quarta-feira, 30 de setembro de 2020

BORRACHEIRA "MUNAIA"

Por Severino Moreira (Bagé, RS)

Quem hoje ver o que sobrou da tapera da minha avó Lucídia e não conheceu aquele lugar nos tempos idos, por certo não há de imaginar o que existiu antes de virar escombros de pedras enterradas, parede caída e de troncos que ressecaram abraçados por erva de passarinho ou apodreceram abrigando colônias de formigas e enxames de abelhas.

Olhando os pés de umbus... Que engraçado, o umbu é talvez a única árvore de pátio que sobrevive à solidão, por que as demais quando o rancho fica tapera, a própria natureza se encarrega de ir consumindo aos poucos até não sobrar nada.

Eu fico então cismando. “Será que o Patrão Velho” entende que a sombra é de maior importância que o fruto, já que sombra é a única utilidade natural do umbu?

Não... Não deve ser, pois outras árvores de sombra, também se consomem com o tempo, então... deve ter o umbu o instinto de peão caseiro, ou talvez tenha uma proteção maior por parte do Patrão Santo, de modo que assinale na imponência do tronco, vestígios da raça humana retratados em mensagens escritas à ponta de faca.

Bueno, mas o causo que conto nada tem a ver com os pés de umbu, nem com o que sobrou da tapera, e sim com o que se passou, quando era um rancho cheio de vida, e os umbus eram apenas um pedaço da beleza, que existia, juntamente, com o resto do arvoredo, naquele paraíso verde e branco onde meus avós moravam.

O rancho era um dos maiores que existiam naquele, até então, distrito de Caçapava do Sul, hoje Santana da Boa Vista, e o arvoredo eu lhe digo, entre tantas outras árvores havia mais de cinqüenta pés de laranjeiras, de todos os tipos e sabores, desde laranja-do-céu até as laranjas azedas, que era como minha avó chamava as cidras de fazer doce.

Essas laranjeiras carregavam tanto, que os andejos apanhavam laranja a cavalo, não eram poucos os que enchiam malas de garupa, quando passavam, mesmo assim nem os bichos davam conta de consumir tantas, de modo que muitas findavam por apodrecerem caídas no chão.

A minha avó se dava ao trabalho de fazer, todos os anos, algumas dezenas de barris de vinho de laranja e não eram poucas dezenas, pois a vizinhança chegava a levar meia dúzia de barris cada um, além da quantidade enorme que era vendida em Caçapava. Isso sem contar, que meu avô Fausto Teixeira, que na época era o escrivão daquele distrito e em razão disso pouco saia de casa, tinha um cambicho enorme por um “vinhozito” caseiro.

Consumia mais vinho durante dia, do que os lampiões consumiam querosene durante a noite.

Bueno, quem já viu fazer vinho de laranja, por certo sabe que os barris cheios, já fermentados, vão acumulando no fundo uma borra, que precisa ser retirada, essa borra, de um gosto meio adocicado, se for consumida dá uma borracheira cousa mais triste, pois é onde se concentra a maior fermentação.

Pois a minha avó certa vez, depois de coar o vinho, pediu a meu avô que enterrasse ou jogasse em algum buraco a borra que sobrou, porém o velho que já havia despejado algumas canecadas do dito vinho goela abaixo, repassou o serviço aos guris, no caso meu primo Osmarino, mais conhecido por “Baixinho”, em razão da pouca estatura, apesar de ser guri já de quinze pra dezesseis anos, e meu tio e padrinho Amintas, o único irmão por parte de mãe, que a minha falecida mãe teve, já que minha avó era o segundo casamento do velho e só tivera dois filhos legítimos, apesar de haver criado quase uma dúzia de enteados.

Os guris não sei se por preguiça ou por “arteiros” mesmo, despejaram a borra nos cochos do bicharedo e nem queira imaginar o estrago que isso provocou.

Que borracheira “Munaia” deram nos pobres dos bichos.

Os passarinhos foi uma mortandade triste, os bichinhos levantavam o vôo, podres de bêbados e sem terem sentido de direção, erravam os galhos das árvores, e quando conseguiam pousar não se equilibravam caindo como trapos lá de cima. Lhes digo, as “papa-pintos” se empanturraram de tanto passarinho que comeram.

As galinhas chocas, abandonaram os ninhos, as criadeiras “desmamaram” os pintos e quanto ao resto botavam ovo, em qualquer lugar desde que fosse ao chão, pois as poucas que se aventuraram a subir no jirau, caiam lá de cima, e até os lagartos, comedores de ovos, se emborracharam, e lhes digo, é cousa linda um lagarto borracho, o bicho corre que nem louco com a cola de arrasto e por isso cai um tombo atrás do outro.

Gansos e marrecos morreram afogados no açude, pois não conseguiam manter a cabeça em pé e os perus ficaram loucos e saíram “galando” avestruz a campo fora.

Os cachorros, nem queira imaginar, pois são bichos de má bebida, e borrachos, pelearam três dias sem parar, até que tontos e cansados caíram no sono, com cada brecha no couro que não ouve “creolin” que chegasse p´ra curar. Olhem, quase se esvaíram em sangue.

Os porcos por mais esganados que eram levaram uma borracheira tão grande, que dormiram uma semana ao olho do sol, esparramados pelo meio do terreiro.

O mais espantoso... Foi o “Nanico e o Redondo”, os bois mansos, que viram os guris despejando os barris nos cochos e beberam até estufar a barriga, e com isso não escaparam da borracheira e, com isso pegaram um ressabio tão grande, que quando enxergavam a pipa de água, que por acaso era feita com barril igual aos de vinho, se enfiavam no mato e passavam mais de semana sem aparecer.

O pior mesmo foi quando passou a borracheira daquela bicharada toda, e aí veio uma ressaca que chegavam a andar com o focinho de arrasto, e uma sede daquelas "munaia".

Afirmo que a sede foi tanta que secaram o açude, a cacimba e, ainda, cortaram o arroio do pessegueiro. Por sorte não demorou a chover.

          

 

 

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