sexta-feira, 1 de abril de 2022

EM PERPÉTUOS CICLOS

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)


Em memória de João Carlos Pereira

 

‘’Eu prefiro as certezas do sim!

 Do que a incertezas do talvez.’’

Clarisse da Costa

 

            Uma vaga leve fragrância de flor de laranja alternado por um forte olor almiscarado estava suspenso no ar. Uma explosão de fortes e vívidas cores irritou muito o agente de segurança que vagava pelo salão. O vai e vem de gente negra, de vários tons de pele escura, pulseiras reluzentes, enormes brincos, lenços na cabeça, turbantes variados e as roupas berrantes e chamativas.

E o som baixo e discreto de eufônicas de variadas línguas estrangeiras que se lançavam no ar e intercambiavam entre as pessoas que ocupavam os espaços como se fosse uma perfeita sinfonia. O agente de segurança de idade avançada sentiu um frio na espinha como nunca tinha sentido antes.

***

            — Aquieto-me para recomeçar um novo ciclo professor Muteia. O texto quase parece com o de uma falecida autora. Mas a obra é minha com toda a certeza! — O rascunho estava na mesa, Adérito Muteia relutava em pegar o manuscrito para ler. O literato africano já tinha recebido uma cópia em mídia digital. Mas algo gritava dentro dele e de forma desesperada.

            — Minha querida Fabiana de Lima, não creio que posso satisfazer os anseios de vossa senhoria no momento.

            O palavrório afetado, com leve sotaque luso, irritou a jovial loura, vestida sobriamente como uma aluna de pós-graduação a apresentar uma tese, com seu tailleur Chanel azul limão. Os olhos castanhos em chamas dela cravaram profundamente em Muteia, o africano devolveu semicerrando os olhos negros profundos. Seria uma reunião e tanto pensou Muteia àquela hora.

            O agente de segurança passou ao lado de onde Fabiana e Muteia foram se alojar. O homem da lei, muito idoso para um agente de campo, parou e se voltou de forma abrupta para o casal.  Mil vozes mínimas em desesperos urraram dentre dele, o casal impassível sequer deu pela existência do homem idoso impecavelmente vestido que andava com a ajuda de uma bengala e de óculos escuros. Cansado o homem sai da sala onde estava, saí como quem foge para salvar a vida cambaleando e lânguido. 

            — Então irá fazer mudanças no texto? Olha o miúda, eu não tenho muito tempo para aspirantes a escritores, és ambiciosa demais e não creio que...

            — Balela professor Muteia! — Falou em tom de desafio — Não vim de tão longe para ter a sua aprovação pessoal!

            — Não me interrompa de novo miúda! Não vou e não quero te dar aprovação alguma, não é este o meu papel!

Muteia estava falando com a jovem adulta na frente dele como se estivesse de novo em campo de batalha. O adido militar já tinha visto isto antes, bem falantes e corajosos jovens combatentes recém saídos de treinamento apressados, em desespero eles choraram e se esconderam quando os combates começavam de fato. 

             — Não quero ser grosseira professor, me desculpe, eu só vim de muito longe e quero ser publicada, eu quero ser mais útil!

            Muteia sentiu um zumbido que crescia e crescia, um drone pensou, dois drones na verdade calculou o professor africano. E o literato ficou mais relaxado e pensou em um charuto, sentia a necessidade de um charuto a bem da verdade.       

          E não demorou muito um jovem secretário indiano bem alinhado veio com uma bandeja de madeira com as bordas artesanalmente decoradas. Nela uma caixa de charutos pintada a mão e de copo de cristal decorado, nela havia chá de lima-da-pérsia gelado. O jovem de cabelos negros e olhos negros vivazes serviu o casal e desapareceu tão rápido quanto chegou. 

            — Miúda não somente querer, pensar ou mesmo desejar! Na verdade, é tudo isto junto temperado com as a casualidades que a vida nos impõe! E temos que viver e conviver não somente com as nossas escolhas, mas também com as escolhas alheias.

            O zumbido ficou mais alto, e o literato esperou e esperou enquanto pegou o cortador de charutos Don Emmanuel e o isqueiro à querosene com tanque de óleo transparente. O professor, literato e adido militar preparou e acendeu o charuto cubano que tinha levado à boca e deu uma demorada baforada.

            A jovem escritora levantou a mão fechada em punho na frente do Muteia, abriu e fechou! O drone parado a poucos metros dos dois se esmigalhou e caiu no meio da rua, caiu na calçada e não atingiu ninguém. Muteia dá uma segunda baforada seguida de um discreto sorriso de marfim e bate palmas.

            — Jovem e impulsiva! E nada discreta pelo que vejo!

            O segundo drone parado a quilômetros de distância caiu lentamente, foi para em uma mata fechada do que seria um jardim de uma luxuosa casa abandonada. Muteia, muito cansara em dar aulas para estes jovens impulsivos. 

            — Vamos ver com mais cuidado o que temos aqui. — Muteia pegou o manuscrito em cima da mesa e leu: Eu falo entre estátuas!


Samuel da Costa é contista, cronista e funcionário público em Itajaí, SC.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

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