quarta-feira, 30 de setembro de 2020

UMA ENCHENTE NO CAMAQUÃ

Por Severino Moreira (Bagé, RS)

 

Estava eu, certa feita, lá no rancho do “vô Bira“. P´ra que melhor me entendam, assim era chamado o meu falecido avô paterno, Severino Moreira, ao qual herdei nome, sobrenome e as manias, inclusive as de contar causos, pescar e caçar tatu.

Acompanhado como sempre, do meu cachorrinho fumaça, de nome Respeito, cachorrinho esse, que me havia presenteado um mascate velho, conhecido por "João Figueiredo", vivente por demais conhecido no interior de Santaninha.

Era cachorrinho ainda novo, nem alçava a perna pra mijar e eu pra mode ensinar a caçar tatu, aproveitei os cachorros do falecido tio Sinval que era o irmão mais novo de meu pai e tinha dois tatuzeiros de fundamento, um tareco, cola aparada, de nome Pitoco e um cruza ovelheiro “unha perdida” de nome Boca Negra, e com eles me toquei em direção à costa do Camaquã.

Era um terno de cachorros farejando cada pé de carqueja que encontravam pelo caminho.

A lua era um dia de tão clara, fazia “Cheia”, desde uma noite antes e depois de quase três semanas, caindo água como baba de cavalo enfrenado na “Nova”, até que enfim fazia noite de céu claro.

 Noite buena para caçar tatu. Se era.

Saí pelos fundos da tapera da “Carlinda Velha” e depois quebrei pra esquerda em direção ao campo do Gonçalino Borba, pulando sanga, cortando mato e arrebentando japecanga com as botas, já molhado até o joelho, pois apesar de parada a chuva, vassoura branca e carqueja, ainda, era uma molhaceira só.

O Camaquã velho roncava ladeira abaixo, que se escutava a meia légua de distância, pois já tinha engolido as duas barrancas e andava a campo se espichando pros dois lados, encobrindo parte do “Rincão dos Moreira”, pelo lado de Santaninha, e parte do “Rincão dos Barbosa”, pelo lado das “Cacimbinhas”, até onde a vista não alcançava.

Lembro que nos fundos do rancho do Gonçalino, havia um mato com branquilhos, guajuviras e corunilhas de tamanho descomunal, além de mundaréu de moitas pequenas, desde o camboim até a imbira, e lhe digo, moita rasteira não aparecia nada e das mais cuiudas só as guias despontavam por cima daquele lençol de água, onde de quando em vez desciam árvores inteiras, arrastadas rio abaixo até sumirem na primeira curva.

Cruzei em frente ao ranchinho do João Machado, que já estava com a água lambendo os esteios do galpão e um caíque atado forcejava que nem cavalo “sentador” pra escapar embalado pela correnteza que o puxava, enquanto lá no meio d’água eu vi uma vaca mocha mascarada, na cincha de um cavalo que me pareceu, a distância, tordilho negro ou mouro, que por certo um caíra n’água e findara por arrastar o outro. Nadavam, mas por tristeza cada um no sentido de uma das barrancas sumidas, até que um galho de tarumã, passou entre os dois enganchando o seio do laço e arrastou os animais água abaixo.

O cavaleiro não vi, queira Deus que tenha escapado da fúria da correnteza antes dos bichos cairem.

Era de fato uma enchente bem “cuiuda”, acredito seja a maior que os “dourados” do Camaquã, já viram desde que eram ainda filhotinhos e eu fiquei ensimesmado pensando em quantos ninhos teriam sido arrastados por toda aquela água.

 Os tahãs, por certo não sobrara um pra contar, pois geralmente faziam ninhos em ilhotas e que sem duvidas estavam todas "encobertas". Os capinchos sei que escaparam, pois vi rastos e esterco em quase todos os lugares que havia passado, mas não esperava a mesma sorte para as mulitinhas, pois as furnas certamente estavam cheias d’água e filhote não devia ter sobrado nenhum.

Desci pela costa e atravessei uma lavoura, não sei se do velho João Machado ou de algum outro “chacreiro”, mas era uma lavourona “cousa” mais linda, pois apesar da metade embaixo d’água, ainda era pra mais de quarenta carretas só de abóbora e melancia, sem contar feijão, batata, mandioca, milho e até milho de pinto, que dava pra encher meia dúzia de despensas, isso sem contar ainda que os capinchos andassem a mais de semana de “pança cheia”. E olhem que era uma “tropa” de bichos e ainda tinha a invasão do gado e dos porcos por um pedaço da cerca derrubada por uma caneleira "munaia” ter caído em cima.

Já ia quase à metade da lavoura, quando meu cachorro deu um “ganiço” no meio de um “abobral” e já seguiu “cavoucando” como se o bicho estivesse muito perto.

Olhei, não havia nada, não tinha furna, “cisqueiro”, rastro, nem esterco, na verdade nenhum sinal de caça e, certamente, por isso imaginei que fosse alarme falso, ainda mais que os outros cachorros passaram a “lo largo” e eram animais vaqueanos em caçadas, enquanto que o meu cusquinho, era só um cachorrinho, ainda, meio bobo.

Ralhei com o cusquinho e segui em frente, mas o danado teimava em “cavoucar” no mesmo lugar.

Eu já com raiva da teimosia do guaipeca, fui procurar uma vara pra dar uns laçaços e foi, justamente, quando por fim o cachorro se enfiou no buraco, que ele mesmo cavara e sumiu chão adentro num alarido, que foi ficando abafado até que não mais se ouviu.

Encostei o ouvido na boca do buraco, tentando ouvir alguma coisa e bem ao longe se ouvia um ruído, assim como um balde atirado no poço, que por mais que se tentasse não se conseguia atinar o que era.

Olhei para o rio e ele parecia crescer “devagarzinho”.

Parecia não, estava subindo mesmo, pois cravei uma estaca no chão, onde a água beirava, e a dita sumiu num instante, é claro que a estaca não serviu de marca, pois a água levou, mas havia perto um tronco de guajuvira, meio sapecado pelo fogo, decerto desde quando “coivararam” a lavoura, que estava coberto e antes não estava.

Mas aquilo foi um instante só, então olhei para o buraco onde nem “abobral” tinha mais, apenas um monte de folhas e baraços pisoteados e vi, então, que os outros cachorros, também faziam carga no local, deixando claro que alguma coisa havia, mas o quê, eu nem imaginava, não poderia aquela lavoura ser assombrada, pois nessas coisas não creio, mas que havia alguma coisa estranha, havia.

Olhei de novo o tronco de guajuvira que voltara a aparecer, antes de olhar o retoço dos cachorros na boca do buraco, aonde vinha saindo o meu cachorrinho, trazendo de arrasto um “macaieiro” maior do que ele. Lhe digo, era bicho com unha na cola de tão velho e ressabiado, sem exagero, não cabia na boca “do forninho” nem espremido.

Peguei o tatu, quebrei o pescoço. Não sem forcejar e, então, voltei a olhar o tronco sapecado, que estava destapado até as raízes.

Só então eu entendi, que o “macaieiro” velho tinha se embretado com a entrada da água na furna e no desespero cavou tanto, que já andava lá no meio da lavoura por baixo do chão e meu cachorro, que “tinha muito ouvido” sentiu o movimento do bicho cavando e foi ao seu encontro, só que a água na toca era tanta, que quando meu cachorro bateu no tatu, ele tentou voltar pela boca da furna, empurrando a água de volta pro leito do rio, com isso aumentando o nível da água que saia da "caixa", mas no entanto, quando lhes faltava ar recuavam fazendo a água voltar pra toca e só por isso o rio baixava e subia.

Essa era a razão do nível d’água, às vezes tapar o tronco de guajuvira e outras não, até que pelas tantas o cachorro conseguiu tirar o tatu e o rio, então, continuou seu caminho correndo ladeira abaixo, enquanto a água acumulada dentro da toca subia e descia respingando as folhas de abóbora pisoteadas que ficaram no chão através do buraco onde o cachorro tirou o tatu.

Hoje, não me admira o tamanho daquele tatu, e sim a ligeireza que cavou para não se afogar e tem mais. Se alguém duvidar do que digo, eu ainda guardo lá no rancho, as patinhas desse bicho com as unhas "rombudas" de tanto cavar.

Para arrematar este causo. Passou-se uma semana sem chover e por conseqüência o rio voltou para a “caixa”, e vou lhes contar.

O céu ficou preto de tanto corvo que revoava e eu, por curioso, fui ver de perto.

Lhes digo, não se agüentava a “fedentina” de carniça pelas margens do Camaquã, mas também pudera havia peixe morto espetados em espinhos de” urumbeva”, “corunilha”, “mamica de cadela” e até alguns enredados em japecangas e “rapa-canela” ou engaiolados nas reboleiras das árvores.

“Tossores de peixe morto” e fedendo.

Pode parecer exagero, mas encontrei quinze “dourados” enredados em uma cerca de “arame de espinho” e ainda um outro que, quando a água baixou, ficou embretado em um chiqueiro de terneiro perto da casa do João Machado.

 Esse foi o único que se pode aproveitar, pois ainda estava vivo e afirmo que mesmo repartindo ao meio com o dono da casa, comemos peixe salgado duas semanas seguidas, sem contar que ainda apodreceu um pedaço grande.

A quem duvidar, ainda guardo, um espinho desse dourado em casa, e sem exagero é mais grosso do que um dos braços meus e inclusive tenho usado como socador de moirão.

 O osso da costela de um touro velho é coisa pouca perto desse espinho.

De tudo o que mais me entristece, é que isso que vi, com certeza é quase nada dos bichos que sucumbiram nessa enchente, essa é, sem dúvida, uma das maiores razões da escassez de peixes hoje no Camaquã. 

“Chô égua, que mortandade véia munaia”.                  

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