Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Sentada em uma confortável e funcional
cadeira de escritório, em seu ateliê, a escritora de Fabiana De Lima,
despertou de forma abrupta. E o olor de um perfume almiscarado se misturava com
um sabor ocre e viscoso na boca, também pairava no ar o cheiro de cobre, uísque
barato e o eflúvio sutil de carne queimada. Cinzas de cigarro adormeceram em um
cinzeiro ao lado da máquina de escrever.
Um zunido não saiu da cabeça da escritora sênior,
ela olhou em volta e percebeu que adormeceu com as mãos no teclado da máquina
de escrever. Ela organizou seus pensamentos, precisava colocar os pensamentos
em ordem, levou a mão ao rosto, pois precisava ver que horas eram. Aí lembrou
que o relógio digital não funcionava ali. E os estranhos sabores e as sensações
simplesmente sumiram, desaparecendo por completo quando ela despertou do sono
profundo. Fabiana lembrou de quem era e o que estava fazendo sozinha e trancada
naquele lugar. Ela tinha que terminar o manuscrito, um livro e só faltava o
último capítulo da obra, o derradeiro a bem da verdade.
A escritora de meia idade percebeu que não tinha
papel a mão, ela se levantou da confortável cadeira de trabalho, as pernas
doíam, latejavam e os olhos estavam embaçados. Ela desistiu de se erguer na
primeira tentativa, conseguiu na segunda tentativa e por fim partiu na busca
das resmas de papel. As resmas estavam a poucos metros em um armário atrás
dela,
Ao caminhar em direção ao estoque e papel, no
meio do caminho a escritora sentiu uma incontrolável vontade de fumar um
cigarro e beber algo forte. Ela foi encontrar os cigarros aromáticos e
importados do oriente no bolso do tailleur. A escritora parou de caminhar e
tirou um cigarro da cigarreira, e um isqueiro do bolso, ela acendeu um cigarro,
tragou e o gosto almiscarado entorpeceu a mente da escritora a sensação de
prazer a fez relaxar. Para beber, a escritora pensou em ir à adega no porão,
mas não, ela lembrou da garrafa de uísque, um presente de um crítico literário,
a bebida cara vinha do frio norte da Europa. Curiosamente a garrafa estava
guardada na prateleira onde estavam as resmas de papel. Fabiana com o cigarro
na boca, ela pegou uma resma de papel e com uma mão e com outra pegou a garrafa
de uísque.
Ela se virou com uma resma de papel e a garrafa de
uísque na outra, com a firme ideia de até a escrivaninha. Com dificuldades,
ela abriu a garrafa de uísque e se deu conta da falta de um copo no
ateliê. A escritora não pensou duas vezes, cuspiu o cigarro no chão e ela
ergueu a garrafa, tomou direto do gargalo da garrafa . Fabiana De Lima trôpega
retomou a marcha, a passos lentos, ela estava entorpecida pelos vapores do
cigarro aromático e pelo uísque, ela parou de novo e fui até a janela do
escritório. Ela moveu a cortina da janela e percebeu que agoniza o arrebol. Era
um esplêndido pôr do sol em seus esplendores e de repente uma ave negra grasnou
ao longe.
Fabiana De Lima, a proeminente escritora sênior,
refletiu nos abissais e tortuosos caminhos escuros que a levaram até ali. E se
ela merecia ou não ver o vislumbre derradeiro, se o preço a ser pago era mesmo
este. Não, ela não merecia ver o tal negro vislumbre astral, para se unir aos
outros humanistas. Mesmo que o mistério a ser desvendado valeria toda a
dura caminhada.
Fabiana pensou e pensou de novo no que seria uma
saída honrosa. Ela teria que terminar o livro e a obra iria ser submetida ao
conselho, para ser validado ou excluído. Ou mesmo o pior, ela seria
classificada como obra menor esquecida em qualquer lugar. O caminho seria
outro, afinal de contas Fabiana chegou à conclusão que a vida era dela, há ela
pertence e a mais ninguém. E uma lágrima de ébano brotou nos olhos de Fabiana
De Lima. Escorreu e caiu ao chão.
E ela sorriu e caminhou de volta à escrivaninha,
sentou, postou a garrafa de uísque na escrivaninha. Ela pegou outro cigarro,
acendeu e deu uma longa e prazerosa tragada, depois apagou no cinzeiro
E agora? Quem? Quem faria o serviço? Quem a
libertaria de todas as atrozes dores e infindáveis dúvidas? Madalena seria o
ideal! Aquele ser amorfo que se escondia em si, a fera enjaulada que se
levantava no meio da noite para se libertar e se esconder na luz do dia claro.
Sim, era Madalena. E a escritora acoplou o papel
hialino na máquina de escrever, o ranger do encontro do orgânico com o metal
emocionou a escritora, ao ajustar o papel na máquina de escrever era o brado
libertador de Fabiane De Lima.
Entre o som do martelar dos ágeis dedos da
escritora, nas teclas da máquina de escrever, atrás dela a porta se abriu e a
luz inundou a sala acabando com a semi escuridão. Na porta, apareceu uma
imponente major, com seu uniforme impecável, cabelo negro preso e olhos negros
rasgados e vazios, ela se aproximou até onde estava a escritora. Os sons, das
solas dos pesados coturnos no chão de madeira, não tiraram a concentração de
Fabiana. A major de baixa estatura, ficou parada atrás da escritora de meia
idade, a major sacou do coldre uma Tokarev TT-30. A agente do serviço secreto
de segurança, a militar de média patente do NKVD, apontou a arma e engatilhou e
por fim disparou, o estampido ecoou e tomou conta do ambiente. O cheiro de
carne queimada se misturou com o do cigarro oriental, que queimava no cinzeiro
e a garrafa de uísque caiu e a bebida escorreu no chão. O uniforme impecável,
ainda estava impecável quando ela deixou o escritório e o jovem corpo sem vida
da escritora que jazia sentada diante da máquina de escrever.
Sentada na cadeira, no ateliê de Fabiana De Lima, a
escritora despertou de forma abrupta. E o olor de um perfume almiscarado se
misturava com um sabor ocre na boca, também pairava no ar o cheiro de cobre e o
eflúvio sutil de carne queimada.
***
Madalena Azumi abriu os seus olhos e sonâmbula
demorou uma eternidade para perceber onde estava. No alto, um céu azul sem
nuvens, grasnar de aves marinhas, uma brisa outonal e um forte cheiro de
água salgada denunciavam que estava no mar, ou perto dele pelo menos. Ela notou
a presença de homens e mulheres uniformizados e caças de combate estacionados
ao lado dela. Eram evidências concretas que estava em um navio de guerra, um
porta aviões.
Flashes contínuos de uma vida remota, chegavam
rápido e sem aviso algum. Era ela em um quarto, em uma cama enorme, com lençóis
brancos de linho. Ela completamente despida com uma bela mulher negra
corpulenta, de longos cabelos lisos dourados, olhos pequenos e rasgados, voraz
por sexo e prazer extremo. Depois ela se via criança vagando a esmo por um
vilarejo pobre, em um país perdido em meia a montanhas. As pessoas do vilarejo
apontavam para ela e furiosos praguejavam em uma estranha língua, que ela não
compreendia. Um homem idoso vestido como um sacerdote a pegando pelos braços e
a entregou para um outro homem uniformizado, um jovem militar. Madalena se viu
em um prédio moderno, cheio de militares, homens e mulheres e pessoas sisudas
vestidas de branco. Ela se viu em uma alojamento com várias crianças de várias
etnias, eram crianças assustadas e chorosas. Uma senhora idosa vestida de
branco, bateu com força na face de uma criança negra. A mulher gritava alto, em
um idioma, que Madalena não compreendia. Havia um pátio muito grande, ela
estava perfilada com outras crianças mais velhas. E uma música tocou alto, era
um hino marcial, um avião deu um voo rasante, um estrondo alto explodiu na
mente de Madalena.
Agora de olhos bem abertos, Madalena estava de pé
na frente de duas colunas de militares, estavam postados em posição de sentido.
Madalena reconheceu os homens e mulheres de várias nacionalidades, eram
oficiais de médias patentes. Madalena reconheceu todas e todos, ela sabia os nomes
e as origens de cada um deles.
Madalena olhou os oficiais de comando, eram
comandantes de campos, que estavam sentados por detrás de uma mesa. Madalena os
reconheceu, um era o tenente-general Aristo de Sousa da Maia com seu uniforme
angolano, o outro era o General de Divisão Adérito Muteia com seu uniforme de
gala moçambicano, o major-general Aldo Maris com seu uniforme de gala russo e
presidindo a mesa, estava o Contra-almirante Araquem Maximus com seu uniforme
de gala russo.
Os militares de alta patente à mesa, estavam
conversando muito baixo e animadamente. Madalena franziu seu rosto, para poder
escutar o que eles conversavam de forma tão amigável. Mas só fragmentos
chegaram até ela, as nomes Yara e Marcus Wolf e as palavras, total triunfo e
células dizimadas chegam na mente de Madalena.
O contra-almirante se levantou e deu uma ordem
unida em uma língua eslava, os ocupantes da mesa se levantaram e ficaram em
posição de sentido, as duas filas de militares bateram os cascos. Madalena não
soube o porquê, mas caminhou em meio as duas colunas, os militares
desembainharam erguerem as suas espadas conforme ela passava em revista a
tropa. Madalena Azumi se aproximou da mesa e o almirante caminhou até ela. O
almirante falou alguma coisa que Madalena não entendeu, o almirante pregou uma
medalha no peito de Madalena e deu um celo nos lábios de Madalena.
Ela olhou para a medalha e percebeu que trajava um
uniforme militar com a patente de major. A major chegou os olhos e quis
voltar a viver em uma outra realidade, mas não poderia.
Texto de
Samuel da Costa, contista e novelista em Itajaí, Santa Catarina.
Contato:
samueldeitajai@yahoo.com.br
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