Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
— Vais, mesmo usar estas roupas, minha querida! — A voz glacial, ecoou
pelo amplo apartamento, com decoração minimalista. Aurora, remoeu os motivos de
ter uma relação tóxica, no seio do seu lar e local de trabalho!
—
Desde quando eu te devo satisfações! — Refutou Aurora, para depois lembrar de
quem administra o dia a dia das pendências domésticas e a agenda profissional
da dona da casa.
— Não
devo mesmo, senhora! Queres escutar alguma música? — Gaya tentou desconversar,
mudar o rumo da conversa desagradável, para abrandar a situação constrangedora
para ambas.
— As
catilinárias! Vamos aos clássicos! Vamos a Cícero! — Disse Aurora como se
estivesse em um palco de teatro lotado.
E uma
voz professoral de mulher, começou a narrar o discurso do senador romano
Cícero! A dona do apartamento, olha para o espelho de corpo inteiro, mandar
Gaya narrar algum absurdo maçante é o jeito de Aurora, de encerrar debates
inúteis, com Gaya a administradora doméstica. Engenheira de programação, tem
mais o que fazer, para perder tempo checando se a geladeira está abastecida ou
se as contas da casa estão pagas.
Aurora reviu a cena, o seu
planejamento para o dia, mas como diz o ditado popular, todo mundo tem um
plano, até levar uma bordoada na cara. Assim pensou Aurora naquela hora não
dava mesmo contar com um planejamento de ação e sim se preparar para o
inesperado.
E parada diante do
espelho, Aurora que usava trajes formais, sóbrias, mas era o que ela queria
vestir e não o que o ambiente exigia. E balancear o que se deseja, com o que o
lugar exige é mesmo um enorme desafio. O salto alto branco gelo, a saia bege
claro que passava dos joelhos e o tailer que fazia par com a saia. Era uma
receita para o desastre, levando em conta para onde ela pretendia ir. Então
tudo desapareceu, surgindo uma saia jeans surrada, um cinto de couro com uma
fivela de ossos cruzados constituída de titânio. Pulseiras, brincos e colares,
não entraram na equação, na verdade pequenos brincos discretos entraram de
forma forçada!
—
Vais usar uma sombrinha pelo menos? — A fala pastosa de Gaya, divertiu Aurora.
A engenheira, ignoro por completo a pergunta da outra.
O
barulho da esteira em movimento trouxe Aurora para a realidade, o tanque robô
vinha com os acessórios, a programadora não suportava os robôs humanoides. A
dona da casa, não suporta a ideia de interagir com outros humanos, na
intimidade dela, nem a ideia vaga de ter uma outra pessoa no convívio diário.
Os modelos humanoides robóticos domésticos, tiram o sono da programadora, então
adaptar peças bélicas desumanizadas, para os afazeres domésticos, foi uma
sugestão de um colega de profissão, um funcionalista. A peça bélica, trazia uma
bandeja, Aurora então olha para a bandeja com a caixa de cristal, um kit
maquiagem, com a tampa aberta, a máscara e as luvas de tecido digital eram os
itens em destaque. Aurora calça as luvas e dispensa a máscara, escolhe uma
lente de contato, e escolhe o modelo de combate, das opções de transmissores
auriculares, escolhe a modelo de vigilância e leva até a orelha esquerda.
—
Vais a guerra madame? — Perguntou a assistente doméstica Gaya, certa
preocupação no tom de voz.
—
Quantas perguntas! Já disse que não te devo explicações e para onde eu vou ou
deixo de ir não é da tua conta. Têm coisas, que não deve perguntar para que não
se deva mentir. — O tom gélido de Aurora, deu pistas que do rumo das coisas
dali para frente, um silêncio abissal tomou conta do ambiente.
Aurora reviu de novo todas as possibilidades, mesmo sabendo que não as tinha,
sendo uma mulher prática, sabendo dos protocolos, que aliás ela ajudou a
compor, ela tomou as suas providências. Alguns olhos digitais a vigiavam, um
preço a pagar pelas decisões, os projetos que se envolveram ao longo dos anos.
No dia anterior, Aurora procurou a rede de comunicação subterrânea, uma
rede onde pessoas do submundo, criminosos em sua maioria, se comunicam. Simples
e complexa ao mesmo tempo, envolvendo trocas e bilhetes em certos pontos da
cidade, no comércio popular, hotéis e motéis baratos, mas também envolvendo
moradores de ruas e o comércio do sexo. Aurora, passou longos anos trabalhando
em programas de computadores e aplicativos para o aparato de segurança,
empresas particulares de segurança e grandes corporações. A programadora teve
acessos a uma gama de arquivos da segurança pública e privada.
A
programadora, dá uma última olhada no espelho e se lembra de quem era e da sua
condição, levou a mão até o cabideiro e pegou e olhou o próprio reflexo no
espelho e se sentiu ridícula. Ao caminhar em direção a porta, os barulhos do
salto agulha batendo no piso atormenta Aurora, que para e volta para o quarto
de guarda-roupa. Vai até o compartimento de calçados e pega a bota salto alto
cano longo de vinil, uma peça militarizada. Aurora sorri ao pegar o calçado e
sorri mais ainda depois que os vestiu.
— E a
agenda do dia senhora? — A voz de Gaya pegou Aurora à beira da porta!
E
Aurora, repassou a agenda do dia, responder todas as correspondências
eletrônicas, mandar mensagens de voz para os pais, dando conta que ela estava
bem, cancelar e reagendar todas as reuniões do dia, programar os robôs
domésticos de aspirar todos os cantos da casa. Lembrou de regar as plantas e
alimentar os animais domésticos da casa, até que Gaya lembrou que não existiam
seres a base de carbono habitante. Por fim Aurora estava pronta e partiu rumo à
reunião na rua L.
Fragmento
do livro: Sono paradoxal, texto de Samuel da Costa, poeta, novelista e contista
em Itajaí, Santa Catarina.
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