sexta-feira, 1 de março de 2024

PONTO NULO NO CÉU: A SENTINELA

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

            O cabo Bruno Marques, perdeu a noção da realidade em que vivia, de quanto tempo estava naquele pesadelo vívido, parado, estático, em prontidão e olhando pela fresta da torre de observação para o nada. O fuzil FAL, com mira laser, estava na mão esquerda, os óculos de visão noturna estavam ajustados para módulo, de noite com forte nevoeiro. Os dois drones militares, que circulavam no alto do quartel, permitiam a visão clara do que ocorria, em volta do batalhão. Os dois aparelhos, de municiados e última geração, transmitiam alternadamente as imagens das muitas câmeras, instaladas nos drones de vigilância, para os óculos do cabo, em tempo real. O militar podia ajustar as câmeras dos drones, ele podia congelar as imagens, dar zoom, mudar para módulo para escaneamento térmico e o cabo também poderia retroagir as cenas, acessando os bancos de imagens.

            Nos seus exatos quinze anos de corporação, ele jamais vira tal coisa, como vinha ocorrendo ultimamente, eram burburinhos aqui e ali, geralmente dito em voz baixa e em tom de confidência, em trocas de turnos e horas de folgas. Eram rumores de uma possível volta a um passado, não muito distante, pois como em um prenúncio, corpos sem vida, de elementos do submundo, que antes se amontoavam em escuros becos e mal iluminadas vielas. Agora estranhamente, estavam aparecendo em ruas e avenidas movimentadas, tudo abafado por ordens que vinham de topo, de cima.

            Eram tempos de insurgências, de guerras subterrâneas, entre as internas do crime organizado, contra as forças do serviço de segurança pública. Rumores da quebra da paz armada, negociada pelos dirigentes das forças de segurança, com os comandantes do crime organizado. Tudo feito nas sombras, em tempos passados, mas não muito distante. Tudo mediado por políticos de profissão e o comando das organizações criminosas, tudo em nome do bem-estar da população em geral e os interesses variados. Tudo isso, foi bem antes do cabo Bruno Marques, entrar na corporação, mas eventos muito bem guardados, nas memórias coletivas dos que viviam, no baixo medievo local. E uma sombra negra, como a mais de todas as negras noites, se aproximava lentamente no horizonte e o militar de baixa patente, o cabo Bruno Marques, sentia bem isso, no seu âmago mais que profundo.                    

            Os óculos se auto ajustam, para modo de neblina densa, um dos drones vigilância parou de enviar imagens e dados, depois o outro também parou. Cabo Bruno Marques, não soube qual o motivo, mas olhou para o céu e viu uma estranha nuvem de pássaros. Era uma revoada que passava por cima do batalhão e depois partirá em direção das não muito distantes paras duas Torres Fiote-Xoclengue. Um grito primal inaudível, ecoou pelo tempo e pelo espaço, chegou no cabo Bruno, fazendo gelar a espinha e se perdendo no espaço, chegando nos recônditos mais obscuros do cosmo, alguém ou algo se regozijou.   

            — Então começou de novo, eu não estou mesmo maluco, ora essa! — O policial militar falou em voz alta, sem se importar, com as câmeras ali instaladas, que gravavam tudo que ele falava e fazia. E que alguém ou uma inteligência artificial, faria um relatório do que ocorreu no turno do cabo Bruno.  

            Ele bem sabia, que dali a pouco tudo, que fosse eletrônico, mecânico ou elétrico, iriam parar de funcionar ou funcionariam de formas precárias. Ele ainda teve o ímpeto de ajustar os óculos e olhar para o portal de entrada de acesso ao quartel e viu dois famintos cães vira-latas caramelo, que se aproximavam, mas de repente os óculos pararam de funcionar. A sentinela ainda tentou usar o rádio na mesa ao lado, mas o rádio comunicador analógico não estava funcionando. Como manda o protocolo, ele tentou usar o telefone móvel no cinturão, para avisar o comando, mas o telefone também não estava funcionando. A sentinela tirou os óculos de visão noturna e olhou para fora e viu que a neblina não parava de se adensar. A luz do posto de observação se apagou e as luzes de emergência começaram a funcionar automaticamente.       

            Marques se lembrou da figura do velho pai e as suas histórias de pescador, o velho pescador de profissão, filho e neto de pescadores artesanais, contava como de vez em quando, em alto mar aberto, surgia estas mesmas densas neblinas do nada, antes de um naufrágio ou acontecimento trágico. Marques nunca soube se era verdade ou não esta introdução dos relatos fantásticos, que o velho pai contava.

      A figura do velho pescador esvaeceu, quando um outro militar apareceu do nada, quebrando o protocolo militar, pois sempre havia um aviso prévio, nas trocas de turnos fosse qual fosse as funções, para evitar acidente e outros constrangimentos. Era um sargento, que estava vestido com uma calça cáqui, coturnos bem engraçados, uma camisa preta e uma toca ninja. Marques ficou em posição de sentido, o cabo viu a patente de sargento no ombro esquerdo do militar, era um policial especializado, membro do serviço de inteligência. O que por si só explicava, a falta do sobrenome no uniforme, somente um número aleatório.

          — Descansar cabo! O velho quer bater um papo amigo contigo! — Disse o sargento.

          — O velho senhor? — Perguntei confuso.

          — O tenente-coronel Moreira César, ele que ter a honra de gastar um latim, com a vossa senhoria cabo é simples assim. O homem está ansioso, te esperando, na sala dele, entre sem bater, assim disso o velho, nada de salamaleques funcionalistas da academia militar, hoje não meu estimado. — Respondeu de forma informal o sargento.

        O cabo Marques, sem entender nada, sem saber o que fazer, ficou calado e um silêncio constrangedor se abateu na torre sul, de observação. Sobre o linguajar inculto do sargento, o cabo Bruno, creditou ao fato do sargento ser uma célula de infiltração.

          O sargento ficou parado e levantou a mão ao ar, a poucos centímetros do cabo Bruno, sem falar nada, pedindo para o cabo repassar o fuzil, e a sentinela repassou a arma para o sargento.

            — A pistola também cabo, faça o obséquio, de me passar todas as armas, que estiver carregando. É uma ordem cabo, por favor não faça o homem esperar muito, pois nunca vi o velho com tanto bom humor, como vi hoje. — Ordenou o sargento em voz de comando! — E continuou— Nada de salamaleques! E nada de funcionalismos da academia militar, meu estimado!

            A sentinela, sorriu nervoso, passou as armas para o superior imediato, e sentiu um enorme calafrio na espinha, pois tinha medo do desconhecido, tinha pavor de tudo que não compreendia. O cabo bem sabia, que algo ruim estava acontecendo naquela hora: — Nada de salamaleques! Nada funcionalismo da academia militar! Meu estimado!  Eram códigos mais que desconhecido, era incompreensível ao extremo, pelo menos no meio marcial, no qual o cabo fora treinado. Daí o cabo Bruno pensou, que o serviço de inteligência, deveria operar assim mesmo, de maneira informal, que se estendiam ao meio militar, pois eles não só coletam dados e sim trabalhavam infiltrados nas organizações do crime organizado. O serviço de inteligência, era conhecido e reconhecido por não se misturar, com as outras unidades, por questões óbvias. Pois nada incomum, que agentes públicos e agentes dos serviços de segurança pública, se misturarem, se associarem, com pequenos criminosos e até organizações criminosas. O militar bateu continência, para seu superior e deu as costas para o outro até ser impedido de continuar a andar, pois a mão do sargento segurou-lhe o ombro com muita força.  

            — Eu disse todas as armas cabo, tirar o colete, a Beretta, o comunicador auricular, a faca e o canivete também. Passa agora para cá! Vamos! — Ordenou o cabo.

            Passado o desconforto inicial, o cabo passou todo o seu equipamento de serviço, para o sargento, por um breve momento. Marquês pensou que iria ter que tirar toda a roupa, ou ser revistado pelo superior hierárquico, como se fosse um marginal de rua qualquer. O sargento colocou todo o equipamento em cima da pequena mesa e então tirou a toca ninja. O cabo reconheceu de imediato, o sargento Alexander, o instrutor chefe de armas e responsável pelos equipamentos bélicos do batalhão, era o melhor atirador de elite do quartel, assim diziam.

           O sargento Alexander, homem duro e cumpridor dos seus deveres, atento a todas as normativas militares e todos os protocolos funcionais de segurança. O cabo Marquês, muitas vezes ouviu o sargento bradar alto e bom som, que gostava mais das armas, do que das pessoas. Segundo o sargento, as pessoas não são confiáveis e em momentos de embates, o seu porto seguro, eram sempre elas, os armamentos que ele tinha em suas mãos. Assim pensava e dizia o sargento.

              — Cabo! Use as escadas, os elevadores não estão funcionando no momento. — Disse Alexander.

              — Mais alguma recomendação oficial? — Perguntou a sentinela.

              — Sim é claro, tire este desconfiado sorriso besta de civil, da cara e ande logo. Aqui a ordem unida é lei e o coronel não gosta de esperar. — Disse o sargento em tom marcial, contradizendo-se.

            A sentinela, deu as costas e seguiu em marcha, ao descer pelas escadas da torre sul de observação, o cabo teve outra estranha sensação. O corredor que levava a escadaria em caracol, parecia mais estreito e as próprias escadas, pareciam não ter fim quando ele avançou e olhou para baixo. Ao enfrentar a dura caminhada, o militar perdeu a noção de tempo de novo, parecia que as escadarias, de fato não tinham fim, o militar pensou que estava ficando louco.            

           Outro fato que chamou a atenção do militar, foi que ele não tinha visto o coronel Moreira Cesar, entrar no batalhão. Ele viu quando o coronel saiu sozinho e a pé do prédio, como ele sempre fazia, na mesma hora, antes do cabo perder a noção de tempo. E Marques não viu o militar de alta patente, voltar para o prédio. O batalhão, por motivos óbvios, tinha somente uma entrada, e outras três saídas alternativas, que só abrem por dentro. E caso elas fossem abertas, de qualquer forma, Marques e as outras sentinelas, postadas nas outras torres de observação, seriam informadas de imediato. As sentinelas seriam informadas, pelo sistema eletrônico, que controla os sensores das portas da saída e entrada, das janelas do prédio. E se o sistema falhasse os drones, os informariam da abertura, de qualquer das portas alternativas e das janelas. E por fim pelas câmeras internas de vigilância, que eram ativadas pelo movimento, também avisaram as sentinelas, das aberturas das portas e janelas. O fato era que o cabo Bruno Marques, estava mais que curioso, para saber onde aqueles corredores sombrios e seculares o levariam, se é que o levariam a algum lugar.

 

Fragmento do livro: Em dias de sol e calor, em noite de tempestades e frio. Texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

 

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