Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Instado, por uma amiga poetisa
a falar sobre a minha hora mais negra, do meu decorrer, do meu mergulho no
negro abismo. Por que ela quis saber disso eu não sei dizer. Eu disse, que eu
era o membro efetivo do aparato de repressivo do estado, eu tinha e tenho muito
o que contar. Nestes e nesses anos todos, vivendo uniformizado, estacionado nas
portas dos vários aparatos estatais, eu tenho um momento exato, congelado na
minha débil mente.
Eu o paramilitar, eu o
marxista materialista gramsciano, eu o poeta, contista e novelista, que flano
entre o neossurrealismo e o neossimbolismo. Eu com livros lançados, com textos
publicados em veículos de comunicação e eu quase publicitário. Eu amargava o
meu exílio, imposto pela luta de classes, em um lugar ermo, sem vizinhança, em
uma repartição pública colegiada. Eu na minha hora mais negra, com vários
problemas pessoais e familiares, o eu devidamente uniformizado. O eu pleno nas
minhas convicções sociopolíticas, ao estilo de um militante comunista
leninista, dos tempos da guerra fria, legítimo e convicto aparelhava um
computador na recepção da repartição pública, logo pela manhã de outono feliz e
antes do horário do início do expediente. Eu estava compondo o meu livro de
versos: Poesia na árvore e, lá estava ela, na minha frente, a jovem e bela
funcionária pública recém-empossada via concurso público. Ela tinha acabado de
terminar o plantão noturno, embora não tivesse aparência soturna, de quem
passou a noite toda acordada, ela se aproximou da minha pessoa decrépita, sim
eu estava nos meus piores dias. Eu com as minhas negras mãos, postadas no
teclado, de um ultrapassado microcomputador. Então a dita cuja ergueu e
chacoalhou na minha cara, ela plena de si, um molho de chaves e agora repito
aqui textualmente o que ela disse pausadamente em frases intercaladas: ‘’—
Estas são as chaves da repartição pública! O senhor está me entendendo?
’’ — E chacoalhou as chaves na minha cara novamente, e só pude dizer que
sim, pois estava atônito, com o tom monocórdio e pueril da voz da bela moça. E
ela continuou dizendo, como quem fala com uma criança pequena ou ser adulto com
poucas compreensões da realidade: ‘’— Estás chaves que são da repartição
pública, o senhor me faça o favor de repassar para a outra agente, estas chaves
que são da repartição pública. O senhor está me entendendo bem?’’ — Eu disse
que sim, pois a dita cuja era minha superiora hierárquica e peguei o molho de
chaves, como se eu fosse tragado para dentro de um sonho kafkiano abstrato e
sem sentido algum.
Vi a minha colega de
repartição pública, a minha superiora hierárquica, trespassar as portas dos
fundos da repartição pública, a vi ser tragada pela luz do dia. Passados anos
dessa cena patética e ridícula, hoje não sei quais os motivos, de ser tratado como
uma criança pequena, ou um adulto débil, por alguém, que tem, quase a metade da
minha idade. Um ser que sequer me conhecia, desprezo? Por ter que tratar como
uma figura da minha baixa envergadura social? E logo pela manhã! Quem sabe e eu
nunca quis saber.
E de volta ao início deste
texto, no suprassumo do elemento remissivo, eu e a minha amiga poetisa, que
estávamos no nosso Páramo, mais que tranquilo, depois que eu relatar esta
opereta bufa e sem graça. Então Clarisse Cristal me alertou para o poema A arte
de perder da poetisa Elizabeth Bishop, a poetisa favorita dela, aliás. Mas não,
eu não tinha perdido as chaves de mamãe e nem perdido casas e continentes. Não
que eu me lembre.
Mas voltando para a minha hora
negra, o meu mergulho abissal no álgido abismo, que ainda não passou a bem da
verdade, pois só vi e vejo as luzes de dias felizes, somente em pequenos
lampejos fugazes. Pergunto-me por onde e aonde anda a minha ex-colega de
trabalho? A minha superiora hierárquica, será que ela pensa ainda que eu não
sei o que é uma chave? Sim soube por vias tortas que conseguiu um bom emprego
via concurso público no planalto central. Que seja feliz e tenha uma vida longa
e cheia de realizações e depois do curso master Plus do que são chaves e para o
que elas servem, posso dizer que sou outra pessoa.
Fragmento do livro: Dos
ridículos da vida, de Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em
Itajaí, Santa Catarina.
Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário