Por Severino Moreira (Bagé, RS)
Quem hoje ver o que sobrou da tapera da minha avó Lucídia e não conheceu
aquele lugar nos tempos idos, por certo não há de imaginar o que existiu antes
de virar escombros de pedras enterradas, parede caída e de troncos que
ressecaram abraçados por erva de passarinho ou apodreceram abrigando colônias
de formigas e enxames de abelhas.
Olhando os pés de umbus... Que engraçado, o umbu é talvez a única árvore
de pátio que sobrevive à solidão, por que as demais quando o rancho fica
tapera, a própria natureza se encarrega de ir consumindo aos poucos até não
sobrar nada.
Eu fico então cismando. “Será que o Patrão Velho” entende que a sombra é
de maior importância que o fruto, já que sombra é a única utilidade natural do
umbu?
Não... Não deve ser, pois outras árvores de sombra, também se consomem
com o tempo, então... deve ter o umbu o instinto de peão caseiro, ou talvez tenha
uma proteção maior por parte do Patrão Santo, de modo que assinale na
imponência do tronco, vestígios da raça humana retratados em mensagens escritas
à ponta de faca.
Bueno, mas o causo que conto nada tem a ver com os pés de umbu, nem com o
que sobrou da tapera, e sim com o que se passou, quando era um rancho cheio de
vida, e os umbus eram apenas um pedaço da beleza, que existia, juntamente, com
o resto do arvoredo, naquele paraíso verde e branco onde meus avós moravam.
O rancho era um dos maiores que existiam naquele, até então, distrito de
Caçapava do Sul, hoje Santana da Boa Vista, e o arvoredo eu lhe digo, entre
tantas outras árvores havia mais de cinqüenta pés de laranjeiras, de todos os
tipos e sabores, desde laranja-do-céu até as laranjas azedas, que era como
minha avó chamava as cidras de fazer doce.
Essas laranjeiras carregavam tanto, que os andejos apanhavam laranja a
cavalo, não eram poucos os que enchiam malas de garupa, quando passavam, mesmo
assim nem os bichos davam conta de consumir tantas, de modo que muitas findavam
por apodrecerem caídas no chão.
A minha avó se dava ao trabalho de fazer, todos os anos, algumas dezenas
de barris de vinho de laranja e não eram poucas dezenas, pois a vizinhança
chegava a levar meia dúzia de barris cada um, além da quantidade enorme que era
vendida
Consumia mais vinho durante dia, do que os lampiões consumiam querosene
durante a noite.
Bueno, quem já viu fazer vinho de laranja, por certo sabe que os barris
cheios, já fermentados, vão acumulando no fundo uma borra, que precisa ser
retirada, essa borra, de um gosto meio adocicado, se for consumida dá uma borracheira
cousa mais triste, pois é onde se concentra a maior fermentação.
Pois a minha avó certa vez, depois de coar o vinho, pediu a meu avô que
enterrasse ou jogasse em algum buraco a borra que sobrou, porém o velho que já
havia despejado algumas canecadas do dito vinho goela abaixo, repassou o
serviço aos guris, no caso meu primo Osmarino, mais conhecido por “Baixinho”,
em razão da pouca estatura, apesar de ser guri já de quinze pra dezesseis anos,
e meu tio e padrinho Amintas, o único irmão por parte de mãe, que a minha
falecida mãe teve, já que minha avó era o segundo casamento do velho e só
tivera dois filhos legítimos, apesar de haver criado quase uma dúzia de
enteados.
Os guris não sei se por preguiça ou por “arteiros” mesmo, despejaram a
borra nos cochos do bicharedo e nem queira imaginar o estrago que isso
provocou.
Que borracheira “Munaia” deram nos pobres dos bichos.
Os passarinhos foi uma mortandade triste, os bichinhos levantavam o vôo,
podres de bêbados e sem terem sentido de direção, erravam os galhos das
árvores, e quando conseguiam pousar não se equilibravam caindo como trapos lá
de cima. Lhes digo, as “papa-pintos” se empanturraram de tanto passarinho que
comeram.
As galinhas chocas, abandonaram os ninhos, as criadeiras “desmamaram” os
pintos e quanto ao resto botavam ovo, em qualquer lugar desde que fosse ao
chão, pois as poucas que se aventuraram a subir no jirau, caiam lá de cima, e
até os lagartos, comedores de ovos, se emborracharam, e lhes digo, é cousa
linda um lagarto borracho, o bicho corre que nem louco com a cola de arrasto e
por isso cai um tombo atrás do outro.
Gansos e marrecos morreram afogados no açude, pois não conseguiam manter
a cabeça em pé e os perus ficaram loucos e saíram “galando” avestruz a campo
fora.
Os cachorros, nem queira imaginar, pois são bichos de má bebida, e
borrachos, pelearam três dias sem parar, até que tontos e cansados caíram no
sono, com cada brecha no couro que não ouve “creolin” que chegasse p´ra curar.
Olhem, quase se esvaíram em sangue.
Os porcos por mais esganados que eram levaram uma borracheira tão grande,
que dormiram uma semana ao olho do sol, esparramados pelo meio do terreiro.
O mais espantoso... Foi o “Nanico e o Redondo”, os bois mansos, que viram
os guris despejando os barris nos cochos e beberam até estufar a barriga, e com
isso não escaparam da borracheira e, com isso pegaram um ressabio tão grande,
que quando enxergavam a pipa de água, que por acaso era feita com barril igual
aos de vinho, se enfiavam no mato e passavam mais de semana sem aparecer.
O pior mesmo foi quando passou a borracheira daquela bicharada toda, e aí
veio uma ressaca que chegavam a andar com o focinho de arrasto, e uma sede daquelas
"munaia".
Afirmo que a sede foi tanta que secaram o açude, a cacimba e, ainda,
cortaram o arroio do pessegueiro. Por sorte não demorou a chover.
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