no portão do cemitério, com aquela mansidão
própria dos animais que, quando o dono apeia, ficam no mesmo lugar até que
venha a montar de novo.
E foi assim que lhe vi sumir no horizonte, no rumo da costa do Camaquã,
como se fosse uma nuvem de fumaça que se apagava aos poucos.
Às vezes, ainda penso nesta china, sem saber se seria alguma surda-muda
ou quem sabe alguma fazendeira, se julgando merecer algo mais do que um pobre
peão que nem eu.
Às “deveras” não sei e isso de quando em vez, me tira o sono.
Mas de tudo, o que acho mais estranho é que de todo o gentirío que por lá
esteve, inclusive as quase trinta pessoas que acompanhavam o terço; eu fui a
única “viva alma” que enxergou a moça.
Também, não entendo porque uma moça tão bonita usava roupas tão fora da
moda, tão antigas, quanto as que eu via nos retratos dos meus antepassados.
Teria eu, me apaixonado por uma assombração?
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