Von Steisloff (Brasília, DF)
(homenagem ao amigo Alberto Fernando Monteiro do Nascimento)
De
tanto ver crescer as mansões de Brasília, de tanto ver agigantar-se o número
das piscinas nessas vivendas e de tanto ver multiplicarem-se as churrasqueiras,
o observador chega a desanimar-se diante da própria insignificância e rir-se da
sua pobreza pessoal. O atrevido pobretão
imagina – filosofando –, que vive entre uma multidão de faraós que habitam por
ali. São os faraós de inusitadas condições, pois que, sobrevivem muito antes de
morrer em suas sonhadas pirâmides maiores ou menores.
Naquele longo
e humilde trajeto diário, o homem sente-se, às vezes, como um pária social. Não
é para menos: a visão daquelas mansões dá para despertar um sentimento de
inferioridade no pobre carroceiro no interminável vaivém catando restos de
papel no bairro chique. Às vezes feliz, às vezes jubiloso, na sua resignação
com o “Destino que Deus lhe deu”. “Ora!”
– imagina com otimismo compensatório – “Não tenho nada com que mepreocupar!”. Por certo o pobre pária do
século XXI refere-se às angústias dos promitentes compradores das
Mercedes-Benz, das Bentley ou BMW. Os ostensivos e confortáveis desperdícios
paralisados nas garagens tal como tentadores bibelôs nas vitrines de luxo. Será
o medo da perda material que ronda os poderosos faraós do Lago Sul ou do Lago
Norte da capital federal?
Mas o pária continua com sua mente
bipolarizante: “Esses carrões de 200
cavalos estão limitados; não podem mesmo ultrapassar dos
É isso mesmo,
as mansões dos lagos sul e norte são, na fértil imaginação do catador-de-papel,
como formidáveis pirâmides erigidas na dura realidade nos limites máximos dos
financiamentos bancários, vigiadas nos rigores das ameaçadoras cartas de
hipotecas.
Os horizontes financeiros regulam a
imponência, a metragem, a altura e o conforto das pirâmides. Mas todas têm de
ter obrigatoriamente uma churrasqueira e, pelo menos, uma piscininha.
Sauna? Algumas têm, mesmo sem uso, para
não ficar por baixo do faraó-vizinho É costume manter-se uma espécie de
competição e igualdade de status com a vizinhança das outras pirâmides
faraônicas.
Uma sinalização típica do poder do
faraó-do-cerrado é a frota de carros importados ou mesmo nacionais, mas do ano.
As garagens, propositalmente devassadas, exibem, sem pudor, através dos portões
automáticos, as lustrosas máquinas maravilhosas. Esses locais destinados às
dúzias de carrões são, vergonhosamente, bem maiores que os tugúrios. Aquelas
casas miseráveis de papelão dos incômodos dos vizinhos Os párias-vizinhos sem
bens ou sem as nobrezas e origens misteriosas desses faraós sem conta que
dominam o cerrado devastado. Faraó-do-Cerrado
é aquele ricaço dos papeluchos bancários, meio escondido; propositalmente quase
anônimo, por trás das sebes sempre verdes e protetoras.
“Afinal”–
deve imaginar o faraó-do-cerrado –Nessa merda de deserto tenho que marcar minha presença e passagem por
Brasília”.
E lá vai, todo dia, o catador-pária olhando, discreto para
as centenas de hectolitros das azuladas águas das hiper-piscinas ladrilhadas.
Ele não consegue conter a comparação com as suas escassas latinhas do mesmo
líquido juntado para o gasto da família amontoada no seu barraco quase ao lado
da imponente pirâmide.
“Ô vidinha infeliz!” – deveria estar maldizendo o pária – “Cadê a Justiça deDeus?!”.Imprecaria o pária?! Nada disso! O pária, não exibe o passado, não
sabe nem o que seja um currículo de vida e não tem os temores do futuro. Nem
mesmo a mísera carroça mambembe da caixotaria descartada lhe pertence. Outro
pária-catador passou-lhe, por empréstimo forçado, aquele veículo e junto o
matungo de tração. O compadre – também pária – estava detido pela Polícia de
Brasília por ter sido flagrado circulado com o citado “veículo” antiestético em
local proibido do Plano Piloto do Distrito Federal.
“Um homem sem
bens nada tem a temer”. Máxima tirada
filosófica tanto deste herói em foco como de todos os párias conscientes e
assumidos.
Aliás, por falar em temer, o que mais teme um
faraó-do-cerrado não é propriamente a morte. Por serem, na mais das vezes,
profundamente religiosos são, por convicção filosófica, crente da gratificação
de Deus. Acham que levarão para a eternidade as indulgências plenárias. Graças
alcançadas porque doaram migalhas; aquelas incomodativas sobras que abarrotavam
por gastanças: as velharias dos tênis, das roupas em trapos e outras tralhas
que entupiam os quartos de despejos ou as preciosas vagas das garagens
ladrilhadas.
Na verdade, o que teme o faraó-fajuto são as consequências
da pós-morte: a briga de foice da parentela famélica digladiando ansiosa
pós-velório do de cujus pranteado. Os seus bens transformados em butim. Todos
os juntados pelo faraó falecido. Preocupa-lhe e tira-lhe o sono, ainda em vida,
os problemas do dispendioso inventário a seguir quando for transposto para
condição ex.
Ah! Os espertíssimos advogados a garimpar-lhe a história,
até íntima, na busca dos direitos de todos os sucessores visíveis e ignotos,
até mesmo do contra-parente parasita! Isso sim causa temor em vida ao
faraó-do-cerrado. Atormenta-lhe a
aparente falsa tranquilidade que rodeia os seus dias e noites em festas e
comemorações caras e infindáveis. Se bem que o faraó-do-cerrado tudo pode
proporcionar, ainda em vida, para sua enorme prole. Família bem planejada, mas
desregrada no mundo das exigências. São felizes enquanto tudo podem e tudo têm.
Às madrugadas, quando o faraó volta costumeiramente bêbado
para sua confortabilíssima pirâmide, encontra-a vazia, silenciosa, carente de
aconchego sincero. Onde estão os seus? Será que vagam pela noite de Brasília em
busca de outros prazeres maiores que os disponíveis na pirâmide zelosamente
planejada? Onde estão seus filhos, os herdeiros dos bens materiais amealhados?
Pobre faraó-do-cerrado! Periga até esborrachar-se enfartado
nos litros do generoso wiskey.
Ninguém lhe poderá socorrer. Nem a circunstancial e bela esposa, chique
e perfumada lhe espera para um carinho sincero de boas-vindas. Outrora era tão
diferente! Agora? Ora, agora ela também dorme encharcada no azedume de outros
porres. Curte um significativo ronco noturno para não testemunhar e nem ceder
às abordagens noturnas do repugnante faraó alcoolizado sem amor.
Essa imaginação da vida depravada típica do
faraó-do-cerrado povoa a mente do pária que passa, em silêncio, sempre por
perto do portão de fecho eletrônico. Quanta diferença entre o pobre carroceiro
e o faraó! Aquele não necessita dissimular para os seus iguais: gente simples
sem a fortuna do Destino não carece nem mentir.
Este, o faraó, pobre de amizades, vive de mentiras por necessidade
social. Por conveniência busca ser sedutor, fascinar e, às vezes, diz SIM
quando quer dizer NÃO. E – coitado! –, diz NÃO quando a vontade é dizer SIM.
Coisas de gente fina da sociedade hipócrita.
O faraó-do-cerrado não vive dilemas morais. Está acima das
convenções das regras inventadas pelos moralistas. Quando ultrapassa limites,
mesmo graves, acode-lhe um batalhão de causídicos eficientes e ávidos nas
justificativas do procedimento antissocial.
O autêntico faraó-do-cerrado afoga-se, quase naufragante,
no trabalho a que se dedica por inteiro desde as onze da manhã varando, na mais
das vezes, até madrugada. O antigo calor do lar agora vazio, não lhe atrai mais
cedo. Ninguém lhe espera. Quando entra na segura e sólida pirâmide solitária,
já vem farto dos bons restaurantes das rodadas de compromissos dos iguais da
sua corte: os outros assemelhados faraós-do-cerrado.
Ah! Que diferença de sorte e de vida! O pária levanta antes
do sol para não perder na competição diária. Os seus pares – outros párias –
estarão todos muito cedo, ainda na escuridão, chafurdando, respeitosamente, as
latas dos lixos piramidais e os contêineres
ministeriais na busca do papelão e dos restos preciosos de papel malbaratado.
Pela noite volta o pária cansado para os braços da amorosa
companheira que o espera para juntos, sorver com imenso prazer, um bule inteiro
de café de eflúvios contagiantes! Naquela simplicidade e aconchego do alegre
barraco, confessam e podem praticar o gratificante amor carnal de todas as noites. Este pobre homem feliz agora pode
dormir quase bem ao lado de faraó desgraçadamente rico, infeliz, trancado e
seguro, mas insone e sem ninguém na bela pirâmide soturna.
A suposta diferença dos seres humanos que dormem quase ao
lado, reside nos seus potenciais de sonhos. O faraó-do-cerrado vive e sustenta
o comportamento onírico pelos padrões da desastrada economia ocidental. Ele
quer consumir desbragadamente. Às vezes na sua mania de exibição, acelera com o
pé no fundo os doze cilindros da Mercedes saturando, sem piedade ou pudor
ecológico, o ar, queimando a gasolina de cem octanas! O seu pretenso gigantismo econômico não
passa, por fim, de um miserável caçapo: os compromissos, as dívidas, o apego
aos bens ao peso de ouro torna sua existência acachapante.
Veja que
grandiosidade de contraste! Enquanto o faraó acelera o carrão de 200 cavalos
com violência irracional, o pária compraz – às noites – em jogar um balde de
refrescante água no lombo suado do valioso matungo. Veja que ironia: um único
cavalo que lhe garante o pão de cada dia!
O pária, em contrapartida, na sua modéstia do viver, não depreda os
parcos recursos ao seu dispor. O seu trabalho honrado é apenas de busca e
gratificação para um sustento mais que adequado ao Ser Humano. Sonha, quando
muito na extravagância, em um domingo ensolarado banhar-se, sem gastos no, Lago
Paranoá. É, por isso, o contraponto do “inteligente” e portentoso vizinho com a
sua economia ocidental moderna, avassaladora e escravizadora tecnologia
ilimitada e sem rumo. O pária, talvez sem dar-se conta, desfruta uma existência
sábia nos padrões da economia budista...
NOTA DO AUTOR:
Alberto Fernando Monteiro do
Nascimento se mostrava cioso das origens da sua Caruaru, Pernambuco. Mesmo
com sua ascensão profissional não descuidou de cultuar os detalhes da
gostosa (no dizer dele) música popular brasileira. Conseguiu, só Deus sabe
como-, compatibilizar a carreira com os compromissos inadiáveis.
Granjeou o mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal de
Viçosa/MG e juntou-se à fechada equipe de professores nas alterações políticas,
estratégicas e táticas da ciência do ensinar. Sem alarde tornou-se um luminar
responsável no mar de Gestão complexa da Universidade Católica de Brasília.
Representou a sua instituição perante um seminário na Harvard University, nos
Estados Unidos. Pressões poderosas da vida levaram-no ao infarto fatal. A
família enorme e os chegados, sabia do seu desejo simples, mas apoteótico
pós morte: no instante da cremação o deslizar do seu caixão à fornalha final ao
som mavioso de adeus do cavaquinho dedilhado pelo garoto Ian Coury. Palmas, sem
lágrimas e adeus querido Alberto!
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