Então paramos em mais um posto de abastecimento ao
longo da longa tira de asfalto que cortava o Chaco argentino. Eu morria de
fome, e tratando de cumprir as ordens, não esperei por ninguém: tratei logo de
conseguir comida, uma deliciosa carne fria com muita pimenta e batatas frias,
pelo que entendi, prato típico daquela região. Assim, quando os meus amigos
harleyros vieram comer, eu já estava acabando, e tive um pouco de tempo para
ficar zanzando por ali. A primeira coisa que vi fora do restaurante foram três
meninos, que teriam 8 ou 9 anos. A segunda, foi um telefone.
Como
no Brasil, na Argentina existem diversas companhias telefônicas (penso que tão
multinacionais quanto as do Brasil – é tudo muito parecido, quando se compara
Brasil e Argentina), e dependendo o telefone que a gente tem pela frente,
pode-se ligar a cobrar, ou comprar um cartão, ou ligar via telefonista, etc. Eu
estava sem saber como fazer para usar aquele telefone para ligar para a minha
mãe, e os meninos me ajudaram. Comprei o cartão que eles me indicaram, e eles
ficaram comigo todo o tempo, até eu conseguir ligar para a minha mãe. Até então
falara espanhol com eles, mas com minha mãe falei português, que eles ficaram
ouvindo, boquiabertos, admirados. Minha mãe queria saber das novidades, e lhes
contei como havia conhecido meninos argentinos, como eles tinham me ajudado,
etc., e ela lhes mandou abraços, etc. Quando desliguei o telefone vi o quanto
estavam pasmos:
-
Nunca haviam ouvido falar português? – quis saber.
Não,
era a primeira vez. Disse-lhes, então, os recados da minha mãe, o que pareceu
encantá-los. Perguntei-lhes se sabiam onde era o Brasil. Deram-me a impressão
de já terem visto no mapa, na sua escola.
-
Vocês sabem que o Brasil é o segundo país mais importante no futebol? –
aticei-os.
Eles
não sabiam. Quis saber qual era o primeiro país do mundo no futebol.
-
Argentina!
– disseram-me sem pestanejar, escandindo bem as sílabas, naquele jeito tão
próprio dos argentinos falarem o seu espanhol, com uma sonoridade que, em
português, poderíamos chamar de “argentina”.
Perguntei
aos meninos se eles conheciam Pelé. Não, não conheciam. Há que se considerar
que aquele lugar era mais ou menos o fim do mundo, um pobre posto de
abastecimento no meio da poeira e da secura do Chaco Argentino, algum lugar
longe de tudo e de todos (depois soube que se chama Pampa de los Guanacos), e
também há que se considerar que eles eram muito jovens, nem chegados, ainda,
aos 10 anos. Mas mesmo assim espantei-me: eram as primeiras pessoas com quem eu
falava, no mundo, que não sabiam quem era Pelé.
- E Maradona, conhecem?
Eles se abriram em sorrisos. Sim,
Maradona eles conheciam, e como! Era seu orgulho e sua alegria, talvez uma das
poucas, naquela distância deserta, distância de cactos e cabras.
Testei mais um pouco o seu conhecimento de
mundo.
- E onde está Maradona atualmente?
-
Em Cuba!
– de novo o acento argentino no espanhol que falavam!
- E que faz Maradona em Cuba?
- Está a tratar-se.
- Mas de que?
- Porque tomou drogas, que lhe
fizeram mal.
- E drogas fazem mal?
-
Sim, sim,
drogas fazem muito mal às pessoas! Nunca devemos tomar drogas!
Fiquei
a matutar como aquelas informações recentíssimas teriam chegado até eles.
Através da escola? (Porque, com certeza, haveria alguma escola ali por dentro
da secura do Chaco!) Através da televisão? (Porque, com certeza, haveria
televisão, também, ali no meio da mesma secura salgada!) O fato é que meninos
argentinos que vivem numa região tão desolada quanto a caatinga brasileira
sabem coisas da sua realidade de uma forma que me deixava espantada. Terão os
meninos brasileiros da desolação da caatinga informações do mesmo nível?
Chamou-me
a atenção como o menino menor olhava encantado para o meu anel. Esse menino
deveria ter um ano menos que os outros, e era bem moreninho, com uma carinha
índia, ao contrário dos amigos, que tinham carinhas européias. Meu anel parecia
encantá-lo. Era um anel sem valor algum, que custava algo como meio dólar, mas
que ostentava vistosa e enorme pedra falsa cor-de-rosa. Acabei tirando o anel
do dedo e dando para o menino, que ficou a segurá-lo nas mãos como se ele
ardesse, tamanha a sua surpresa. Eu via que ele estava tão espantado que não
sabia o que fazer. Disse-lhe:
-
Olha,
esta cor não é uma cor própria para um menino. Tu o guardas para dar para uma
namorada, quando tiveres uma.
Encantado, o menino não conseguia
desviar os olhos daquela jóia colorida. Entendi que o tempo de ter uma namorada
ainda era uma coisa distante demais para ele, e tentei melhorar a coisa:
-
Por
enquanto, tu podes dar o anel para tua mãe usar quando for à igreja!
Aquilo
pareceu ter maior consistência: as mães eram reais e com certeza, aquele povo
tão devoto deveria freqüentar algum tipo de igreja.
Vi
como os outros meninos estavam decepcionados por não ganharem um anel também, e
então lhes dei algumas moedas, e acabei tendo um papo com eles sobre eles
arranjarem escovas e graxa para engraxarem sapatos ali no posto, que parecia
que era o único lugar do mundo a que tinham acesso onde ocorria algum movimento
e onde poderiam conseguir alguns níqueis. Entenderam-me num instante, ficaram
encantados com a idéia, principalmente quando lhes disse que era assim que os
meninos no Brasil faziam. E tive, afinal, que subir numa Harley e deixar
aqueles meninos lá naquele distante lugar do Chaco, mas acabei por trazê-los no
meu coração.
Assim,
parodiando Saint-Exupery, eu lhes digo: se um dia algum de vocês passar pelo
Chaco Argentino, e lá, na mais distante e afastada das paradas, encontrar três
meninos trabalhando de engraxate, e um deles tiver no dedo um anel com uma
grande pedra cor-de-rosa, por favor, me avise. Tenho deles uma saudade muito
grande, e seria como receber um presente do destino saber de alguma notícia
deles. O coração tem leis que a gente não pode prever.
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