Por Urda
Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
É uma
sexta-feira 13, e na minha cidade de Blumenau faz tanto calor quanto penso o
tanto de calor que um dia senti em Cartagena das Índias, no Caribe Colombiano.
Sobrevive-se, creio, por conta da magia do canto das cigarras, que lá fora, às
centenas, parecem querer cantar até rebentar, e deixam na boca da gente um
gosto como o chocolate que se come no Natal, quando se é criança.
Então, num
calorão destes, jamais imaginaria que estaria, faz algumas horas, a ter
recordações dos ternos invernos da minha infância, dum tempo da minha vida em
que tudo era tão diferente que nem dá para fazer comparações. E o que terá
acontecido para me trazer o refrigério dos invernos do passado para dentro
desta loucura de calor eivado de canto de cigarras?
Acho que
tudo aconteceu porque o tempo passou, e crescemos, e envelhecemos, e minhas sobrinhas
e sobrinhos cresceram e tiveram seus filhos e filhas, e agora já é tempo de
velhas vivências com os novos membros da família, que ensaiam seus primeiros
passos na vida. Para encurtar conversa, conto que nesta semana estive acampando
por três dias com três dos bisnetos dos meus pais, mais minha sobrinha Anna
Paula. Era uma escadinha de crianças adoráveis, entre 3 e 6 anos, Valentina,
Alice e Bartolomeu. Diogo não veio; Rafael ainda vai nascer em abril. Foram
tantas as vivências nesses parcos três dias que penso que sempre terei mais o
que escrever a respeito.
Quando soube
que haveria tanta gente para acampar e que iria armar minha barraca grande,
bateu a preocupação: faltava aonde dormir, precisava de mais colchonetes.
Pensei primeiro em comprar alguns modernos colchonetes infláveis, mas aí minha
mãe, do alto dos seus 84 anos, me cortou a intenção: ora, deixaria ela os
bisnetos dormirem em algo menos que a sua coleção de antigas cobertas de
algodão em novelo, verdadeiras relíquias que ela guarda tão ciumentamente desde
seus tempos de noiva? Não, claro que não – e ela tirou cada coberta do seu
esconderijo, e passou toda uma semana a virá-las e revirá-las ao sol, fazendo o
antigo algodão lembrar-se dos seus tempos de planta,e abrir-se em flocos, deixando
cada coberta transformada em pura maciez.
O
acampamento passou com coisas inesquecíveis, como as crianças a irem dormir com
receio do Saci-Pererê, por exemplo, e agora tento retomar a vida e organizar o
que ficou a ser organizado. Antes de devolver as cobertas à minha mãe, no
entanto, tirei suas capas brancas para lavá-las – e como foi grande o impacto
dos primeiros invernos da minha infância que me chegou dentro deste dia de
calor!
Ela está
aqui, a minha cobertinha de quando tinha menos de 4 anos. Dobrei-a e coloquei-a
ao lado do computador, tamanha energia emana. Acabo de medi-la com uma régua:
tem um metro de comprimento por 80 cm de largura, e ainda é do mesmo delicado
tecido cor-de-rosa que era quando eu era tão pequena! Nem consigo mais definir
o tecido: uma cambraia? Uma organza? Não sei; sei que é rosa clarinho, com
filas de minúsculas florzinhas vermelhas e azuis, com suas minusculazinhas
folhinhas verdes! Seria ela que teria me deixado para sempre este meu gosto
pelas roupas cor-de-rosa, pelas coisas cor-de-rosa? Não sei. Sei que está tão
frágil que seu tecido fino se rompeu um pouco, quando a dobrei, mas
internamente deve continuar forte e quente, e é tão macia!
Dentro do
calorão e do som das cigarras viajei para aqueles meus primeiros invernos, para
os dias sombrios com o som soturno das trovoadas, quando os pés ficavam gelados
dentro das Alpargatas Roda enquanto eu espiava soturnamente os grandes, imensos
mistérios da natureza lá fora.
Minha mãe
era uma moça, naquele tempo – só eu é quem pensava que ela era velha. Naqueles
dias de chuva ela sabia como distrair a criança que era eu - enquanto ela
passava roupa a ferro ou costurava, colocava no chão minha cobertinha cor-de-rosa
para que eu brincasse sobre ela, e me dava para comer a iguaria daqueles
tempos: um pires com um pouquinho de melado e farinha de mandioca, junto com
uma colherinha. Uma criança muito pequena levava a tarde inteira misturando o
melado com a farinha, e comendo aquela coisa deliciosa! E as trovoadas, e as
névoas, e os aguaceiros, e as garoas, e a escuridão precoce daquelas tardes
tornavam-se ainda mais misteriosas e encantadas, porque havia o gosto bom do
melado e o aquecimento macio da cobertinha cor-de-rosa, e aqueles dias se
tornaram inesquecíveis na minha vida!
Agora,
hoje, século XXI, tempo de edredons e outras novidades, dentro do calor de
janeiro minha cobertinha cor-de-rosa ressuscita e me dá o maior baque de emoção
– e revivo todo o cenário daqueles invernos onde usava casaquinhos de pelúcia
vermelha, onde minha mãe costurava cantando hinos religiosos, e na minha boca,
como há tantos anos não acontecia, como está forte, de novo, o gosto
inigualável do melado com farinha dos dias de chuva!
Será que
ainda devolvo essa cobertinha para a minha mãe?
Blumenau, 13
de janeiro de 2006.
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