Por Júlio Castelo Branco (Brasília, DF)
Eu tinha dez anos quando tudo
aconteceu. Naquele dia, como não teria aula, minha mãe chegou pra mim e disse:
“hoje você vai comigo”.
Fazia
pouco menos de um ano que havíamos deixado o Nordeste para trás — junto com o
papai que sumiu três dias antes de nossa partida —, indo morar num barraco de
um cômodo em Ceilândia, Cidade Satélite a alguns quilômetros de Brasília. A
antiga pobreza de que mamãe tentara escapar, sem marido, comigo a seu lado,
pouca roupa na mala e bastante esperança, transformou-se apenas numa
dificuldade diferente, numa penosa insistência, da parte dela, de que, pelo
menos aqui, na Capital do país — longe da falta de oportunidade e da miséria
tão íntima na qual havia crescido — cedo ou tarde a grande mudança ocorreria.
Mas como a tal mudança parecia vir bem devagar, ao contrário das despesas, pois
já se aproximava o tempo de pagar isso ou aquilo, nós duas saímos de casa,
naquele dia escaldante e úmido, para mais um dia de luta.
Ao chegarmos na rodoviária, mamãe
pediu que esperássemos até o último passageiro descer, para então, só aí,
segurar firme o carrinho, do qual pendia um isopor, e o colocar com todo
cuidado no chão. De olhos vidrados na multidão que passava por nós, indiferente
— para falar a verdade eu nunca tinha visto tanta gente assim reunida num único
lugar —, assustei-me quando ela tocou o meu ombro, “ei, vamos?”, segurou a alça
do carrinho, e se pôs a gritar, “áaagua, olha a água geladinha...”, caminhando
calmamente entre a gente que parecia ignorar, com toda pressa do mundo, seus
gritos. Aquilo tudo era uma grande novidade para mim! Uma menina assustada, que
corria os olhos por todos os lados na esperança de entender de onde aquelas
pessoas saíam. Vez por outra mamãe me fazia parar, largava minha mão, falava
com a pessoa à nossa frente, entregando-lhe a garrafa ao receber o dinheiro, e
seguíamos. Esse pequeno enredo silencioso que nós duas fazíamos, em meio à
balburdia daquela multidão, quebrou-se apenas quando, algumas horas depois,
mamãe olhou pra mim e perguntou, “vamos tentar em outro lugar?”, como se me
coubesse decidir.
Cortando a fileira de ônibus, que
murmurava a impaciência do motor estacionado, pouco depois caminhávamos
naquelas imensas calçadas vazias, como se as estruturas que eu via à minha
frente, sob a quentura que nos castigava, houvessem sido erguidas, subitamente,
para me alegrar. Foi quando eu a vi, ainda distante, pela primeira vez. Tudo me
fez crer, ao me aproximar e ver aquela coroa — e claro, ao encontrar os
gigantes que a protegiam —, que estava diante da casa de um rei. Os vidros que
revestiam suas paredes brilhavam, como a clarear e intensificar a certeza, de
todos que circulavam por ela, de que ali havia paz. Então, com um leve puxão em
seu braço, perguntei à mamãe, “o que é isso, mamãe?”. Com o suor a encharcar o
seu rosto, ela me olhou desconfiada e disse, “é a Catedral, filha...”, e sem me
dar chance de perguntar algo mais, falou, puxando-me pela mão, “vamos procurar
uma sombra, não estou me sentindo bem”.
A voz de mamãe parecia cansada ao
inquirir a senhora sob uma lona velha de um carrinho de balas, “podemos ficar
aqui um pouco?”. Com um sorriso amistoso, a mulher puxou um banquinho de
madeira, que estava ao seu lado, e mamãe se sentou; depois abriu o isopor,
pegou a garrafa e mostrou à senhora gentil, mas ela, com o mesmo sorriso,
meneou a cabeça negativamente. Sem tirar os olhos da Catedral, bebi goles
pausados da garrafa que mamãe me ofereceu; foi nesse momento, ao perceber meu
interesse por aquele lugar, que a senhora olhou para mim e descobri tudo. “Você
gosta dela... da Catedral?”; sem reação, balbuciei “uhum”. “Tá vendo ali? – ela
apontou a cúpula — “ali são mãos voltadas pro céu, rogando a Deus”. Por um
instante, não compreendi o que ela queria dizer; falei então, “mas isso é uma
coroa... ou aqui não é a casa de um rei?”. Mamãe parecia melhor e, com um
semblante vazio, ouvia nossa conversa sem questionar. “Se é assim que você quer
chamar Deus ... é sim, de um rei...”. Claro que não era de Deus que eu estava
falando, mas como não tivesse coragem e tempo de formular o que minha cabeça
infantil havia imaginado, a senhora, um tanto sorridente, explica, “mas o homem
que desenhou esse lugar não acreditava em Deus”; como eu achei impossível o que
ela me disse, encarei novamente a Catedral, depois a mamãe que exclamou, com
certa aversão, “cruz credo!”. Então nos calamos, e continuei a olhar,
maravilhada, a bela morada de um rei, de um deus, e de uma esperança, com as
mãos para o alto, criada pelas mãos de um ateu. Depois de muitos anos, graças à
minha mãe, me tornei arquiteta, e pude criar nossa própria esperança.
Que texto lindo e delicado! A sensibilidade do escritor que de um lado transmite a dureza da vida pelo olhos de uma criança, e do outro lado a contemplação e a esperança de dias melhores.
ResponderExcluir