Por Clarisse Cristal (Itajaí, SC)
Olhe bem para os olhos
meus
Minha querida
Pois é última vez que os
verá
Parto hoje no dilúculo
Parto para sempre
E para nunca mais
voltar
Ela olhou para trás e pode contemplar o homem deitado na cama, ele
resmungava em um dialeto africano e se debatia levemente. Por um breve momento
Clarisse Cristal quis compreender o que ele balbuciava naquela hora. Um
devaneio somente, pois ela já tinha muitas coisas com que se preocupar,
terminar o que tinha começado antes de tudo antes de tudo. A jovem
mulher então elevou de forma bem lenta as delicadas e hialinas mãos, até o
teclado do microcomputador, e ela ligou no piloto automático, pois o texto para
a revista de arte e literatura Astro-domo, já estava mais que pronto e agora
era só fazer brotar na tela do aparelho.
Epílogo 1:
Reminiscências de um passado que não passou
Fui encontrar Adérito Muteia, um ícone
cult da literatura subterrânea da atualidade, no deck do Café Ivory Tower, em
meio de flores negras e as flores vagas, tendo o mar como testemunha. ‘’Nada
é de verdade e vivemos em um mundo de mentiras e de doces ilusões, minha
querida Clarisse Cristal!’’ — Confidenciou-me o grande escritor,
poeta, ensaísta, crítico de arte e professor africano de literatura moderna e
pós-moderna.
Sim, subterrâneo e com o direto as todas as negras linhas em imaculadas
páginas em branco, deste mundo e de outros mundos também. Pois o artista neossimbolista
e neossurrealista luso-africano se escondeu, até a pouco tempo, se resguardava
entre vários pseudônimos e heterônimos.
A obra do pensador Adérito Muteia está distribuída em textos disseminados em
várias revistas de pequenas tiragens, jornais obscuros, em livros de tiragens
limitadas, livros digitais, textos espraiados em redes sociais digitais e
opúsculos. Perguntei sobre o seu obscuro e nevoento passado de luta armada na
velha África e no norte da Europa, o professor luso-africano foi enfático:
— Fui abduzido das salas de aula que tanto amava e ainda amo, de forma
virulenta, fui convocado para luta armada, pela libertação do meu país natal,
países irmãos africanos e no norte do continente europeu. Eram tempos da guerra
fria, do dito mundo bipolar, do equilíbrio do terror. São coisas do passado,
não muito distante, minha querida Clarisse Cristal, de um mundo que já não
existe mais e que a tua geração não pode compreender em absoluto! —
Desconversou o professor luso-africano, não querendo aprofundar-se em demasiado
em fundas vermelhidões de velhas chagas, ainda abertas, que ainda escorrem em
rios, de um passado que na verdade não passou. Sobre as suas aventuras e desventuras
de guerrilheiro comunista no velho mundo, deixaram profundas marcas na
literatura de Muteia.
Prossigo a entrevista e perguntou sobre a profissão de escritor independente,
nos dias de hoje, de escrita cibernética, instantânea e rasa, na era da imagem
e da sociedade dos mega espetáculos e a resposta foi enfática: —
Escrever é transcender para além das infinitudes, é fugir das obviedades da
vida cotidiana! E não conhecer limites algum! — E para definir o que é
o mundo em que vivemos hoje o literato assim definiu: — O que é
realidade? No mundo de hoje, a realidade é o que a gente quer que ela seja por
fim! — E mostrando toda a sua perspicácia e tempo exato, em que as
coisas ocorrem, ao antecipar uma pergunta subsequente que estava na ponta da
minha língua: — E antecipando a tua inevitável pergunta, respondendo
que eu navego, ou melhor flano livremente, entre aos movimentos estéticos
simbolista e surrealista. Trafego livremente por estas tendências estéticas,
mesmo que esteja fora de moda falar em movimentos estéticos e literários nos
dias atuais. E vós digo que para os padrões de hoje, estás duas tendências
literárias e estéticas que mais podem representar o que costumeiramente se
chama pós-modernidade! E te digo do alto da minha frágil mente difusa, que
estes dois movimentos estéticos, um pré-modernista e outro modernista, são as
linhas mestres estéticas, que melhor definem o pós-modernismo caótico
contemporâneo em que vivemos hoje, o dito mundo liquefeito, como nominou um
filósofo do leste europeu!
O catedrático prosseguiu a conferência, me dizendo que no passado, não muito
distante da humanidade, a arte escrita, em específico, era produzida no bico da
pena, tinta, mata-borrão, papel e iluminada por luzes de velas e lampiões,
produzida por poucos e consumida por poucos. E tudo mudou, avançou com o
processo da mecanografia, da cultura de massa. Então livros, jornais e revista
passam a ser produzidos em larga escala e para uma população cada vez mais
maior e urbanizada e o letramento se expandiu a índices nunca visto pela
humanidade: — Escritores, e artistas em geral, deixaram o mundo seguro
da proteção de poderosos potentados, de reis e rainhas, da elite monárquica e
de ricos mecenas. Escritores, e artistas em geral, passaram a servirem e serem
sustentados por um público leitor/consumidor de artes, da então nascente
cultura de consumo em massa. Isso tudo predominantemente no dito ocidente
judaico/cristão e greco-romano no novo e velho mundo. — E em uma
divagação sobre passado, presente e futuro, Muteia evoca a Akademos. A academia
fundada por Platão, que foi construída nos jardins consagrados em homenagem ao
herói ateniense Academus, um dos heróis troianos, da mais que famosa Guerra de
Troia (século XII a.C.), que originou o nome Academia.
Nas palavras de Muteia: — Se no passado mais distante os pensamentos,
as dúvidas e as divagações mais profundas eram restritos para poucos, na
academia e lugares de meditação. Os atuais avanços tecnológicos, vulgarizaram
demais o saber, a tal ponto que promoveu os tolos, os imbecis e os rasos de
pensamentos em sábios e catedráticos, que no passado somente falavam para uma
diminuta população também de tolos, imbecis e rasos. Mesmo que se de um lado o
conhecimento esteja democratizado, pelo menos um pouco mais, há hoje uma enorme
biblioteca pública digital e acessível a um crescente público, porém há uma
enorme cidade de pessoas produzindo muitas inutilidades, promovendo massacres
teóricos e banalizando questões seriíssimas.
Para finalizar esta primeira parte da longa entrevista, com o emérito professor
luso-africano Adérito Muteia. E com a promessa, de irmos até o cerne da
produção literária do proeminente professor e pôr fim ao semianonimato do
literato luso-africano. Ficam muitas perguntas e poucas respostas no ar para
serem desenhadas por Adérito Muteia e captadas em um gravador digital e
trespassada para o subconsciente e inconsciente meu para depois ganharem vida
própria nas páginas da revista da Astro-domo.
Fragmento do livro Em dias de sol e calor, em noite
de tempestades e frio, de Clarisse Cristal, contista, poeta e novelista em
Itajaí, Santa Catarina.
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