sexta-feira, 1 de outubro de 2021

FARAÓ DO CERRADO



Von Steisloff (Brasília, DF)


(homenagem ao amigo Alberto Fernando Monteiro do Nascimento)

 

De tanto ver crescer as mansões de Brasília, de tanto ver agigantar-se o número das piscinas nessas vivendas e de tanto ver multiplicarem-se as churrasqueiras, o observador chega a desanimar-se diante da própria insignificância e rir-se da sua pobreza pessoal.  O atrevido pobretão imagina – filosofando –, que vive entre uma multidão de faraós que habitam por ali. São os faraós de inusitadas condições, pois que, sobrevivem muito antes de morrer em suas sonhadas pirâmides maiores ou menores.

Naquele longo e humilde trajeto diário, o homem sente-se, às vezes, como um pária social. Não é para menos: a visão daquelas mansões dá para despertar um sentimento de inferioridade no pobre carroceiro no interminável vaivém catando restos de papel no bairro chique. Às vezes feliz, às vezes jubiloso, na sua resignação com o “Destino que Deus lhe deu”. “Ora!” – imagina com otimismo compensatório – “Não tenho nada com que mepreocupar!”. Por certo o pobre pária do século XXI refere-se às angústias dos promitentes compradores das Mercedes-Benz, das Bentley ou BMW. Os ostensivos e confortáveis desperdícios paralisados nas garagens tal como tentadores bibelôs nas vitrines de luxo. Será o medo da perda material que ronda os poderosos faraós do Lago Sul ou do Lago Norte da capital federal?

 Mas o pária continua com sua mente bipolarizante: Esses carrões de 200 cavalos estão limitados; não podem mesmo ultrapassar dos 70 quilômetros e eu, com o matungo emprestado, vou ganhando a minha boa vida livre; bem devagar e sem os receios dos faraós. Não tenho qualquer medo porque, tal como uma lesma, na lentidão, não provoco a inveja!”.

É isso mesmo, as mansões dos lagos sul e norte são, na fértil imaginação do catador-de-papel, como formidáveis pirâmides erigidas na dura realidade nos limites máximos dos financiamentos bancários, vigiadas nos rigores das ameaçadoras cartas de hipotecas.

 Os horizontes financeiros regulam a imponência, a metragem, a altura e o conforto das pirâmides. Mas todas têm de ter obrigatoriamente uma churrasqueira e, pelo menos, uma piscininha. Sauna?  Algumas têm, mesmo sem uso, para não ficar por baixo do faraó-vizinho É costume manter-se uma espécie de competição e igualdade de status com a vizinhança das outras pirâmides faraônicas.

 Uma sinalização típica do poder do faraó-do-cerrado é a frota de carros importados ou mesmo nacionais, mas do ano. As garagens, propositalmente devassadas, exibem, sem pudor, através dos portões automáticos, as lustrosas máquinas maravilhosas. Esses locais destinados às dúzias de carrões são, vergonhosamente, bem maiores que os tugúrios. Aquelas casas miseráveis de papelão dos incômodos dos vizinhos Os párias-vizinhos sem bens ou sem as nobrezas e origens misteriosas desses faraós sem conta que dominam o cerrado  devastado. Faraó-do-Cerrado é aquele ricaço dos papeluchos bancários, meio escondido; propositalmente quase anônimo, por trás das sebes sempre verdes e protetoras.  Afinal”– deve imaginar o faraó-do-cerrado Nessa merda de deserto tenho que marcar minha presença e passagem por Brasília”.  

E lá vai, todo dia, o catador-pária olhando, discreto para as centenas de hectolitros das azuladas águas das hiper-piscinas ladrilhadas. Ele não consegue conter a comparação com as suas escassas latinhas do mesmo líquido juntado para o gasto da família amontoada no seu barraco quase ao lado da imponente pirâmide.

“Ô vidinha infeliz!” – deveria estar maldizendo o pária – “Cadê a Justiça deDeus?!”.Imprecaria o pária?!  Nada disso! O pária, não exibe o passado, não sabe nem o que seja um currículo de vida e não tem os temores do futuro. Nem mesmo a mísera carroça mambembe da caixotaria descartada lhe pertence. Outro pária-catador passou-lhe, por empréstimo forçado, aquele veículo e junto o matungo de tração. O compadre – também pária – estava detido pela Polícia de Brasília por ter sido flagrado circulado com o citado “veículo” antiestético em local proibido do Plano Piloto do Distrito Federal.

“Um homem sem bens nada tem a temer”. Máxima tirada filosófica tanto deste herói em foco como de todos os párias conscientes e assumidos.

Aliás, por falar em temer, o que mais teme um faraó-do-cerrado não é propriamente a morte. Por serem, na mais das vezes, profundamente religiosos são, por convicção filosófica, crente da gratificação de Deus. Acham que levarão para a eternidade as indulgências plenárias. Graças alcançadas porque doaram migalhas; aquelas incomodativas sobras que abarrotavam por gastanças: as velharias dos tênis, das roupas em trapos e outras tralhas que entupiam os quartos de despejos ou as preciosas vagas das garagens ladrilhadas.

Na verdade, o que teme o faraó-fajuto são as consequências da pós-morte: a briga de foice da parentela famélica digladiando ansiosa pós-velório do de cujus pranteado. Os seus bens transformados em butim. Todos os juntados pelo faraó falecido. Preocupa-lhe e tira-lhe o sono, ainda em vida, os problemas do dispendioso inventário a seguir quando for transposto para condição ex.

Ah! Os espertíssimos advogados a garimpar-lhe a história, até íntima, na busca dos direitos de todos os sucessores visíveis e ignotos, até mesmo do contra-parente parasita! Isso sim causa temor em vida ao faraó-do-cerrado.  Atormenta-lhe a aparente falsa tranquilidade que rodeia os seus dias e noites em festas e comemorações caras e infindáveis. Se bem que o faraó-do-cerrado tudo pode proporcionar, ainda em vida, para sua enorme prole. Família bem planejada, mas desregrada no mundo das exigências. São felizes enquanto tudo podem e tudo têm.

Às madrugadas, quando o faraó volta costumeiramente bêbado para sua confortabilíssima pirâmide, encontra-a vazia, silenciosa, carente de aconchego sincero. Onde estão os seus? Será que vagam pela noite de Brasília em busca de outros prazeres maiores que os disponíveis na pirâmide zelosamente planejada? Onde estão seus filhos, os herdeiros dos bens materiais amealhados?

Pobre faraó-do-cerrado! Periga até esborrachar-se enfartado nos litros do generoso wiskey.  Ninguém lhe poderá socorrer. Nem a circunstancial e bela esposa, chique e perfumada lhe espera para um carinho sincero de boas-vindas. Outrora era tão diferente! Agora? Ora, agora ela também dorme encharcada no azedume de outros porres. Curte um significativo ronco noturno para não testemunhar e nem ceder às abordagens noturnas do repugnante faraó alcoolizado sem amor.

Essa imaginação da vida depravada típica do faraó-do-cerrado povoa a mente do pária que passa, em silêncio, sempre por perto do portão de fecho eletrônico. Quanta diferença entre o pobre carroceiro e o faraó! Aquele não necessita dissimular para os seus iguais: gente simples sem a fortuna do Destino não carece nem mentir.  Este, o faraó, pobre de amizades, vive de mentiras por necessidade social. Por conveniência busca ser sedutor, fascinar e, às vezes, diz SIM quando quer dizer NÃO. E – coitado! –, diz NÃO quando a vontade é dizer SIM. Coisas de gente fina da sociedade hipócrita.

O faraó-do-cerrado não vive dilemas morais. Está acima das convenções das regras inventadas pelos moralistas. Quando ultrapassa limites, mesmo graves, acode-lhe um batalhão de causídicos eficientes e ávidos nas justificativas do procedimento antissocial.

O autêntico faraó-do-cerrado afoga-se, quase naufragante, no trabalho a que se dedica por inteiro desde as onze da manhã varando, na mais das vezes, até madrugada. O antigo calor do lar agora vazio, não lhe atrai mais cedo. Ninguém lhe espera. Quando entra na segura e sólida pirâmide solitária, já vem farto dos bons restaurantes das rodadas de compromissos dos iguais da sua corte: os outros assemelhados faraós-do-cerrado.

Ah! Que diferença de sorte e de vida! O pária levanta antes do sol para não perder na competição diária. Os seus pares – outros párias – estarão todos muito cedo, ainda na escuridão, chafurdando, respeitosamente, as latas dos lixos piramidais e os contêineres ministeriais na busca do papelão e dos restos preciosos de papel malbaratado.

Pela noite volta o pária cansado para os braços da amorosa companheira que o espera para juntos, sorver com imenso prazer, um bule inteiro de café de eflúvios contagiantes! Naquela simplicidade e aconchego do alegre barraco, confessam e podem praticar o gratificante amor carnal de todas  as noites. Este pobre homem feliz agora pode dormir quase bem ao lado de faraó desgraçadamente rico, infeliz, trancado e seguro, mas insone e sem ninguém na bela pirâmide soturna.

A suposta diferença dos seres humanos que dormem quase ao lado, reside nos seus potenciais de sonhos. O faraó-do-cerrado vive e sustenta o comportamento onírico pelos padrões da desastrada economia ocidental. Ele quer consumir desbragadamente. Às vezes na sua mania de exibição, acelera com o pé no fundo os doze cilindros da Mercedes saturando, sem piedade ou pudor ecológico, o ar, queimando a gasolina de cem octanas!   O seu pretenso gigantismo econômico não passa, por fim, de um miserável caçapo: os compromissos, as dívidas, o apego aos bens ao peso de ouro torna sua existência acachapante.

 Veja que grandiosidade de contraste! Enquanto o faraó acelera o carrão de 200 cavalos com violência irracional, o pária compraz – às noites – em jogar um balde de refrescante água no lombo suado do valioso matungo. Veja que ironia: um único cavalo que lhe garante o pão de cada dia!  O pária, em contrapartida, na sua modéstia do viver, não depreda os parcos recursos ao seu dispor. O seu trabalho honrado é apenas de busca e gratificação para um sustento mais que adequado ao Ser Humano. Sonha, quando muito na extravagância, em um domingo ensolarado banhar-se, sem gastos no, Lago Paranoá. É, por isso, o contraponto do “inteligente” e portentoso vizinho com a sua economia ocidental moderna, avassaladora e escravizadora tecnologia ilimitada e sem rumo. O pária, talvez sem dar-se conta, desfruta uma existência sábia nos padrões da economia budista...             

 

NOTA DO AUTOR:

Alberto Fernando Monteiro do Nascimento se mostrava cioso das origens da sua Caruaru, Pernambuco. Mesmo com sua ascensão profissional não descuidou de cultuar os detalhes da gostosa (no dizer dele) música popular brasileira. Conseguiu, só Deus sabe como-, compatibilizar a carreira com os compromissos inadiáveis. Granjeou o mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal de Viçosa/MG e juntou-se à fechada equipe de professores nas alterações políticas, estratégicas e táticas da ciência do ensinar. Sem alarde tornou-se um luminar responsável no mar de Gestão complexa da Universidade Católica de Brasília. Representou a sua instituição perante um seminário na Harvard University, nos Estados Unidos. Pressões poderosas da vida levaram-no ao infarto fatal. A família enorme e os chegados, sabia do seu desejo simples, mas apoteótico pós morte: no instante da cremação o deslizar do seu caixão à fornalha final ao som mavioso de adeus do cavaquinho dedilhado pelo garoto Ian Coury. Palmas, sem lágrimas e adeus querido Alberto! 

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