Por Humberto Pinho da Silva (Vila Nova de Gaia, Portugal)
Corria o mês de Maio…Mês das
flores e de Maria.
Batidas pela luz luminosa da
manhã primaveril, as velhas pedras, do velho castelo, ganhavam novo brilho, e
refulgiam, cintilantes, por entre antigas casas da cidadela medieval.
O delicado recorte, do vetusto
burgo – ex-libris da cidade, – invocativo de gestas, de gloriosos tempos;
tempos de homens robustos, que se entregavam à morte: pela Fé, pela Pátria, e
pela Honra, pareceu-me, nesse recuado dia de Maio, Dia das Cantarinhas, antiquíssima
iluminura, arrancada a velha e amarelecida página, da nossa velha e gloriosa
História.
Chegavam diluídas à ampla e
panorâmica varanda, banhada pelo sol doirado da manhã, quebrando o silêncio, o
rosnar murmuroso de viaturas, com vozes longínquas e frases esgaçadas, trazidas
pela brisa fresca da Sanábria, à mistura, com alegres pipios, de pardalitos,
que festivamente saudavam o sol matinal.
A menina dos totós, agora
senhora de acetinado rabo-de-cavalo, folgava, esfuziante, correndo solta, pela
casa paterna; balanceava, ritmicamente, os mimosos bracitos, bem torneados; e
sacudia, esvoaçando, o fino cabelo castanho, que escorria, doirado, pelos
ombros e pelas costas, quase até à cintura.
O semblante era alegre; o andar
leve, como leve é o andar da jovem gazela; e os olhos, bem arregalados, eram
duas pequenas pérolas saltitantes, de azeviche, sorrindo de felicidade.
Ora se debruçava no parapeito
verde da grade; ora penetrava, borboleteando, na estreita salinha, envolta em
silêncio, onde a jovem mãe, lia, atentamente, o jornal da localidade; ou
rompia, como tufão, pela cozinha, onde a mana querida, cuidava, zelosamente, da
sobremesa do almoço; ou mergulhava no sombrio corredor, sempre em desenfreadas
corrimaças.
De súbito, estaca.
Fica pensativa, de olhos
sonhadores, enxergando não sei quê. Volta a correr; galga, dois a dois, os
degraus de acesso à porta da rua; e saltitando sempre, como feliz passarinho,
envereda para o quintal.
Era uma
manhã doirada do mês de Maio; mês de Maria e das flores…
Pintara-se o céu de azul; azul
encharcado de luz, translúcido e misterioso.
Entre a vegetação rasteira do
quintal, havia raquítico arbusto, arvorezinha anã, que medrava em terra pobre e
ressequida.
A garotinha, de tez doirada,
cor de areia, dona de soberbos e expressivos olhos, irradiantes de ternura,
mansamente, avizinhou-se do arbusto.
Estática, mira-o por instantes;
entorta a cabecinha. Depois…num ápice, estica-se; apruma-se; ergue-se em
biquinhos dos pés; e num salto certeiro, encarrapita-se num garfo, enlaçando-se,
de pés e mãos, ao fino e frágil tronco.
A arvorezinha, oscila,
cambaleia, balança, parece quebrar, mas de novo se ergue.
A menina, baloiçando, eufórica,
solta risadinha de prazer, mostrando a brancura dos dentes, emoldurados pelos
lábios rubros e o doirado-moreninho do rosto traquina.
É um flash; uma cena fugidia;
centelha, que saltou da profundeza da memória, há décadas sepultada em remota
gaveta.
Por sortilégio de benfazeja
fada, emerge-me, de longe a longe, dos recôncavos do subconsciente, em turbilhão:
episódios, diálogos do tempo de outrora.
Torno a escutar, antigos ecos
ancestrais de vozes amigas, e chilreios de crianças, que já não são.
Vozes e chilreios, que se
sumiram num tempo, que foi, mas já não é.
Esses flashes, são, para mim,
saudosas recordações, que me enchem de alegria ou de amargura, a alma, já de
si, e por natureza, nostálgica.
Nessa época passada, que passou
– e jamais passará, – ainda acreditava, ingenuamente: que o amor era para
sempre…; as promessas eternas…; e só por um ideal valia a pena viver! …
Para mim, a
amizade, era infinita; e só seria feliz, se todos o fossem…
Era simples; simples, como a
mais simples e humilde florzinha do campo, que acorda ao espreguiçar do
primeiro raio da aurora, e morre no crepuscular, antes que as trevas cheguem.
Mas era feliz. Feliz, porque
desconhecia as vicissitudes da vida, e a maldade e orgulho dos adultos: dos que
sempre vivem de máscara no rosto e hipocrisia no coração…
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