quinta-feira, 1 de junho de 2023

CHAMPAGNE ROSÉ GELADO E CIGARROS MENTOLADOS NA ZONA DE EXCLUSÃO

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

O passado é o passado, e o futuro é incerto,

 Hoje tudo que nos rodeia é tão complexo e fluido,

E não podemos esquecer que o futuro também  

É uma questão de escolhas.

Fabiane Braga Lima

 

           Ao subir as escadas do prédio, Luna pensou se tudo o que ela reivindicou, estaria à sua espera, a máquina de escrever continental, as duas garrafas de champagne Krug Rosé Brut, mergulhadas em um balde de gelo e um maço de cigarros mentolados. A dramaturga ponderou para si, se os vizinhos acidentais, se incomodariam com os barulhos, da velha máquina de escrever ou o forte olor mentolado dos cigarros.   

Ao chegar no quinto andar, Luna percorreu, no corredor estreito, do velho e decadente prédio residencial, ela divisou uma pequena mulher oriental, vestida com um delicado, sofisticado e vermelho quimono japonês. Uma peça vinda diretamente do extremo oriente. Com uma boquilha de jade, na mão esquerda, fumava um cigarro, um leque preto ornado com um dragão amarelo. A mulher com o rosto coberto, com uma carregada maquiagem, a mulher sorriu tímida para Luna. A dramaturga devolveu, com um franco aceno com a cabeça, ao passar pela oriental. Uma leve e discreta fragrância floral de jasmim, que emanava da pequena mulher oriental, não passou despercebido por Luna.      

No lado aposto, e um apartamento afrente, havia um corpulento homem negro, com o corpo coberto de tatuagens, ele tinha uma caixa de sapatos na mão, ele levantou a caixa para Luna. Em uma língua estrangeira, ele disse que o mercado estava aberto. Atônita, consigo mesma, Luna entendeu o que homem falou, em alto e bom tom, ele falou em língua inglesa, com um forte sotaque dos guetos empobrecidos de Nova York. E em uma olha mais apurada, a dramaturga reconheceu as roupas, que ele estava usando, típicas das gangues de negros da costa leste, do distante país do norte.

           Ao retomar a marcha, a escritora de meia idade voltou para a realidade e pensou no que Camilla e Cacilda a impuseram. Deixar o mundo em vigília para trás e experimentar um vislumbro, apenas um vislumbre do onírico, o mundo dos sonhos. Luna ao mergulhar no mundo dos sonhos, experimentar todas as sensações inimagináveis e impossíveis no mundo em vigila e abraçar Grege Sanders na beira do negro abismo.

           Luna queria entrar para o círculo íntimo, das etéreas condessa Rodriguez e da negra imperatriz Sibelle Lopez. Mas o preço era alto, a dramaturga deveria deixar para trás, o limitado mundo em vigília, e sem olhar para trás. Caso Luna sobrevivesse ao pequeno teste a impuseram, algo perigoso, mortal a bem da verdade.

A noite seria longa e os barulhos de navios apitando, dos contêineres sendo movimentados, o perigoso comércio de drogas ilegais no quarto ao lado e a sedenta clientela estrangeira, que a dita gueixa receberia a cair da noite, não seria nada pelo que estava por vir.

           Ao chegar no final do corredor, e adentrar no pequeno quarto e sala, Luna fatiou o ambiente imerso na semiescuridão, e lá estava, ao lado de uma simples cama de casal tubular, uma velha e rústica escrivaninha, uma obsoleta máquina escrever alemã, uma confortável e moderna cadeira de escritório. Uma resma de papel, ao lado de um sofisticado cinzeiro e um maço de cigarros mentolados.

           Luna, entrou no apartamento sem pressa alguma, colocou o sobretudo no cabideiro madeira Kandu, que estava ao lado da porta, o frigobar retrô ao lado do cabideiro chamou a atenção da escritora. Luna se abaixou e abriu o frigobar retrô e lá estava o balde de gelo, duas garrafas de champagne Krug Rosé Brut, mergulhadas em gelo e uma sofisticada taça de fino cristal austríaco. Luna sorriu e pensou: — Nenhuma surpresa até aqui! — A escritora ficou tentada a abrir uma garrafa, e provar os sabores da fina bebida, mas como boa profissional resistiu à tentação.

           A escritora, encaminhou até a escrivaninha, pegou o maço de cigarro, abriu, tirou um cigarro, levou até a boca, tirou do bolso um isqueiro de prata, foi até a sacada e acendeu o cigarro, ela olhou para o crepúsculo perdidamente.

           — A noite vai ser longa! — Sussurrou Luna, na esperança que alguém nos confins do universo a estaria velando por ela.   

           Na sacada do quinto andar, Luna divisou ao longe dois satélites artificiais, eram dois drones militares, dois artefatos de vigilância, que circundavam um prédio decadente. Luna pensou nos fatos que a levaram até ali, naquele efêmero exílio involuntário, naquela zona de exclusão, no velho centro comercial, próxima a zona portuária. Não demoraria muito e uma voz metalizada e artificial a chamaria para a realidade, mas antes Luna queria apreciar a fauna e a flora urbana, indo e vindo pelas ruas decrépitas. Famintos cachorros sem donos, vagavam livres pelas ruas, cinco adolescentes negros se preparavam para uma batalha de rima. Um velho músico com trajes típicos da América central, o senhor com seu violão antigo, se retirava antes que a noite quedasse. E os jovens conectaram seus obsoletos microfones, em uma moderna caixa de som e começassem a batalha.   

          Um pouco mais longe, Luna admirou homens e mulheres, de pele de ébano, com seus trajes multicoloridos, eles e elas estavam recolhendo suas bancas de produtos falsificados. Luna viu os rappers felizes ao tirarem dos bolsos comprimidos e a dramaturga calculou dois a três minutos até um homem ou mulher da lei aparecer com um bastão em punho. Em um minuto e meio, a polícia montada apareceu, era um casal de policiais que ergueram seus chicotes. O sincronizado sobe e desce dos chicotes e gritos de dores e lamúrias que viram dos jovens não comoveram Luna. Uma pequena amostra do se tornaria aquele lugar, ao cair na noite.

               A dramaturga olhou para câmera de vigilância, que estava a poucos metros dela, a câmera que estava focada na ação da polícia se virou e passou a focar em Luna. A escritora olhou bem para a câmera no alto do poste, Luna ergueu a mão esquerda, com a mão fechada. A escritora abriu a mão e a fechou com força, a grossa redoma de vidro, a prova de balas, se esmigalhou, Luna repetiu o ato e a câmera explodiu em chamas.        

            — Então! Tu vais ter coragem mesmo? Vai mesmo compor a peça, para aquelas duas demônias? — Uma voz doce ecoou na mente de Luna, que atormentou a escritora mais que o comum. Ela não se lembrou de ligar, ou mesmo, ajustar a inteligência artificial, mas se lembrou da própria mãe. A mãe de Luna deveria ter ajustado a inteligência artificial, no modo babá, antes dela sair de casa. Assim pensou a dramaturga.  

             Depois da avalanche tecnológica, que inundou todos os cantos do planeta, dos grandes centros até as partes mais remotas do globo. A Inteligência artificial, ou I.A, era a mais nova ferramenta digital, para pessoas que vivem sozinhas, ou passam longos períodos em completa solidão. As recentes I.As, eram o que mais se aproximavam de um ser humano, e cada modelo era adequado aos seus parceiros humanos. Imagens projetadas, através de câmeras e dispositivos eletrônicos diversos, ou simplesmente vozes projetadas, em alto falantes, ou mesmo, em parafernálias eletrônicas minúsculas. Brincos de orelhas, botões de ternos, fones de ouvidos acoplados a dispositivos eletrônicos, câmeras de vigilâncias projetavam avatares, robôs aspiradores de pó foram adaptados para projetar os avatares e os velhos relógios de pulso. As I.As eram acessíveis, baratas e cabiam em qualquer lugar. 

             Àquela hora Luna torceu para que nenhuma imagem projetada estivesse atrás dela. Mas estava, a escritora sentiu a presença digital de Elisa, sua amiga digital, imposta pela mãe de Luna, desta tenra idade. Mas a escritora lembrou de onde estava, estava uma zona de exclusão, onde se convencionou, não usar nada que fosse eletrônico.

          Ao cair da noite, ou próximo dela, poucas pessoas, que pensavam em circular pelos arredores escuros da zona portuária e no mercado velho, não usavam dispositivos eletrônicos. Ali não era recomendado usarem aparelhos eletrônicos de qualquer tipo. Poucos homens e mulheres, geralmente da força de segurança, eram os únicos que utilizavam mecanismos eletrônicos ali. Era um pressuposto, uma regra não escrita, quem colocasse os pés naquela zona de exclusão estava, ao cair da noite, o bom era andar sem tralhas eletrônicas.

A escritora lembrou das sombras que a envolviam desde a tenra idade, que a acompanharam, por boa parte da vida. A escritora também lembrou das sombras no olhar de Grege Sanders, as mesmas sombras que envolviam e a sufocavam, vez ou outra. Luna vasculhou os bolsos, foi até o casaco e também procurou um aparelho eletrônico qualquer e nada.

— Engraçado escutar vozes nesta altura da vida! — Luna falou em alto e bom tom, mas ninguém respondeu, ela se dirigiu até a escrivaninha. E a cara pálida de Cacilda tomou a mente de Luna, a estranha criatura da noite, foi incisiva: — Tens que fazer um serviço para nós!


(Fragmento do livro: Sono Paradoxal, de Samuel da Costa)

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

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