Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
O cabo Bruno Marques, perdeu a noção
da realidade em que vivia, de quanto tempo estava naquele pesadelo vívido,
parado, estático, em prontidão e olhando pela fresta da torre de observação
para o nada. O fuzil FAL, com mira laser, estava na mão esquerda, os óculos de
visão noturna estavam ajustados para módulo, de noite com forte nevoeiro. Os
dois drones militares, que circulavam no alto do quartel, permitiam a visão
clara do que ocorria, em volta do batalhão. Os dois aparelhos, de municiados e
última geração, transmitiam alternadamente as imagens das muitas câmeras,
instaladas nos drones de vigilância, para os óculos do cabo, em tempo real. O
militar podia ajustar as câmeras dos drones, ele podia congelar as imagens, dar
zoom, mudar para módulo para escaneamento térmico e o cabo também poderia
retroagir as cenas, acessando os bancos de imagens.
Nos seus exatos quinze anos de corporação, ele jamais vira tal coisa, como
vinha ocorrendo ultimamente, eram burburinhos aqui e ali, geralmente dito em
voz baixa e em tom de confidência, em trocas de turnos e horas de folgas. Eram
rumores de uma possível volta a um passado, não muito distante, pois como em um
prenúncio, corpos sem vida, de elementos do submundo, que antes se amontoavam
em escuros becos e mal iluminadas vielas. Agora estranhamente, estavam
aparecendo em ruas e avenidas movimentadas, tudo abafado por ordens que vinham
de topo, de cima.
Eram tempos de insurgências, de guerras subterrâneas, entre as internas do
crime organizado, contra as forças do serviço de segurança pública. Rumores da
quebra da paz armada, negociada pelos dirigentes das forças de segurança, com
os comandantes do crime organizado. Tudo feito nas sombras, em tempos passados,
mas não muito distante. Tudo mediado por políticos de profissão e o comando das
organizações criminosas, tudo em nome do bem-estar da população em geral e os
interesses variados. Tudo isso, foi bem antes do cabo Bruno Marques, entrar na
corporação, mas eventos muito bem guardados, nas memórias coletivas dos que
viviam, no baixo medievo local. E uma sombra negra, como a mais de todas as
negras noites, se aproximava lentamente no horizonte e o militar de baixa
patente, o cabo Bruno Marques, sentia bem isso, no seu âmago mais que
profundo.
Os óculos se auto ajustam, para modo de neblina densa, um dos drones vigilância
parou de enviar imagens e dados, depois o outro também parou. Cabo Bruno
Marques, não soube qual o motivo, mas olhou para o céu e viu uma estranha nuvem
de pássaros. Era uma revoada que passava por cima do batalhão e depois partirá
em direção das não muito distantes paras duas Torres Fiote-Xoclengue. Um grito
primal inaudível, ecoou pelo tempo e pelo espaço, chegou no cabo Bruno, fazendo
gelar a espinha e se perdendo no espaço, chegando nos recônditos mais obscuros
do cosmo, alguém ou algo se regozijou.
— Então começou de novo, eu não estou mesmo maluco, ora essa! — O policial
militar falou em voz alta, sem se importar, com as câmeras ali instaladas, que
gravavam tudo que ele falava e fazia. E que alguém ou uma inteligência
artificial, faria um relatório do que ocorreu no turno do cabo Bruno.
Ele bem sabia, que dali a pouco tudo, que fosse eletrônico, mecânico ou
elétrico, iriam parar de funcionar ou funcionariam de formas precárias. Ele
ainda teve o ímpeto de ajustar os óculos e olhar para o portal de entrada de
acesso ao quartel e viu dois famintos cães vira-latas caramelo, que se
aproximavam, mas de repente os óculos pararam de funcionar. A sentinela ainda
tentou usar o rádio na mesa ao lado, mas o rádio comunicador analógico não
estava funcionando. Como manda o protocolo, ele tentou usar o telefone móvel no
cinturão, para avisar o comando, mas o telefone também não estava funcionando.
A sentinela tirou os óculos de visão noturna e olhou para fora e viu que a
neblina não parava de se adensar. A luz do posto de observação se apagou e as
luzes de emergência começaram a funcionar
automaticamente.
Marques
se lembrou da figura do velho pai e as suas histórias de pescador, o velho
pescador de profissão, filho e neto de pescadores artesanais, contava como de
vez em quando, em alto mar aberto, surgia estas mesmas densas neblinas do nada,
antes de um naufrágio ou acontecimento trágico. Marques nunca soube se era
verdade ou não esta introdução dos relatos fantásticos, que o velho pai
contava.
A
figura do velho pescador esvaeceu, quando um outro militar apareceu do nada,
quebrando o protocolo militar, pois sempre havia um aviso prévio, nas trocas de
turnos fosse qual fosse as funções, para evitar acidente e outros
constrangimentos. Era um sargento, que estava vestido com uma calça cáqui,
coturnos bem engraçados, uma camisa preta e uma toca ninja. Marques ficou em
posição de sentido, o cabo viu a patente de sargento no ombro esquerdo do
militar, era um policial especializado, membro do serviço de inteligência. O
que por si só explicava, a falta do sobrenome no uniforme, somente um número
aleatório.
—
Descansar cabo! O velho quer bater um papo amigo contigo! — Disse o sargento.
—
O velho senhor? — Perguntei confuso.
— O tenente-coronel Moreira César, ele que ter a
honra de gastar um latim, com a vossa senhoria cabo é simples assim. O homem
está ansioso, te esperando, na sala dele, entre sem bater, assim disso o velho,
nada de salamaleques funcionalistas da academia militar, hoje não meu estimado.
— Respondeu de forma informal o sargento.
O cabo Marques, sem entender nada, sem saber o que fazer,
ficou calado e um silêncio constrangedor se abateu na torre sul, de observação.
Sobre o linguajar inculto do sargento, o cabo Bruno, creditou ao fato do
sargento ser uma célula de infiltração.
O
sargento ficou parado e levantou a mão ao ar, a poucos centímetros do cabo
Bruno, sem falar nada, pedindo para o cabo repassar o fuzil, e a sentinela
repassou a arma para o sargento.
— A pistola também cabo, faça o obséquio, de me passar todas as armas, que
estiver carregando. É uma ordem cabo, por favor não faça o homem esperar muito,
pois nunca vi o velho com tanto bom humor, como vi hoje. — Ordenou o sargento
em voz de comando! — E continuou— Nada de salamaleques! E nada de
funcionalismos da academia militar, meu estimado!
A sentinela, sorriu nervoso, passou as armas para o superior imediato, e sentiu
um enorme calafrio na espinha, pois tinha medo do desconhecido, tinha pavor de
tudo que não compreendia. O cabo bem sabia, que algo ruim estava acontecendo
naquela hora: — Nada de salamaleques! Nada funcionalismo da academia
militar! Meu estimado! — Eram códigos mais que
desconhecido, era incompreensível ao extremo, pelo menos no meio marcial, no
qual o cabo fora treinado. Daí o cabo Bruno pensou, que o serviço de
inteligência, deveria operar assim mesmo, de maneira informal, que se estendiam
ao meio militar, pois eles não só coletam dados e sim trabalhavam infiltrados
nas organizações do crime organizado. O serviço de inteligência, era conhecido
e reconhecido por não se misturar, com as outras unidades, por questões óbvias.
Pois nada incomum, que agentes públicos e agentes dos serviços de segurança
pública, se misturarem, se associarem, com pequenos criminosos e até
organizações criminosas. O militar bateu continência, para seu superior e deu
as costas para o outro até ser impedido de continuar a andar, pois a mão do
sargento segurou-lhe o ombro com muita força.
— Eu disse todas as armas cabo, tirar o colete, a Beretta, o comunicador
auricular, a faca e o canivete também. Passa agora para cá! Vamos! — Ordenou o
cabo.
Passado o desconforto inicial, o cabo passou todo o seu equipamento de serviço,
para o sargento, por um breve momento. Marquês pensou que iria ter que tirar
toda a roupa, ou ser revistado pelo superior hierárquico, como se fosse um
marginal de rua qualquer. O sargento colocou todo o equipamento em cima da
pequena mesa e então tirou a toca ninja. O cabo reconheceu de imediato, o
sargento Alexander, o instrutor chefe de armas e responsável pelos equipamentos
bélicos do batalhão, era o melhor atirador de elite do quartel, assim diziam.
O
sargento Alexander, homem duro e cumpridor dos seus deveres, atento a todas as
normativas militares e todos os protocolos funcionais de segurança. O cabo
Marquês, muitas vezes ouviu o sargento bradar alto e bom som, que gostava mais
das armas, do que das pessoas. Segundo o sargento, as pessoas não são
confiáveis e em momentos de embates, o seu porto seguro, eram sempre elas, os armamentos
que ele tinha em suas mãos. Assim pensava e dizia o sargento.
— Cabo! Use as escadas, os elevadores não estão funcionando no momento.
— Disse Alexander.
— Mais alguma recomendação oficial? — Perguntou a sentinela.
— Sim é claro, tire este desconfiado sorriso besta de civil, da cara e
ande logo. Aqui a ordem unida é lei e o coronel não gosta de esperar. — Disse o
sargento em tom marcial, contradizendo-se.
A sentinela, deu as costas e seguiu em marcha, ao descer pelas escadas da torre
sul de observação, o cabo teve outra estranha sensação. O corredor que levava a
escadaria em caracol, parecia mais estreito e as próprias escadas, pareciam não
ter fim quando ele avançou e olhou para baixo. Ao enfrentar a dura caminhada, o
militar perdeu a noção de tempo de novo, parecia que as escadarias, de fato não
tinham fim, o militar pensou que estava ficando
louco.
Outro
fato que chamou a atenção do militar, foi que ele não tinha visto o coronel
Moreira Cesar, entrar no batalhão. Ele viu quando o coronel saiu sozinho e a pé
do prédio, como ele sempre fazia, na mesma hora, antes do cabo perder a noção
de tempo. E Marques não viu o militar de alta patente, voltar para o prédio. O
batalhão, por motivos óbvios, tinha somente uma entrada, e outras três saídas
alternativas, que só abrem por dentro. E caso elas fossem abertas, de qualquer
forma, Marques e as outras sentinelas, postadas nas outras torres de
observação, seriam informadas de imediato. As sentinelas seriam informadas,
pelo sistema eletrônico, que controla os sensores das portas da saída e
entrada, das janelas do prédio. E se o sistema falhasse os drones, os
informariam da abertura, de qualquer das portas alternativas e das janelas. E por
fim pelas câmeras internas de vigilância, que eram ativadas pelo movimento,
também avisaram as sentinelas, das aberturas das portas e janelas. O fato era
que o cabo Bruno Marques, estava mais que curioso, para saber onde aqueles
corredores sombrios e seculares o levariam, se é que o levariam a algum lugar.
Fragmento
do livro: Em dias de sol e calor, em noite de tempestades e frio. Texto de
Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária em Balneário
Camboriú, Santa Catarina.
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