quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

EPÍLOGO III: NEVOENTAS LÁGRIMAS DE ÉBANO

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC) 

 

  Sentada em uma confortável e funcional cadeira de escritório, em seu ateliê, a escritora de Fabiana De Lima, despertou de forma abrupta. E o olor de um perfume almiscarado se misturava com um sabor ocre e viscoso na boca, também pairava no ar o cheiro de cobre, uísque barato e o eflúvio sutil de carne queimada. Cinzas de cigarro adormeceram em um cinzeiro ao lado da máquina de escrever.

Um zunido não saiu da cabeça da escritora sênior, ela olhou em volta e percebeu que adormeceu com as mãos no teclado da máquina de escrever. Ela organizou seus pensamentos, precisava colocar os pensamentos em ordem, levou a mão ao rosto, pois precisava ver que horas eram. Aí lembrou que o relógio digital não funcionava ali. E os estranhos sabores e as sensações simplesmente sumiram, desaparecendo por completo quando ela despertou do sono profundo. Fabiana lembrou de quem era e o que estava fazendo sozinha e trancada naquele lugar. Ela tinha que terminar o manuscrito, um livro e só faltava o último capítulo da obra, o derradeiro a bem da verdade.

A escritora de meia idade percebeu que não tinha papel a mão, ela se levantou da confortável cadeira de trabalho, as pernas doíam, latejavam e os olhos estavam embaçados. Ela desistiu de se erguer na primeira tentativa, conseguiu na segunda tentativa e por fim partiu na busca das resmas de papel. As resmas estavam a poucos metros em um armário atrás dela,  

 Ao caminhar em direção ao estoque e papel, no meio do caminho a escritora sentiu uma incontrolável vontade de fumar um cigarro e beber algo forte. Ela foi encontrar os cigarros aromáticos e importados do oriente no bolso do tailleur. A escritora parou de caminhar e tirou um cigarro da cigarreira, e um isqueiro do bolso, ela acendeu um cigarro, tragou e o gosto almiscarado entorpeceu a mente da escritora a sensação de prazer a fez relaxar. Para beber, a escritora pensou em ir à adega no porão, mas não, ela lembrou da garrafa de uísque, um presente de um crítico literário, a bebida cara vinha do frio norte da Europa. Curiosamente a garrafa estava guardada na prateleira onde estavam as resmas de papel. Fabiana com o cigarro na boca, ela pegou uma resma de papel e com uma mão e com outra pegou a garrafa de uísque.

Ela se virou com uma resma de papel e a garrafa de uísque na outra, com a firme ideia de até a escrivaninha. Com dificuldades, ela abriu a garrafa de uísque e se deu conta da falta de um copo no ateliê. A escritora não pensou duas vezes, cuspiu o cigarro no chão e ela ergueu a garrafa, tomou direto do gargalo da garrafa . Fabiana De Lima trôpega retomou a marcha, a passos lentos, ela estava entorpecida pelos vapores do cigarro aromático e pelo uísque, ela parou de novo e fui até a janela do escritório. Ela moveu a cortina da janela e percebeu que agoniza o arrebol. Era um esplêndido pôr do sol em seus esplendores e de repente uma ave negra grasnou ao longe.

Fabiana De Lima, a proeminente escritora sênior, refletiu nos abissais e tortuosos caminhos escuros que a levaram até ali. E se ela merecia ou não ver o vislumbre derradeiro, se o preço a ser pago era mesmo este. Não, ela não merecia ver o tal negro vislumbre astral, para se unir aos outros humanistas.  Mesmo que o mistério a ser desvendado valeria toda a dura caminhada.         

Fabiana pensou e pensou de novo no que seria uma saída honrosa. Ela teria que terminar o livro e a obra iria ser submetida ao conselho, para ser validado ou excluído. Ou mesmo o pior, ela seria classificada como obra menor esquecida em qualquer lugar. O caminho seria outro, afinal de contas Fabiana chegou à conclusão que a vida era dela, há ela pertence e a mais ninguém. E uma lágrima de ébano brotou nos olhos de Fabiana De Lima. Escorreu e caiu ao chão.

E ela sorriu e caminhou de volta à escrivaninha, sentou, postou a garrafa de uísque na escrivaninha. Ela pegou outro cigarro, acendeu e deu uma longa e prazerosa tragada, depois apagou no cinzeiro

E agora? Quem? Quem faria o serviço? Quem a libertaria de todas as atrozes dores e infindáveis dúvidas? Madalena seria o ideal! Aquele ser amorfo que se escondia em si, a fera enjaulada que se levantava no meio da noite para se libertar e se esconder na luz do dia claro.

Sim, era Madalena. E a escritora acoplou o papel hialino na máquina de escrever, o ranger do encontro do orgânico com o metal emocionou a escritora, ao ajustar o papel na máquina de escrever era o brado libertador de Fabiane De Lima.

Entre o som do martelar dos ágeis dedos da escritora, nas teclas da máquina de escrever, atrás dela a porta se abriu e a luz inundou a sala acabando com a semi escuridão. Na porta, apareceu uma imponente major, com seu uniforme impecável, cabelo negro preso e olhos negros rasgados e vazios, ela se aproximou até onde estava a escritora. Os sons, das solas dos pesados coturnos no chão de madeira, não tiraram a concentração de Fabiana. A major de baixa estatura, ficou parada atrás da escritora de meia idade, a major sacou do coldre uma Tokarev TT-30. A agente do serviço secreto de segurança, a militar de média patente do NKVD, apontou a arma e engatilhou e por fim disparou, o estampido ecoou e tomou conta do ambiente. O cheiro de carne queimada se misturou com o do cigarro oriental, que queimava no cinzeiro e a garrafa de uísque caiu e a bebida escorreu no chão. O uniforme impecável, ainda estava impecável quando ela deixou o escritório e o jovem corpo sem vida da escritora que jazia sentada diante da máquina de escrever. 

Sentada na cadeira, no ateliê de Fabiana De Lima, a escritora despertou de forma abrupta. E o olor de um perfume almiscarado se misturava com um sabor ocre na boca, também pairava no ar o cheiro de cobre e o eflúvio sutil de carne queimada.

***

Madalena Azumi abriu os seus olhos e sonâmbula demorou uma eternidade para perceber onde estava. No alto, um céu azul sem nuvens, grasnar de aves marinhas, uma brisa outonal e um forte cheiro de água salgada denunciavam que estava no mar, ou perto dele pelo menos. Ela notou a presença de homens e mulheres uniformizados e caças de combate estacionados ao lado dela. Eram evidências concretas que estava em um navio de guerra, um porta aviões.

Flashes contínuos de uma vida remota, chegavam rápido e sem aviso algum. Era ela em um quarto, em uma cama enorme, com lençóis brancos de linho. Ela completamente despida com uma bela mulher negra corpulenta, de longos cabelos lisos dourados, olhos pequenos e rasgados, voraz por sexo e prazer extremo. Depois ela se via criança vagando a esmo por um vilarejo pobre, em um país perdido em meia a montanhas. As pessoas do vilarejo apontavam para ela e furiosos praguejavam em uma estranha língua, que ela não compreendia. Um homem idoso vestido como um sacerdote a pegando pelos braços e a entregou para um outro homem uniformizado, um jovem militar. Madalena se viu em um prédio moderno, cheio de militares, homens e mulheres e pessoas sisudas vestidas de branco. Ela se viu em uma alojamento com várias crianças de várias etnias, eram crianças assustadas e chorosas. Uma senhora idosa vestida de branco, bateu com força na face de uma criança negra. A mulher gritava alto, em um idioma, que Madalena não compreendia. Havia um pátio muito grande, ela estava perfilada com outras crianças mais velhas. E uma música tocou alto, era um hino marcial, um avião deu um voo rasante, um estrondo alto explodiu na mente de Madalena.

Agora de olhos bem abertos, Madalena estava de pé na frente de duas colunas de militares, estavam postados em posição de sentido. Madalena reconheceu os homens e mulheres de várias nacionalidades, eram oficiais de médias patentes. Madalena reconheceu todas e todos, ela sabia os nomes e as origens de cada um deles.

Madalena olhou os oficiais de comando, eram comandantes de campos, que estavam sentados por detrás de uma mesa. Madalena os reconheceu, um era o tenente-general Aristo de Sousa da Maia com seu uniforme angolano, o outro era o General de Divisão Adérito Muteia com seu uniforme de gala moçambicano, o major-general Aldo Maris com seu uniforme de gala russo e presidindo a mesa, estava o Contra-almirante Araquem Maximus com seu uniforme de gala russo.

Os militares de alta patente à mesa, estavam conversando muito baixo e animadamente. Madalena franziu seu rosto, para poder escutar o que eles conversavam de forma tão amigável. Mas só fragmentos chegaram até ela, as nomes Yara e Marcus Wolf e as palavras, total triunfo e células dizimadas chegam na mente de Madalena.

O contra-almirante se levantou e deu uma ordem unida em uma língua eslava, os ocupantes da mesa se levantaram e ficaram em posição de sentido, as duas filas de militares bateram os cascos. Madalena não soube o porquê, mas caminhou em meio as duas colunas, os militares desembainharam erguerem as suas espadas conforme ela passava em revista a tropa. Madalena Azumi se aproximou da mesa e o almirante caminhou até ela. O almirante falou alguma coisa que Madalena não entendeu, o almirante pregou uma medalha no peito de Madalena e deu um celo nos lábios de Madalena.

Ela olhou para a medalha e percebeu que trajava um uniforme militar com a patente de major.  A major chegou os olhos e quis voltar a viver em uma outra realidade, mas não poderia.  

Texto de Samuel da Costa, contista e novelista em Itajaí, Santa Catarina.  

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br 

 

 

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