sexta-feira, 1 de abril de 2022

MÃOS PARA O CÉU

Por Júlio Castelo Branco (Brasília, DF)

 

Eu tinha dez anos quando tudo aconteceu. Naquele dia, como não teria aula, minha mãe chegou pra mim e disse: “hoje você vai comigo”.

Fazia pouco menos de um ano que havíamos deixado o Nordeste para trás — junto com o papai que sumiu três dias antes de nossa partida —, indo morar num barraco de um cômodo em Ceilândia, Cidade Satélite a alguns quilômetros de Brasília. A antiga pobreza de que mamãe tentara escapar, sem marido, comigo a seu lado, pouca roupa na mala e bastante esperança, transformou-se apenas numa dificuldade diferente, numa penosa insistência, da parte dela, de que, pelo menos aqui, na Capital do país — longe da falta de oportunidade e da miséria tão íntima na qual havia crescido — cedo ou tarde a grande mudança ocorreria. Mas como a tal mudança parecia vir bem devagar, ao contrário das despesas, pois já se aproximava o tempo de pagar isso ou aquilo, nós duas saímos de casa, naquele dia escaldante e úmido, para mais um dia de luta.

Ao chegarmos na rodoviária, mamãe pediu que esperássemos até o último passageiro descer, para então, só aí, segurar firme o carrinho, do qual pendia um isopor, e o colocar com todo cuidado no chão. De olhos vidrados na multidão que passava por nós, indiferente — para falar a verdade eu nunca tinha visto tanta gente assim reunida num único lugar —, assustei-me quando ela tocou o meu ombro, “ei, vamos?”, segurou a alça do carrinho, e se pôs a gritar, “áaagua, olha a água geladinha...”, caminhando calmamente entre a gente que parecia ignorar, com toda pressa do mundo, seus gritos. Aquilo tudo era uma grande novidade para mim! Uma menina assustada, que corria os olhos por todos os lados na esperança de entender de onde aquelas pessoas saíam. Vez por outra mamãe me fazia parar, largava minha mão, falava com a pessoa à nossa frente, entregando-lhe a garrafa ao receber o dinheiro, e seguíamos. Esse pequeno enredo silencioso que nós duas fazíamos, em meio à balburdia daquela multidão, quebrou-se apenas quando, algumas horas depois, mamãe olhou pra mim e perguntou, “vamos tentar em outro lugar?”, como se me coubesse decidir.

Cortando a fileira de ônibus, que murmurava a impaciência do motor estacionado, pouco depois caminhávamos naquelas imensas calçadas vazias, como se as estruturas que eu via à minha frente, sob a quentura que nos castigava, houvessem sido erguidas, subitamente, para me alegrar. Foi quando eu a vi, ainda distante, pela primeira vez. Tudo me fez crer, ao me aproximar e ver aquela coroa — e claro, ao encontrar os gigantes que a protegiam —, que estava diante da casa de um rei. Os vidros que revestiam suas paredes brilhavam, como a clarear e intensificar a certeza, de todos que circulavam por ela, de que ali havia paz. Então, com um leve puxão em seu braço, perguntei à mamãe, “o que é isso, mamãe?”. Com o suor a encharcar o seu rosto, ela me olhou desconfiada e disse, “é a Catedral, filha...”, e sem me dar chance de perguntar algo mais, falou, puxando-me pela mão, “vamos procurar uma sombra, não estou me sentindo bem”.

A voz de mamãe parecia cansada ao inquirir a senhora sob uma lona velha de um carrinho de balas, “podemos ficar aqui um pouco?”. Com um sorriso amistoso, a mulher puxou um banquinho de madeira, que estava ao seu lado, e mamãe se sentou; depois abriu o isopor, pegou a garrafa e mostrou à senhora gentil, mas ela, com o mesmo sorriso, meneou a cabeça negativamente. Sem tirar os olhos da Catedral, bebi goles pausados da garrafa que mamãe me ofereceu; foi nesse momento, ao perceber meu interesse por aquele lugar, que a senhora olhou para mim e descobri tudo. “Você gosta dela... da Catedral?”; sem reação, balbuciei “uhum”. “Tá vendo ali? – ela apontou a cúpula — “ali são mãos voltadas pro céu, rogando a Deus”. Por um instante, não compreendi o que ela queria dizer; falei então, “mas isso é uma coroa... ou aqui não é a casa de um rei?”. Mamãe parecia melhor e, com um semblante vazio, ouvia nossa conversa sem questionar. “Se é assim que você quer chamar Deus ... é sim, de um rei...”. Claro que não era de Deus que eu estava falando, mas como não tivesse coragem e tempo de formular o que minha cabeça infantil havia imaginado, a senhora, um tanto sorridente, explica, “mas o homem que desenhou esse lugar não acreditava em Deus”; como eu achei impossível o que ela me disse, encarei novamente a Catedral, depois a mamãe que exclamou, com certa aversão, “cruz credo!”. Então nos calamos, e continuei a olhar, maravilhada, a bela morada de um rei, de um deus, e de uma esperança, com as mãos para o alto, criada pelas mãos de um ateu. Depois de muitos anos, graças à minha mãe, me tornei arquiteta, e pude criar nossa própria esperança.             

 

 

Um comentário:

  1. Que texto lindo e delicado! A sensibilidade do escritor que de um lado transmite a dureza da vida pelo olhos de uma criança, e do outro lado a contemplação e a esperança de dias melhores.

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