sábado, 1 de junho de 2024

DOS RIDÍCULOS DA VIDA

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

Instado, por uma amiga poetisa a falar sobre a minha hora mais negra, do meu decorrer, do meu mergulho no negro abismo. Por que ela quis saber disso eu não sei dizer. Eu disse, que eu era o membro efetivo do aparato de repressivo do estado, eu tinha e tenho muito o que contar. Nestes e nesses anos todos, vivendo uniformizado, estacionado nas portas dos vários aparatos estatais, eu tenho um momento exato, congelado na minha débil mente.

Eu o paramilitar, eu o marxista materialista gramsciano, eu o poeta, contista e novelista, que flano entre o neossurrealismo e o neossimbolismo. Eu com livros lançados, com textos publicados em veículos de comunicação e eu quase publicitário. Eu amargava o meu exílio, imposto pela luta de classes, em um lugar ermo, sem vizinhança, em uma repartição pública colegiada. Eu na minha hora mais negra, com vários problemas pessoais e familiares, o eu devidamente uniformizado. O eu pleno nas minhas convicções sociopolíticas, ao estilo de um militante comunista leninista, dos tempos da guerra fria, legítimo e convicto aparelhava um computador na recepção da repartição pública, logo pela manhã de outono feliz e antes do horário do início do expediente. Eu estava compondo o meu livro de versos: Poesia na árvore e, lá estava ela, na minha frente, a jovem e bela funcionária pública recém-empossada via concurso público. Ela tinha acabado de terminar o plantão noturno, embora não tivesse aparência soturna, de quem passou a noite toda acordada, ela se aproximou da minha pessoa decrépita, sim eu estava nos meus piores dias. Eu com as minhas negras mãos, postadas no teclado, de um ultrapassado microcomputador. Então a dita cuja ergueu e chacoalhou na minha cara, ela plena de si, um molho de chaves e agora repito aqui textualmente o que ela disse pausadamente em frases intercaladas: ‘’— Estas são as chaves da repartição pública! O senhor está me entendendo? ’’ — E chacoalhou as chaves na minha cara novamente, e só pude dizer que sim, pois estava atônito, com o tom monocórdio e pueril da voz da bela moça. E ela continuou dizendo, como quem fala com uma criança pequena ou ser adulto com poucas compreensões da realidade: ‘’— Estás chaves que são da repartição pública, o senhor me faça o favor de repassar para a outra agente, estas chaves que são da repartição pública. O senhor está me entendendo bem?’’ — Eu disse que sim, pois a dita cuja era minha superiora hierárquica e peguei o molho de chaves, como se eu fosse tragado para dentro de um sonho kafkiano abstrato e sem sentido algum.

Vi a minha colega de repartição pública, a minha superiora hierárquica, trespassar as portas dos fundos da repartição pública, a vi ser tragada pela luz do dia. Passados anos dessa cena patética e ridícula, hoje não sei quais os motivos, de ser tratado como uma criança pequena, ou um adulto débil, por alguém, que tem, quase a metade da minha idade. Um ser que sequer me conhecia, desprezo? Por ter que tratar como uma figura da minha baixa envergadura social? E logo pela manhã! Quem sabe e eu nunca quis saber.

E de volta ao início deste texto, no suprassumo do elemento remissivo, eu e a minha amiga poetisa, que estávamos no nosso Páramo, mais que tranquilo, depois que eu relatar esta opereta bufa e sem graça. Então Clarisse Cristal me alertou para o poema A arte de perder da poetisa Elizabeth Bishop, a poetisa favorita dela, aliás. Mas não, eu não tinha perdido as chaves de mamãe e nem perdido casas e continentes. Não que eu me lembre.

Mas voltando para a minha hora negra, o meu mergulho abissal no álgido abismo, que ainda não passou a bem da verdade, pois só vi e vejo as luzes de dias felizes, somente em pequenos lampejos fugazes. Pergunto-me por onde e aonde anda a minha ex-colega de trabalho? A minha superiora hierárquica, será que ela pensa ainda que eu não sei o que é uma chave? Sim soube por vias tortas que conseguiu um bom emprego via concurso público no planalto central. Que seja feliz e tenha uma vida longa e cheia de realizações e depois do curso master Plus do que são chaves e para o que elas servem, posso dizer que sou outra pessoa.

 

Fragmento do livro: Dos ridículos da vida, de Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

 

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