Por Urda
Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
Já faz
tanto tempo que o país começou a morrer, e eu com ele, que já não sei quando
foi. Lembro do ano anterior, quando resolvemos ir ao Uruguai conhecer o Mujica
no estreito espaço das férias coletivas de quase todo o mundo, o que
significava sair no dia de Natal, e naquele ano, até o Natal, na cidade quente
em que eu morava não viera o calor e não fora necessário ligar o ar
condicionado. O calor chegou exatamente no dia 25 de dezembro; quanto mais
rodávamos em direção ao sul maior o calor ia ficando, assim aquele calor que só
se desfez no final de março.
No verão
seguinte o calor não se fez esperar: estava inteiramente presente desde o
primeiro de novembro, e não havia ar condicionado que chegasse. Dei-me conta de
que algo estava errado quando fui a uma lan-house que havia perto da minha casa
(onde também se tiravam xerox e outras coisas) e o dono, lá, xingava
despudoradamente a Dilma, a presidenta que eu ajudara a eleger.
- Vaca!
Nojenta! – e outros adjetivos do gênero dirigidos à nossa presidenta. Juro que
até então estava inocente dos acontecimentos que começavam a dividir o Brasil
em ódio, e muito surpresa, tentei defender a Dilma. O argumento do comerciante
vizinho era a conta da luz: de pouco mais de cem reais no dezembro anterior,
passara dos 500,00 reais no dezembro findo, e ele não instalara sequer uma
tomadazinha nova. O homem era ódio puro, coisa assim para correr com a gente, e
caí fora pensando na ignorância dele, que não prestava a menor atenção em como
o ar condicionado fora ligado mais cedo por conta do calor. Tanta gente não dá
a mínima para a natureza, lembrei de gente que nem sabia de que lado o sol
nascia... Não passava de um ignorante. E era. Não prestava atenção em nada, a
não ser nos veículos de imprensa que lia e/ou assistia e estava ali,
vociferando discurso decorado, destilando fel por todos os poros. Eu via muita
televisão, na época, mas via a Telesur, através de uma antena parabólica que
possuía, e tão envolvida estava com a América Latina que não tinha prestado
atenção ao quintal de casa, quintal esse que agora é quintal do grande
capitalismo internacional.
Comecei a
me ligar através daquele ignorante, e naquele ano as coisas começaram a
explodir. Primeiro, foram as passeatas. Como todo o mundo estava fazendo, na
minha cidade também fizeram e eu fui ver – historiador tem alguns compromissos
na vida. Levara meu cachorro junto e então subi num banco com ele no colo, com
medo que o pisoteassem, tamanha era a multidão. 15.000 pessoas desfilaram
naquela noite, o que era uma imensidade de gente para uma cidade pequena, e eu
fiquei atenta às suas reinvindicações. A maioria pedia pela federalização da
universidade local e pela duplicação da BR-470 – na verdade, havia cartazes de
todos os tipos, nada era definido, e não tenho lembrança de ter visto algum
Fora Dilma. Fiquei tranquila quando, dias depois, um ex colega de serviço, que
chegara a ser meu gerente, me encontrou na rua e me disse, extasiado:
- Pela
primeira vez na vida estive numa passeata! Nossa, como me fez bem! – como se
tratava de um sujeito que nunca soubera muito bem diferenciar a mão direita da mão
esquerda, continuei tranquila.
Vieram os
panelaços e tive que cortar do meu facebook madame a quem admirava muito e que
confessou publicamente como tinha ficado feliz por protestar. Santo Deus, o
povo tinha ficado cego? Não sei se um pouco antes ou pouco depois a loira burra
que trabalhava na loja da esquina teve passagem de avião paga para ir a São
Paulo (ou ao Rio?) mandar a Dilma tomar no c. Era loira, burra e muito bonita,
adequada aquele papel. Imagina se colocariam lá uma mulata, por exemplo. Berrou
até ficar rouca.
Em algum
momento a coisa tinha ficado grande demais e houve aquela noite dos horrores,
onde fiquei quatro horas seguidas olhando para a televisão, incrédula, aquela
noite em que o Bolsonaro homenageou o coronel Ustra. Tão parva fiquei com o que
aconteceu naquela noite que acabei escrevendo, sobre ela, um texto chamado
“Pétreos e pútridos”, que anda aí pelo google.
Faz dois
anos. E logo a seguir veio a noite no senado, e os pétreos e pútridos se
repetiram, e a Dilma caiu e começou o grande assalto ao nosso país, coisa hoje
sobejamente sabida, e o assalto veio diretamente ao meu coração e à minha
capacidade criativa, e em dois anos escrevi menos de vinte crônicas, eu que
tinha uma vida de correr atrás do tempo para dar conta de escrever tudo o que
estava sempre em ebulição dentro de mim. Nenhuma delas teve a coragem de
abordar este pesadelo que estamos vivendo – tenho escrito sobre cachorrinhos,
infância, coisas assim que como que me salvam da grande desgraça aonde estou
enterrada, aonde o meu Brasil está enterrado, aonde tantas partes da América
estão enterrados, e quando começou lá em Honduras, acho que em 2007 e eu estava
(e estou) tão solidária com Honduras, quando pensaria que aconteceria conosco
também? E o ódio, esse ódio espargido por todos os lados – céus, como se
sobrevive a uma coisa assim? Até escrevi um livro aí no meio, que sai a público
em poucos dias, com o sugestivo nome de “No tempo da magia”, nome bem adequado
para quem não está suportando a realidade.
Eu quero a
minha vida de volta, o meu coração de volta, a minha sensibilidade de volta,
Sou uma pessoa rasgada, vísceras comidas pelo mal do entorno, e já não sei
viver assim.
Sertão da
Enseada de Brito, 17 de abril de 2018.
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