segunda-feira, 1 de setembro de 2025

OPERA MUNDI: A REUNIÃO NA RUA L

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

            — Vais, mesmo usar estas roupas, minha querida! — A voz glacial, ecoou pelo amplo apartamento, com decoração minimalista. Aurora, remoeu os motivos de ter uma relação tóxica, no seio do seu lar e local de trabalho!

            — Desde quando eu te devo satisfações! — Refutou Aurora, para depois lembrar de quem administra o dia a dia das pendências domésticas e a agenda profissional da dona da casa.

            — Não devo mesmo, senhora! Queres escutar alguma música? — Gaya tentou desconversar, mudar o rumo da conversa desagradável, para abrandar a situação constrangedora para ambas.  

            — As catilinárias! Vamos aos clássicos! Vamos a Cícero! — Disse Aurora como se estivesse em um palco de teatro lotado.

            E uma voz professoral de mulher, começou a narrar o discurso do senador romano Cícero! A dona do apartamento, olha para o espelho de corpo inteiro, mandar Gaya narrar algum absurdo maçante é o jeito de Aurora, de encerrar debates inúteis, com Gaya a administradora doméstica. Engenheira de programação, tem mais o que fazer, para perder tempo checando se a geladeira está abastecida ou se as contas da casa estão pagas.

        Aurora reviu a cena, o seu planejamento para o dia, mas como diz o ditado popular, todo mundo tem um plano, até levar uma bordoada na cara. Assim pensou Aurora naquela hora não dava mesmo contar com um planejamento de ação e sim se preparar para o inesperado.

         E parada diante do espelho, Aurora que usava trajes formais, sóbrias, mas era o que ela queria vestir e não o que o ambiente exigia. E balancear o que se deseja, com o que o lugar exige é mesmo um enorme desafio. O salto alto branco gelo, a saia bege claro que passava dos joelhos e o tailer que fazia par com a saia. Era uma receita para o desastre, levando em conta para onde ela pretendia ir. Então tudo desapareceu, surgindo uma saia jeans surrada, um cinto de couro com uma fivela de ossos cruzados constituída de titânio. Pulseiras, brincos e colares, não entraram na equação, na verdade pequenos brincos discretos entraram de forma forçada!

            — Vais usar uma sombrinha pelo menos? — A fala pastosa de Gaya, divertiu Aurora. A engenheira, ignoro por completo a pergunta da outra.

            O barulho da esteira em movimento trouxe Aurora para a realidade, o tanque robô vinha com os acessórios, a programadora não suportava os robôs humanoides. A dona da casa, não suporta a ideia de interagir com outros humanos, na intimidade dela, nem a ideia vaga de ter uma outra pessoa no convívio diário. Os modelos humanoides robóticos domésticos, tiram o sono da programadora, então adaptar peças bélicas desumanizadas, para os afazeres domésticos, foi uma sugestão de um colega de profissão, um funcionalista. A peça bélica, trazia uma bandeja, Aurora então olha para a bandeja com a caixa de cristal, um kit maquiagem, com a tampa aberta, a máscara e as luvas de tecido digital eram os itens em destaque. Aurora calça as luvas e dispensa a máscara, escolhe uma lente de contato, e escolhe o modelo de combate, das opções de transmissores auriculares, escolhe a modelo de vigilância e leva até a orelha esquerda.    

            — Vais a guerra madame? — Perguntou a assistente doméstica Gaya, certa preocupação no tom de voz.

            — Quantas perguntas! Já disse que não te devo explicações e para onde eu vou ou deixo de ir não é da tua conta. Têm coisas, que não deve perguntar para que não se deva mentir. — O tom gélido de Aurora, deu pistas que do rumo das coisas dali para frente, um silêncio abissal tomou conta do ambiente.

            Aurora reviu de novo todas as possibilidades, mesmo sabendo que não as tinha, sendo uma mulher prática, sabendo dos protocolos, que aliás ela ajudou a compor, ela tomou as suas providências. Alguns olhos digitais a vigiavam, um preço a pagar pelas decisões, os projetos que se envolveram ao longo dos anos.  No dia anterior, Aurora procurou a rede de comunicação subterrânea, uma rede onde pessoas do submundo, criminosos em sua maioria, se comunicam. Simples e complexa ao mesmo tempo, envolvendo trocas e bilhetes em certos pontos da cidade, no comércio popular, hotéis e motéis baratos, mas também envolvendo moradores de ruas e o comércio do sexo. Aurora, passou longos anos trabalhando em programas de computadores e aplicativos para o aparato de segurança, empresas particulares de segurança e grandes corporações. A programadora teve acessos a uma gama de arquivos da segurança pública e privada.

            A programadora, dá uma última olhada no espelho e se lembra de quem era e da sua condição, levou a mão até o cabideiro e pegou e olhou o próprio reflexo no espelho e se sentiu ridícula. Ao caminhar em direção a porta, os barulhos do salto agulha batendo no piso atormenta Aurora, que para e volta para o quarto de guarda-roupa. Vai até o compartimento de calçados e pega a bota salto alto cano longo de vinil, uma peça militarizada. Aurora sorri ao pegar o calçado e sorri mais ainda depois que os vestiu.

            — E a agenda do dia senhora? — A voz de Gaya pegou Aurora à beira da porta!

            E Aurora, repassou a agenda do dia, responder todas as correspondências eletrônicas, mandar mensagens de voz para os pais, dando conta que ela estava bem, cancelar e reagendar todas as reuniões do dia, programar os robôs domésticos de aspirar todos os cantos da casa. Lembrou de regar as plantas e alimentar os animais domésticos da casa, até que Gaya lembrou que não existiam seres a base de carbono habitante. Por fim Aurora estava pronta e partiu rumo à reunião na rua L.

 

Fragmento do livro: Sono paradoxal, texto de Samuel da Costa, poeta, novelista e contista em Itajaí, Santa Catarina.

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