sexta-feira, 1 de março de 2024

CLARISSE CRISTAL E O AMANHECER DE UM NOVO DIA

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

Olho para trás

Preciso ver o que perdi

Tentar sentir novamente

O que já não existe mais

O que ficou para trás

***

Mas creio que não sobrou muita coisa

Do nosso sacrossanto amor

Minha divina Luna

Não sobrou muita coisa

 Para nós dois, meu negro anjo

 

            Clarisse Cristal, viu o alvor da luz de um novo dia, um despontar lento no horizonte infinito, um nascer do dia como jamais sentira na jovem vida. Ela olhou maravilhada para o oceano Atlântico, para o astro rei soberano, como só ele sabe ser, impondo a forte luz laranja, em meio às nuvens cinzas e as águas verde mar. Sim, aquele era um novo dia de fato, o primeiro de muitos que sucederam dali para frente, foi uma promessa que ela fez para si naquele exato momento.

          A bibliotecária, parada e de pé, na sacada do requintado apartamento, de cobertura, do emérito professor luso-africano Adérito Muteia. Ela estava extasiada e contemplando o esplendor do amanhecer de um novo dia no novo mundo. Ela completamente nua, o perfeito corpo negro, mais parecia uma escultura vivida de ébano, que se confundia e se completava harmoniosamente com, a decoração estilo neoclássica da casa do misterioso luso-africano.

         E em um olhar mais apurado, contudo parecia que era peça que faltava, para quebrar o rigor estético e simétrico neoclássico do lugar. Clarisse Cristal escutou o forte ronronar do dono da casa, não muito distante dela. Ele que estava também nu e deitado na enorme e confortável cama de casal vitoriana, ladeado com as imponentes cabeceiras douradas, dois abajures um ligado e outro apagado e capitonê! O ronronar que evolui para balbucios em um dialeto africano de forma brusca. Ela não gostou, nem um pouco, de vê-lo tão angustiado assim, era um pesadelo, ela intuiu o óbvio naquela hora onde os sentimentos bons e ruins se misturavam para o além do imaginável. Pois ele era um fruto proibido, que ela acabara de provar e as consequências não tardariam a chegar, tão certo quanto o nascer do sol que ela contemplava naquele momento. E as evidências estavam espalhadas por todo o amplo apartamento ricamente decorado e em especial em uma pintura de um retrato de tamanho natural. Uma reprodução mais que perfeita da fotografia, que ela vira a poucas horas passadas na sacada do Café Ivory Tower. Clarisse, reconheceu o trabalho, e não tinha como não reconhecer, era uma obra de um jovem artista negro que fora estudar belas artes na Alemanha, há tempos atrás, era um conhecido discípulo de Adérito Muteia. O quadro, um produto do movimento do romantismo, que detinha um ar mais aristocrático do que a fotografia, o precioso quadro estava postado no hall de entrada do apartamento. E era um poderoso recado, para quem por ali chegasse pela primeira vez, de quem mandava ali. A dona da casa era Agnela e aquele homem é só seu. A casa era dela e as marcas estavam em toda parte, das peças caras, raras e artesanalmente produzidas do mobiliário, planejado que por fim se misturavam harmonicamente, com as pequenas peças de decoração baratas compradas nas lojinhas ali na esquina. Eram artigos da cultura afro-brasileira e indígena, frutos da produção em massa, Clarisse calculou que era para quebrar o rigor neoclássico e aplacar o gosto do homem da casa. Nada de excessos, nada de exageros, nada em demasia, ali reinava a harmonia, a perfeição, a simplicidade e o bom gosto estavam em toda parte para onde se olhava e por fim o equilíbrio entre o caro e o barato, o artesanal e o fabricado em massa. Clarisse viu a mão leve e talentosa de Agnela, em tudo e uma leve supervisão de Adérito. Também em pequenos detalhes, nas cores principalmente vivas e fortes que remetiam à África, aos povos das florestas e nos livros à mostra.

            Clarisse respirou fundo, esticou a braço esquerdo, foi até a sua bolsa tiracolo bege para notebook, que estava posta em uma cômoda. Ela nem se importou em checar o celular e o tablete as inúmeras mensagens em vários aplicativos e chamadas perdidas, na verdade nem cogitou a possibilidade. Ela divagou um pouco sobre o clube virtual formado só de mulheres e para mulheres, o grupo sutiã vermelho e das longas trocas de mensagens proibidas para homens. Eram tolas reminiscências da outra vida, onde tudo era superficial, fluido e urgente, nada era nada e tudo era tudo. A jovem mulher tirou da bolsa um notebook e foi ocupar uma cômoda não muito longe dali. Sim, ela ocuparia a mesa de trabalho do enigmático literato luso-africano Adérito Muteia, por um breve momento. Era um sonho muito distante, se revelou uma perigosa realidade, com infinitas possibilidades e nenhuma delas era boa de fato fosse para quem fosse. 

Fragmento do livro: Em dias de sol e calor, em noite de tempestades e frio. Texto de Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina. 

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br 

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