Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
O passado é o passado, e o futuro é
incerto,
Hoje tudo que nos rodeia é tão
complexo e fluido,
E não podemos esquecer que o futuro
também
É uma questão de escolhas.
Fabiane Braga Lima
Ao subir as escadas do prédio, Luna pensou se tudo o que ela reivindicou,
estaria à sua espera, a máquina de escrever continental, as duas garrafas de
champagne Krug Rosé Brut, mergulhadas em um balde de gelo e um maço de cigarros
mentolados. A dramaturga ponderou para si, se os vizinhos acidentais, se
incomodariam com os barulhos, da velha máquina de escrever ou o forte olor
mentolado dos cigarros.
Ao chegar no quinto andar, Luna
percorreu, no corredor estreito, do velho e decadente prédio residencial, ela
divisou uma pequena mulher oriental, vestida com um delicado, sofisticado e
vermelho quimono japonês. Uma peça vinda diretamente do extremo oriente. Com
uma boquilha de jade, na mão esquerda, fumava um cigarro, um leque preto ornado
com um dragão amarelo. A mulher com o rosto coberto, com uma carregada
maquiagem, a mulher sorriu tímida para Luna. A dramaturga devolveu, com um
franco aceno com a cabeça, ao passar pela oriental. Uma leve e discreta
fragrância floral de jasmim, que emanava da pequena mulher oriental, não passou
despercebido por Luna.
No lado aposto, e um apartamento
afrente, havia um corpulento homem negro, com o corpo coberto de tatuagens, ele
tinha uma caixa de sapatos na mão, ele levantou a caixa para Luna. Em uma
língua estrangeira, ele disse que o mercado estava aberto. Atônita, consigo
mesma, Luna entendeu o que homem falou, em alto e bom tom, ele falou em língua
inglesa, com um forte sotaque dos guetos empobrecidos de Nova York. E em uma
olha mais apurada, a dramaturga reconheceu as roupas, que ele estava usando,
típicas das gangues de negros da costa leste, do distante país do norte.
Ao retomar a marcha, a escritora de meia idade voltou para a realidade e pensou
no que Camilla e Cacilda a impuseram. Deixar o mundo em vigília para trás e
experimentar um vislumbro, apenas um vislumbre do onírico, o mundo dos sonhos.
Luna ao mergulhar no mundo dos sonhos, experimentar todas as sensações
inimagináveis e impossíveis no mundo em vigila e abraçar Grege Sanders na beira
do negro abismo.
Luna queria entrar para o círculo íntimo,
das etéreas condessa Rodriguez e da negra imperatriz Sibelle Lopez. Mas o preço
era alto, a dramaturga deveria deixar para trás, o limitado mundo em vigília, e
sem olhar para trás. Caso Luna sobrevivesse ao pequeno teste a impuseram, algo
perigoso, mortal a bem da verdade.
A noite seria longa e os barulhos de
navios apitando, dos contêineres sendo movimentados, o perigoso comércio de
drogas ilegais no quarto ao lado e a sedenta clientela estrangeira, que a dita
gueixa receberia a cair da noite, não seria nada pelo que estava por vir.
Ao chegar no final do corredor, e adentrar no pequeno quarto e sala, Luna
fatiou o ambiente imerso na semiescuridão, e lá estava, ao lado de uma simples
cama de casal tubular, uma velha e rústica escrivaninha, uma obsoleta máquina
escrever alemã, uma confortável e moderna cadeira de escritório. Uma resma de
papel, ao lado de um sofisticado cinzeiro e um maço de cigarros mentolados.
Luna, entrou no apartamento sem pressa alguma, colocou o sobretudo no cabideiro
madeira Kandu, que estava ao lado da porta, o frigobar retrô ao lado do
cabideiro chamou a atenção da escritora. Luna se abaixou e abriu o frigobar
retrô e lá estava o balde de gelo, duas garrafas de champagne Krug Rosé Brut,
mergulhadas em gelo e uma sofisticada taça de fino cristal austríaco. Luna
sorriu e pensou: — Nenhuma surpresa até aqui! — A escritora ficou tentada a abrir
uma garrafa, e provar os sabores da fina bebida, mas como boa profissional
resistiu à tentação.
A escritora, encaminhou
até a escrivaninha, pegou o maço de cigarro, abriu, tirou um cigarro, levou até
a boca, tirou do bolso um isqueiro de prata, foi até a sacada e acendeu o
cigarro, ela olhou para o crepúsculo perdidamente.
— A noite vai ser longa! — Sussurrou Luna, na esperança que alguém nos confins
do universo a estaria velando por ela.
Na sacada do quinto andar, Luna divisou ao longe dois
satélites artificiais, eram dois drones militares, dois artefatos de
vigilância, que circundavam um prédio decadente. Luna pensou nos fatos que a
levaram até ali, naquele efêmero exílio involuntário, naquela zona de exclusão,
no velho centro comercial, próxima a zona portuária. Não demoraria muito e uma
voz metalizada e artificial a chamaria para a realidade, mas antes Luna queria
apreciar a fauna e a flora urbana, indo e vindo pelas ruas decrépitas. Famintos
cachorros sem donos, vagavam livres pelas ruas, cinco adolescentes negros se
preparavam para uma batalha de rima. Um velho músico com trajes típicos da
América central, o senhor com seu violão antigo, se retirava antes que a noite
quedasse. E os jovens conectaram seus obsoletos microfones, em uma moderna
caixa de som e começassem a batalha.
Um pouco mais longe, Luna admirou homens e mulheres, de pele de ébano,
com seus trajes multicoloridos, eles e elas estavam recolhendo suas bancas de
produtos falsificados. Luna viu os rappers felizes ao tirarem dos bolsos
comprimidos e a dramaturga calculou dois a três minutos até um homem ou mulher
da lei aparecer com um bastão em punho. Em um minuto e meio, a polícia montada
apareceu, era um casal de policiais que ergueram seus chicotes. O sincronizado
sobe e desce dos chicotes e gritos de dores e lamúrias que viram dos jovens não
comoveram Luna. Uma pequena amostra do se tornaria aquele lugar, ao cair na
noite.
A dramaturga olhou para câmera de vigilância, que estava a poucos metros dela,
a câmera que estava focada na ação da polícia se virou e passou a focar em
Luna. A escritora olhou bem para a câmera no alto do poste, Luna ergueu a mão
esquerda, com a mão fechada. A escritora abriu a mão e a fechou com força, a
grossa redoma de vidro, a prova de balas, se esmigalhou, Luna repetiu o ato e a
câmera explodiu em chamas.
— Então! Tu vais ter coragem mesmo? Vai mesmo compor a peça, para aquelas duas
demônias? — Uma voz doce ecoou na mente de Luna, que atormentou a escritora
mais que o comum. Ela não se lembrou de ligar, ou mesmo, ajustar a inteligência
artificial, mas se lembrou da própria mãe. A mãe de Luna deveria ter ajustado a
inteligência artificial, no modo babá, antes dela sair de casa. Assim pensou a
dramaturga.
Depois da avalanche tecnológica, que inundou todos os cantos do planeta, dos
grandes centros até as partes mais remotas do globo. A Inteligência artificial,
ou I.A, era a mais nova ferramenta digital, para pessoas que vivem sozinhas, ou
passam longos períodos em completa solidão. As recentes I.As, eram o que mais
se aproximavam de um ser humano, e cada modelo era adequado aos seus parceiros
humanos. Imagens projetadas, através de câmeras e dispositivos eletrônicos diversos,
ou simplesmente vozes projetadas, em alto falantes, ou mesmo, em parafernálias
eletrônicas minúsculas. Brincos de orelhas, botões de ternos, fones de ouvidos
acoplados a dispositivos eletrônicos, câmeras de vigilâncias projetavam
avatares, robôs aspiradores de pó foram adaptados para projetar os avatares e
os velhos relógios de pulso. As I.As eram acessíveis, baratas e cabiam em
qualquer lugar.
Àquela hora Luna torceu para que nenhuma imagem projetada estivesse atrás dela.
Mas estava, a escritora sentiu a presença digital de Elisa, sua amiga digital,
imposta pela mãe de Luna, desta tenra idade. Mas a escritora lembrou de onde
estava, estava uma zona de exclusão, onde se convencionou, não usar nada que
fosse eletrônico.
Ao cair da noite, ou próximo dela, poucas pessoas, que pensavam em circular
pelos arredores escuros da zona portuária e no mercado velho, não usavam
dispositivos eletrônicos. Ali não era recomendado usarem aparelhos eletrônicos
de qualquer tipo. Poucos homens e mulheres, geralmente da força de segurança,
eram os únicos que utilizavam mecanismos eletrônicos ali. Era um pressuposto,
uma regra não escrita, quem colocasse os pés naquela zona de exclusão estava,
ao cair da noite, o bom era andar sem tralhas eletrônicas.
A escritora lembrou das sombras que a
envolviam desde a tenra idade, que a acompanharam, por boa parte da vida. A
escritora também lembrou das sombras no olhar de Grege Sanders, as mesmas
sombras que envolviam e a sufocavam, vez ou outra. Luna vasculhou os bolsos,
foi até o casaco e também procurou um aparelho eletrônico qualquer e nada.
— Engraçado escutar vozes nesta altura
da vida! — Luna falou em alto e bom tom, mas ninguém respondeu, ela se dirigiu
até a escrivaninha. E a cara pálida de Cacilda tomou a mente de Luna, a
estranha criatura da noite, foi incisiva: — Tens que fazer um serviço para nós!
(Fragmento do livro: Sono Paradoxal, de Samuel da Costa)
Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário