quarta-feira, 2 de maio de 2018

QUE ME DEVOLVAM MEU CORAÇÃO RASGADO E MINHAS VÍSCERAS ROMPIDAS


Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

Já faz tanto tempo que o país começou a morrer, e eu com ele, que já não sei quando foi. Lembro do ano anterior, quando resolvemos ir ao Uruguai conhecer o Mujica no estreito espaço das férias coletivas de quase todo o mundo, o que significava sair no dia de Natal, e naquele ano, até o Natal, na cidade quente em que eu morava não viera o calor e não fora necessário ligar o ar condicionado. O calor chegou exatamente no dia 25 de dezembro; quanto mais rodávamos em direção ao sul maior o calor ia ficando, assim aquele calor que só se desfez no final de março.
No verão seguinte o calor não se fez esperar: estava inteiramente presente desde o primeiro de novembro, e não havia ar condicionado que chegasse. Dei-me conta de que algo estava errado quando fui a uma lan-house que havia perto da minha casa (onde também se tiravam xerox e outras coisas) e o dono, lá, xingava despudoradamente a Dilma, a presidenta que eu ajudara a eleger.
- Vaca! Nojenta! – e outros adjetivos do gênero dirigidos à nossa presidenta. Juro que até então estava inocente dos acontecimentos que começavam a dividir o Brasil em ódio, e muito surpresa, tentei defender a Dilma. O argumento do comerciante vizinho era a conta da luz: de pouco mais de cem reais no dezembro anterior, passara dos 500,00 reais no dezembro findo, e ele não instalara sequer uma tomadazinha nova. O homem era ódio puro, coisa assim para correr com a gente, e caí fora pensando na ignorância dele, que não prestava a menor atenção em como o ar condicionado fora ligado mais cedo por conta do calor. Tanta gente não dá a mínima para a natureza, lembrei de gente que nem sabia de que lado o sol nascia... Não passava de um ignorante. E era. Não prestava atenção em nada, a não ser nos veículos de imprensa que lia e/ou assistia e estava ali, vociferando discurso decorado, destilando fel por todos os poros. Eu via muita televisão, na época, mas via a Telesur, através de uma antena parabólica que possuía, e tão envolvida estava com a América Latina que não tinha prestado atenção ao quintal de casa, quintal esse que agora é quintal do grande capitalismo internacional.
Comecei a me ligar através daquele ignorante, e naquele ano as coisas começaram a explodir. Primeiro, foram as passeatas. Como todo o mundo estava fazendo, na minha cidade também fizeram e eu fui ver – historiador tem alguns compromissos na vida. Levara meu cachorro junto e então subi num banco com ele no colo, com medo que o pisoteassem, tamanha era a multidão. 15.000 pessoas desfilaram naquela noite, o que era uma imensidade de gente para uma cidade pequena, e eu fiquei atenta às suas reinvindicações. A maioria pedia pela federalização da universidade local e pela duplicação da BR-470 – na verdade, havia cartazes de todos os tipos, nada era definido, e não tenho lembrança de ter visto algum Fora Dilma. Fiquei tranquila quando, dias depois, um ex colega de serviço, que chegara a ser meu gerente, me encontrou na rua e me disse, extasiado:
- Pela primeira vez na vida estive numa passeata! Nossa, como me fez bem! – como se tratava de um sujeito que nunca soubera muito bem diferenciar a mão direita da mão esquerda, continuei tranquila.
Vieram os panelaços e tive que cortar do meu facebook madame a quem admirava muito e que confessou publicamente como tinha ficado feliz por protestar. Santo Deus, o povo tinha ficado cego? Não sei se um pouco antes ou pouco depois a loira burra que trabalhava na loja da esquina teve passagem de avião paga para ir a São Paulo (ou ao Rio?) mandar a Dilma tomar no c. Era loira, burra e muito bonita, adequada aquele papel. Imagina se colocariam lá uma mulata, por exemplo. Berrou até ficar rouca.
Em algum momento a coisa tinha ficado grande demais e houve aquela noite dos horrores, onde fiquei quatro horas seguidas olhando para a televisão, incrédula, aquela noite em que o Bolsonaro homenageou o coronel Ustra. Tão parva fiquei com o que aconteceu naquela noite que acabei escrevendo, sobre ela, um texto chamado “Pétreos e pútridos”, que anda aí pelo google.
Faz dois anos. E logo a seguir veio a noite no senado, e os pétreos e pútridos se repetiram, e a Dilma caiu e começou o grande assalto ao nosso país, coisa hoje sobejamente sabida, e o assalto veio diretamente ao meu coração e à minha capacidade criativa, e em dois anos escrevi menos de vinte crônicas, eu que tinha uma vida de correr atrás do tempo para dar conta de escrever tudo o que estava sempre em ebulição dentro de mim. Nenhuma delas teve a coragem de abordar este pesadelo que estamos vivendo – tenho escrito sobre cachorrinhos, infância, coisas assim que como que me salvam da grande desgraça aonde estou enterrada, aonde o meu Brasil está enterrado, aonde tantas partes da América estão enterrados, e quando começou lá em Honduras, acho que em 2007 e eu estava (e estou) tão solidária com Honduras, quando pensaria que aconteceria conosco também? E o ódio, esse ódio espargido por todos os lados – céus, como se sobrevive a uma coisa assim? Até escrevi um livro aí no meio, que sai a público em poucos dias, com o sugestivo nome de “No tempo da magia”, nome bem adequado para quem não está suportando a realidade.
Eu quero a minha vida de volta, o meu coração de volta, a minha sensibilidade de volta, Sou uma pessoa rasgada, vísceras comidas pelo mal do entorno, e já não sei viver assim.

Sertão da Enseada de Brito, 17 de abril de 2018.

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