sexta-feira, 1 de março de 2024

OPERA MUNDI (DE TUDO QUE TE É AVARO)

 Por Samuel da Costa (Itajaí, SC) e Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

''Dê-me tua mão, diz que tem saudade…

Esqueça nosso árduo passado, vaidade

Meu corpo febril, aqueça, junto ao teu

Sem receio, diz que me deseja, sempre.''

Fabiane Braga Lima

 

           Lenny passou em revista os seus equipamentos de trabalho, disposto na pequena bancada de trabalho. Dispostas, de forma aleatória, as sofisticadas e importadas máquinas fotográficas. Dos últimos modelos lançados no mercado mundial, passando por ultrapassadas máquinas analógicas, indo parar em os caros celulares e tablets. Mas, tinha a metálica voz, a orientação do pai: — Filme e fotografe tudo com equipamentos analógicos, nada destas bobagens eletrônicas atuais!

           — Madalena! Traga o teu kit de trabalho! E a tua mochila! — A dona da casa, ainda estava olhando profundamente, para o que de melhor tem à sua disposição. Evitava olhar para a assistente de produção, como quem admite uma derrota inevitável.

          — Madame? — Atônita a assistente olha para o chão, sem saber o que fazer ou dizer.

          — A tua câmera bag, sua infeliz, aquela que te dei de presente, não sei quando! — Lenny se vira e jogou a chave do carro, para a assistente que pega no ar. — Deixa a tua motoneta velha, aqui e vá pegar tudo, o que tens em casa, os tripés não precisa, eu vou usar os meus. Vai guria! — O grito bem alto, da dona da casa, fez estremecer a pequena assistente de produção, que girou nos calcanhares e se dirigiu até a garagem da casa.

            Lenny bem sabia, que a assistente de produção tinha tudo o que ela precisava, naquela hora. A velha tecnologia mecânica, as velhas polaroides, os rollei flexes e uma série de velhas câmeras analógicas, equipamentos difíceis de encontrar no mercado. Colecionadora, da velha tecnologia fotográfica analógica, Madalena é a cara da corrente da foto-arte, ela é ligada umbilicalmente, de corpo e também de alma, ao movimento do romantismo. Madalena, é uma alma velha, uma pessoa de rara estirpe e difícil de ser encontrada.

           A jovem e sonhadora Madalena que é, não se encaixa mesmo, na atual avalanche da tecnologia digital, do entre séculos. Lenny também sabe do amor platônico da assistente por ela, muitas das vezes, Lenny pensou em levar a assistente de produção para a cama. Mas, Lenny não mistura a vida profissional, com vida pessoal, em definitivo as aventuras de Lenny, eram fora de casa e fora da esfera da vida profissional.

         Lenny olhou para o velho relógio na parede, não demoraria muito para as duas modelos chegarem e a fotógrafa partiu para o vestíbulo, foi até as araras separar os figurinos, que pretendia usar na secção de fotografias. A fotógrafa, pensa na mãe zelosa, se um dia visse a filha casula adorada, trabalhando de assistente de produção, a requintada senhora desmaiaria na hora. Lenny sorriu para si mesmo, pois nunca esteve tão feliz e realizada na vida. Ela não se sentia assim, nem mesmo quando dispensou o ex-namorado obtuso. Um jornalista bonachão, alto e acima do peso, frágil intelectualmente, um típico membro da classe média interiorana e praiana, com pretensões as classes altas, que não conhece nada, para além da segurança tranquila, do mundo que vive.

           A fotógrafa pensou em ligar para a assistente, para apressá-la, mas prefere ir até a varanda e acender um cigarro, os cigarros mentolados emprestados de Madalena. Cedo, Lenny pegou emprestado um maço, da balsa da assistente, sem pedir. A fotógrafa, não se reconhecia naquela hora, sempre fora livre é verdade, mas sempre sentiu um alguém, que lhe sussurrava ditames, aos seus ouvidos, um som quase inaudível. Ela sempre sentiu algo estranho e vago, de um não pertencimento profundo, de tempo e no espaço em que existia.

E de repente, vem uma lembrança difusa e distante da infância, uma lembrança vaga e adormecida, que ressuscitou atroz, uma visita inesperada, que o senhor Otto Von Blumenthau fizera. De forma abrupta, o político interrompeu as atividades corriqueiras na capital e sem avisar ninguém, ele foi se juntar à família, estavam todos de férias de verão, no litoral. A família toda, estavam na orla da praia, que a poucos dias tinha sofrido um engordamento da faixa areia, recentemente.

          Em um aparelho de rádio, um locutor histérico, que discursava contra o engordamento da faixa de areia da praia. O pai de Lenny, estava sentado em uma confortável cadeira alugada, para turistas, ele estava com o aparelho de rádio no colo. O portentoso senhor Otto Von Blumenthau, alheio ao que ocorria à volta dele, estava lendo um jornal, de circulação nacional, e o político tinha um portentoso charuto cubano apagado na boca. No céu azul, sem nuvens, as aves marinhas grasnavam no alto, a mãe de Lenny, como sempre, estava ao lado do marido. Ambos bem vestidos, com as suas respetivas e mediterrâneas roupas italianas de veraneio, o elegante casal, abrigado por um chamativo guarda-sol. E os irmãos de Lenny? A fotógrafa não sabia onde estavam, só ouvia eles que gritavam um para o outro: — A bola! A bola! Chuta a bola! — Os dois riram alto. Também tinha o vento ameno, o barulho do vento levantando as areias e as ondas que quebravam na orla da praia.

          E distante, tinha o álgido abismo gelado, Lenny caminhou até a beira do abismo álgido. A pequena Lenny, saiu de perto dos pais e caminhou e distante veio os gritos histéricos da mãe e Lenny voltou os olhos para trás. O pai baixou o jornal, ele ainda estava com o charuto na boca, agora aceso, naquela hora ele ergueu o jornal na altura dos olhos. E a mãe de Lenny, correu até ela e abraçou, a ergueu do chão e voltaram para onde estavam instalados. A Loretta, a mãe de Lenny, estava chorando, parou para gritar com a babá e para os seguranças particulares. Depois, de forma abrupta, se voltou para o marido incólume.

         — Vamos embora Otto, chega Otto, vamos voltar pra casa agora!!! Um bicho, ela chegou perto do bicho — Os gritos estridentes da esposa do político, chamaram a atenção de todos e todas.

          — Cala boca mulher! É só um sphyrna e ainda é só um filhote!

         — Um o que? — Disse atônita, a esposa do político.

         — Um pequeno tubarão-martelo, é um filhote ainda e ainda vai crescer! — Respondeu tranquilamente o político e continuou — Eu já vi maiores e mais vorazes, lá no congresso nacional! — Otto falou, com o charuto na boca, ele tinha se voltado os olhos para o jornal, enquanto Loretta chorava com a pequena Lenny nos braços. A babá sorria, os seguranças sorriam e o atormentado chefe de gabinete de Otto sorriu seco!

          De volta, ao tempo presente, a fotógrafa de profissão Lenny, acessou na mente a fotografia do filhote de tubarão-martelo, Otto mantinha reproduções da fotografia, em seus ambientes de trabalho. E de volta às lembranças da infância, onde o pai de Lenny a presenteara uma máquina fotográfica descartável, que Otto Von Blumenthau, tinha comprado de um vendedor ambulante na calçada da praia.

           O pai de Lenny, deu a ordinária máquina fotográfica, como quem dá um caríssimo brinquedo, cara para uma criança. Otto, simplesmente deu para a pequena Lenny, sem dizer nada, sem dar instruções. E lá foi, feliz da vida, a pequena Lenny, tirar uma fotografia do pequeno Sphyrna. O pequeno animal ficou preso, em uma piscina, que se formou, devido ao engordamento da praia.

De tudo que lhe é avaro, foi assim que a fotógrafa Lenny, produziu a sua primeira fotografia, e foi assim, que o pai de Lenny, orgulhoso pela filha, mandou revelar a inusitada fotografia e depois de ter a fotografia em mãos, mandou reproduzir, ampliar e emoldurar a fotografia feita pela pequena filha.

        O barulho da porta da garagem se abrindo lentamente e trouxe Lenny para a realidade, em que vivia. E a fotógrafa profissional, tragou com prazer a fumaça do cigarro e foi ver se Madalena cumpriu, a tarefa que ela tinha dado ou escutaria uma avalanche de desculpas vagas e tolas.

 

Fragmento do livro: Em perpétuos ciclos, de Samuel da Costa, poeta e contista, em Itajaí, Santa Catarina

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

Argumento de Clarisse Cristal, bibliotecária, contista, novelista e poetisa, em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

 

 

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