Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Olho
para trás
Preciso
ver o que perdi
Tentar
sentir novamente
O
que já não existe mais
O
que ficou para trás
***
Mas
creio que não sobrou muita coisa
Do
nosso sacrossanto amor
Minha
divina Luna
Não
sobrou muita coisa
Para
nós dois, meu negro anjo
Clarisse Cristal, viu o alvor da luz de um novo dia, um despontar lento no
horizonte infinito, um nascer do dia como jamais sentira na jovem vida. Ela
olhou maravilhada para o oceano Atlântico, para o astro rei soberano, como só
ele sabe ser, impondo a forte luz laranja, em meio às nuvens cinzas e as águas
verde mar. Sim, aquele era um novo dia de fato, o primeiro de muitos que
sucederam dali para frente, foi uma promessa que ela fez para si naquele exato
momento.
A bibliotecária, parada e de pé, na sacada do requintado apartamento, de
cobertura, do emérito professor luso-africano Adérito Muteia. Ela estava
extasiada e contemplando o esplendor do amanhecer de um novo dia no novo mundo.
Ela completamente nua, o perfeito corpo negro, mais parecia uma escultura
vivida de ébano, que se confundia e se completava harmoniosamente com, a
decoração estilo neoclássica da casa do misterioso luso-africano.
E em um olhar mais apurado, contudo parecia que era peça que faltava, para
quebrar o rigor estético e simétrico neoclássico do lugar. Clarisse Cristal
escutou o forte ronronar do dono da casa, não muito distante dela. Ele que
estava também nu e deitado na enorme e confortável cama de casal vitoriana,
ladeado com as imponentes cabeceiras douradas, dois abajures um ligado e outro
apagado e capitonê! O ronronar que evolui para balbucios em um dialeto africano
de forma brusca. Ela não gostou, nem um pouco, de vê-lo tão angustiado assim, era
um pesadelo, ela intuiu o óbvio naquela hora onde os sentimentos bons e ruins
se misturavam para o além do imaginável. Pois ele era um fruto proibido, que
ela acabara de provar e as consequências não tardariam a chegar, tão certo
quanto o nascer do sol que ela contemplava naquele momento. E as evidências
estavam espalhadas por todo o amplo apartamento ricamente decorado e em
especial em uma pintura de um retrato de tamanho natural. Uma reprodução
mais que perfeita da fotografia, que ela vira a poucas horas passadas na sacada
do Café Ivory Tower. Clarisse, reconheceu o trabalho, e não tinha como não
reconhecer, era uma obra de um jovem artista negro que fora estudar belas artes
na Alemanha, há tempos atrás, era um conhecido discípulo de Adérito Muteia. O quadro,
um produto do movimento do romantismo, que detinha um ar mais aristocrático do
que a fotografia, o precioso quadro estava postado no hall de entrada do
apartamento. E era um poderoso recado, para quem por ali chegasse pela primeira
vez, de quem mandava ali. A dona da casa era Agnela e aquele homem é só seu. A
casa era dela e as marcas estavam em toda parte, das peças caras, raras e
artesanalmente produzidas do mobiliário, planejado que por fim se misturavam
harmonicamente, com as pequenas peças de decoração baratas compradas nas
lojinhas ali na esquina. Eram artigos da cultura afro-brasileira e indígena,
frutos da produção em massa, Clarisse calculou que era para quebrar o rigor
neoclássico e aplacar o gosto do homem da casa. Nada de excessos, nada de exageros,
nada em demasia, ali reinava a harmonia, a perfeição, a simplicidade e o bom
gosto estavam em toda parte para onde se olhava e por fim o equilíbrio entre o
caro e o barato, o artesanal e o fabricado em massa. Clarisse viu a mão leve e
talentosa de Agnela, em tudo e uma leve supervisão de Adérito. Também em
pequenos detalhes, nas cores principalmente vivas e fortes que remetiam à
África, aos povos das florestas e nos livros à mostra.
Clarisse respirou fundo, esticou a braço esquerdo, foi até a sua bolsa tiracolo
bege para notebook, que estava posta em uma cômoda. Ela nem se importou em
checar o celular e o tablete as inúmeras mensagens em vários aplicativos e
chamadas perdidas, na verdade nem cogitou a possibilidade. Ela divagou um pouco
sobre o clube virtual formado só de mulheres e para mulheres, o grupo sutiã
vermelho e das longas trocas de mensagens proibidas para homens. Eram tolas
reminiscências da outra vida, onde tudo era superficial, fluido e urgente, nada
era nada e tudo era tudo. A jovem mulher tirou da bolsa um notebook e foi
ocupar uma cômoda não muito longe dali. Sim, ela ocuparia a mesa de trabalho do
enigmático literato luso-africano Adérito Muteia, por um breve momento. Era um
sonho muito distante, se revelou uma perigosa realidade, com infinitas
possibilidades e nenhuma delas era boa de fato fosse para quem fosse.
Fragmento
do livro: Em dias de sol e calor, em noite de tempestades e frio. Texto de
Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina.
Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br
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