segunda-feira, 1 de setembro de 2025

CRÔNICA DO DIA: A DAMA DO LAGO (PRIMEIRA PARTE)

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

‘’Caída na orla do lago, eu só conseguia pensar em meus filhos.

A água do lago estava suja e não era cristalina como antes.

Entrei nas águas e fiquei ali, no lago por duas horas.

Maldito lago, era praticamente perto da minha residência...

 Morávamos em áreas de terra, e sempre havia desabamentos’’

Fabiane Braga Lima

 

            Dias desses o meu pai, que é economista de profissão, recebeu uns dados para analisar, coisas da tal da engenharia económica, creio eu. E para ser mais específica, os dados davam conta de certas anomalias estatísticas de uma pequena localidade. Eu não me interesso muito por números e dados tabulados, pois sou da cadeira de humanas e não da exatas e um dia eu tive a pachorra de dizer isto para o meu velho pai. Levei um baita puxão de orelhas, pois segundo o economista que tenho em casa, disse que a engenharia econômica não é somente sobre tabular frios dados e probabilidades então somente. E estamos na tal da pós-modernidade líquida, em que vivemos na atualidade em que debulho estas linhas. Há sim pesquisas acadêmicas premiadas, onde os estudos do mundo das finanças, por assim dizer, são endossados pelas correntes das áreas das cadeiras das humanidades, que se debruçam a desvendar os muitos complexos comportamentos de seres humanos e as suas decisões financeiras. Porque a ciência econômica pura e simples, também trata de comportamento humano, coisas que as exatidões do universo numérico, não dão conta por assim dizer. Resumindo, os números dizem o que das coisas e não dizem os porquês das coisas.

            Não cabe aqui, me aprofundar no papo chato academicista, e vamos direto ao assunto. O amigo do meu pai, era um bem sucedido e respeitado corretor de seguros, um amigo do tempo de faculdade do meu velho. O homem é um contemporâneo da cadeira de ADM, administração de empresas para os íntimos. E também um especialista dos números, um especialista da engenharia económica, ele alinhado com as correntes ligadas às cadeiras das humanidades. Correntes do pensamento, que se dedicam a pesquisar os comportamentos humanos referentes às decisões e preferências financeiras.

           E a revisão dos dados, apresentada ao meu pai, era uma peculiar, para não dizer, aberrante anomalia, que surgiu ao tabular os dados de uma pequena localidade. De repente, segundo os números analisados, houve uma enorme contratação dos serviços de várias corretoras de seguros. Pelo que entendi, as corretoras de seguro trocam figurinhas entre si. Mas voltemos ao que interessa aqui, eu explico o contexto socioeconômico da tal aberração econômica. Uma gama de pessoas endinheiradas, oriundas de uma mesma localidade paupérrima, estavam contratando e comprando bens e serviços caríssimos. Pessoas de várias áreas de atuação, espalhadas por todo o país, pessoas de várias idades e escolaridade, eram de etnias variadas, religiões variadas, idades variadas. Pessoas oriundas de uma perdida região, que nem aparece nos mapas, uma região rural abandonada, não longe de onde eu vivo e um aprofundamento da pesquisa revelaram outras coisas e isso ocorreu ao longo de décadas.

            Em suma, a gama de informações econômicas enorme, como o meu pai vinha trabalhando em um algoritmo, que justamente era para tratar de análises de dados neste campo de estudo, de comportamento de consumo da economia doméstica. Não me perguntem como funciona o algoritmo de papai, pois eu não sei, só sei que os olhos brilharam do meu pai em tempo integral e economista também e tempo integral. O programa de computador, ou software para os mais tecnicistas, ainda estava sendo aprimorado, como o adendo que o meu velho estuda, com afinco, os dados macroeconômicos da região em que viemos. E também tinha acesso aos dados da província em que vivemos.

            E lá vamos nós, dados agrupados, dados revisados, dados inseridos no computador, o treco assobiou, graniu, zumbaiou, vibrou, aferiu e cuspiu os papéis babujados de resultados, creio eu que foi assim que aconteceu. Ai a inteligência natural do meu pai, que se debruçou com os papéis babujados em mãos, aferiu os resultados. Depois deu uns prolongados telefonemas, escreveu longas correspondências eletrônicas, fez breves convergências por vídeos chamadas. Mas para quê? O danado queria escrever um artigo científico, que iria virar um livro! Um estudo de casos sobre a tal anomalia estatística, como é ingênuo o meu velho, pois eu tive acesso aos dados e o parecer dos dados rascunhado e escrito pelo meu pai.

Pois bem, era gente endinheirada, na sua grande maioria de homens, ricos ou influentes, que ocupavam e ocupavam altos cargos em muitas áreas na iniciativa privada e pública. Todos com origens remotas e contemporâneas da mesma região remota, não muito longe daqui de casa. Peixes graúdos, como se diz a raia miúda da marginal oeste e, não foi nada espantoso, quando vozes vindas de todos os cantos, de cima a baixa, de todos os lados, mandaram o meu velho, calar a boca e esquecer o assunto.

E ficou por isto mesmo, já ia me esquecendo de dizer, que a mulher que sou, a filha que sou, o ser curioso que sou, a estudante de Letras que sou, agiu e pedi para o meu pai, ler o relatório final da tabulação de dados. Feliz à primeira vista, pois ver a filha interessada pelo universo matemático e financeiro que ele tanto amava. Para depois desconfiar do pedido tão inusitado e nada corriqueiro. Então usei um estratagema, que aprendi vendo mamãe, quando dobrava as negativas inquebráveis de papai. Sorri meiga, para depois dizer que eu queria revisar a escrita técnica dele, porque eu queria fazer a revisão do texto. Em resposta, ele me perguntou porque uma estudante de Letras, com ênfase em literatura, queria pôr as mãos delicadas, banhadas de olores outonais de alfazemas frescas, no texto técnico dele. Confesso que não gostei quando ele disse: ‘’... as mãos delicadas, banhadas de olores de outonais alfazemas frescas!  De novo sorri e disse que futuramente eu iria me especializar em revisão de textos e eu poderia trabalhar com ele futuramente. Nem nos meus piores pensamentos vagos e diáfanos. E confesso que eu não, iria aguentar uma encenação de um terceiro ato, naquela opereta bufa. E logo pensei no terceiro ato da peça O rei de amarelo, em Cassilda e Camilla e em Hastur e em Carcosa. Felizmente não precisou e mesmo assim assovie A Canção de Cassilda depois que coloquei as mãos delicadas, banhadas de olores outonais de alfazemas frescas receberam o relatório anômalo. Tive acesso ao texto na sua íntegra e me detive nas particularidades e peculiaridades do lugarejo, perdido no tempo e no espaço. Com as suas morrarias, o seu lago de água salgado e as suas tragédias pessoais e coletivas. No subtexto que me chamou a atenção pois gritava, urrava desesperos em meio a névoas místicas.      

 

Fragmento do livro: Do diário de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

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