Por Paulo Cezar S Ventura (Nova Lima, MG)
“A
vaidade é meu pecado preferido”, disse o diabo no filme “O Advogado do Diabo”.
— Há quanto tempo faleceu Sr. Francisco?
—
Há mais de dez anos.
—
Qual foi a causa da morte?
—
Ele morreu de vaidade.
— O
que é morrer de vaidade?
—
Para explicar preciso lhe contar uma história.
Sr.
Francisco era um octogenário feliz com a vida, alegre e sedutor. Todos na
cidade o conheciam e tinham grande estima por ele. As mulheres, então…
admiravam seu cavalheirismo, sempre ajudando-as a descer do ônibus,
cedendo-lhes o lugar nas filas do banco e da padaria.
Sr.
Francisco era também um Don Juan daqueles elegantes. Gostava de dançar e não
perdia os bailes semanais dos clubes da maturidade. Não só os de sua cidade,
mas também da cidade vizinha, a capital do estado. Significa que, em pelo menos
três dias da semana ele estava em uma pista de dança. Como os homens idosos são
raros nestas reuniões, Sr. Francisco se esbaldava. Havia uma disputa para ver
quem dançava com ele, um verdadeiro “pé de valsa”.
Além
de pé de valsa era também conhecido como “bico doce”. Quando ficou doente, seus
filhos descobriram pelo menos umas três namoradas dele. A visitação em sua casa
só não foi mais frequente porque era difícil gerenciar a agenda de visitantes
ao doente.
—
Mas até agora você não me contou o que é morrer de vaidade, insistiu meu interlocutor, agora curioso.
—
Seja paciente que eu chego lá, adiantei.
Pois
bem, Sr. Francisco apareceu com um tumor no intestino, já do tamanho de uma
bola de tênis, sem nunca ter sentido nada que o fizesse consultar um médico.
Daí pra frente sua vida mudou. Uma cirurgia retirou o tumor inteiro, sem a
necessidade de quimioterapia ou radioterapia, mas a recuperação, demorada, não
foi como ele queria.
Sr.
Francisco, nervoso, tossia. E essa tosse lhe provocou uma hérnia na região
abdominal, o que fez parecer que ele era barrigudo. Alguns meses depois da
cirurgia, ele voltou a suas atividades de dançarino conquistador. Por vaidade,
colocava uma cinta na cintura e seguia para os bailes. O problema era a cinta
apertando a cintura e incomodando nas umbigadas com as damas.
—
Sim, ele era vaidoso. Mas, por que morreu de vaidade?
—
Calma, rapaz, só estou no meio da história.
Em
cada consulta que fazia, aquelas de retorno ao oncologista, Sr. Francisco
insistia que operassem sua hérnia.
—
Sr. Francisco, o senhor acaba de se recuperar de uma cirurgia complicada e já
quer passar por outra? Melhor não, ponderava o médico.
E o
Sr. Francisco ficava chateado por não conseguir suprimir a hérnia e voltar a
ter barriguinha de dançarino de salão.
Passado
um tempo, em uma das colonoscopias (rotina na vida de uma pessoa em tratamento
e observação de tumores no intestino), eis que surge um novo pequeno tumor em
suas tripas, maligno, não extirpada no processo por estar na costura da antiga
cirurgia. Em vez de ficar triste, Sr. Francisco vislumbrou a possibilidade de,
no caso de uma cirurgia para retirada do novo tumor, sua hérnia também fosse
retirada.
— E
aí, doutor, estou pronto para encarar nova operação, reclamava o Sr. Francisco.
—
Que isso, Sr. Francisco? Esse tumor vai demorar a crescer e lhe incomodar. Em
sua idade, oitenta e quatro anos, com mais uns cinco ou seis pela frente, esse
tumor não fará nem cosquinha em sua barriga. Esquece, e viva bem sua vida.
—
Mas, doutor, essa hérnia…
—
Ela vai bem. Com a cinta ninguém nota.
O
que mais inquietava o Sr. Francisco, nem era o incômodo da cinta nos rodopios e
nos apertos nas damas no salão. Era tirar a cinta na hora de namorar e a
parceira perceber sua barriguinha avantajada pela hérnia. Não podia perder sua
fama de pessoa ainda competente na peleja sexual, atualizada sempre pelo uso da
pílula azul.
E
ele passou a procurar um cirurgião que realizasse a cirurgia para dupla ação:
retirar o tumor e a hérnia. O marido de uma de suas netas, cirurgião de longa
experiência, tentou tirar isso de sua cabeça.
—
Sr. Francisco, em sua idade uma cirurgia é sempre arriscada, ainda mais uma
dupla. Aproveite os anos de vida que tem pela frente, com tumor e hérnia
monitorados, e seja feliz.
Pois
o Sr. Francisco tanto procurou até que encontrou um cirurgião que concordou em
fazer sua esperada dupla cirurgia. Aparentemente tudo correu bem. Dia seguinte
ele já estava contando causos na beira da cama do hospital, feliz da
vida.
Mas,
cuidado, Sr. Francisco.
—
“A vaidade é meu pecado preferido”, disse o diabo (Al Pacino), ao advogado
(Keanu Reeves) na cena final do filme “O Advogado do Diabo”.
Uma
fístula no intestino provocou uma septicemia generalizada com altas doses de antibiótico e
longa passagem pela Unidade de Terapia Intensiva. Forte “como um touro”,
resistiu e conseguiu até voltar para casa, com bolsa de colonoscopia, intestino
pela metade, barriga aberta e muito cuidado. Viveu ainda oito meses, na cama,
em cadeira de rodas, com os filhos se revezando nos cuidados vinte quatro horas
por dia. E parece ter escolhido dia e hora de falecer: às vinte e duas horas do
dia trinta e um de dezembro, quando tem início o foguetório de virada de ano.
Até
hoje, quando alguém pergunta a qualquer um de seus filhos:
—
Seu pai faleceu de que, mesmo?
Eles
respondem, sem pestanejar:
—
Meu pai morreu de vaidade.
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