quarta-feira, 1 de junho de 2022

A XERENGA DO CAMARGUINHO ("O FURO DA FACA")

 Por Severino Moreira (Bagé, RS)

 

João Simões Lopes Neto, falecido em 1916, deixou entre os seus escritos os famosos “CAUSOS DO ROMUALDO” de Abreu e Silva, onde num desses causos o Romualdo falava de “UM TALHO”, dado pela faca de seu já falecido compadre Mingote Pereira, em uma galinha assada, que segundo descreveu Simões Lopes, era quase da idade da sogra do Mingote, de tão velha e dura a dita cuja. Pois, vejam só quê, a faca cortara a galinha, o prato, a mesa, e ainda atorou o joelho do vizinho da esquerda e a tábua do assoalho com barrote e tudo.

Eu relato um trecho desse causo, acontecido, talvez, há quase cem anos atrás pra mode de dizer que, embora, o autor da façanha já não seja vivo para escutar, eu tenho um causo, que se não é igual é pelo menos parecido com o referido. Como isso embora pareça impossível, eu afirmo que periga ser, e é pura verdade.

Pois “hora vejam”, que eu estava no galpão em um domingo de manhãzita n´uma peleia encarniçada para cortar um pedaço de costela gorda, que pelo visto devia ter sido de um boi com no mínimo meia dúzia de anéis nas aspas de tão velho, pois não havia dente e nem faca que entrasse sequer na graxa da costela, o quanto mais na carne. “de modos que eu” enfrentava uma peleia desigual. Era a fome e a vontade de comer, contra a resistência do tempo, que diga-se de passagem ia levando uma larga vantagem.

Foi quando chegou o meu amigo José Tristão Camargo, que vinha com a incumbência de me convidar para aparecer no programa “Reculutando Raízes”, que produzia e apresentava na Rádio Cultura de Bagé, todas as terças-feiras. Tarefa difícil porque de cordas e maneadores eu sou vaqueano, mas de microfones, sou mais sestroso do que gato do mato acuado de cachorro.

O Camarguinho como é conhecido, compadecido com o meu sacrifício, levou a mão a cintura e puxou uma "xerenguita", que até não inspirava muita confiança. Já meio dentuda e sem ponta, mas segundo me afirmou, cortava até o fio do pensamento à léguas de distância, e que normalmente usava a tal faca para se "afeitar".

O amigo merecia crédito, e então peguei a bendita faca e levantei para largar um talho... Nem gosto de me lembrar, me preocupa até hoje, pois me escapou a xerenga da mão e caiu de bico em cima da costela, partindo ela ao meio, furando junto a caçarola de ferro batido que me servia de prato, a mesa feita com um tronco de tarumã, e ainda atravessou a barriga do meu cachorro que dormia em baixo, rompendo três costelas de cada lado.

Mas, o pior, ainda, não foi isso, o azar é que a faca se afundou chão adentro, a ponto de brotar uma vertente no piso do galpão, e olhem que nem anda longe o tempo, que fizera uma “seca das braba” e eu andara procurando água e pelo que vi na forquilha de pessegueiro o veio "tava" a mais de cem metros de fundura.

Alguns meses depois, ouvindo um programa de jornalismo no meu radinho de pilhas, fiquei sabendo que um conhecido político japonês havia morrido degolado por uma faca que estranhamente havia brotado do chão, como se uma mola empurrasse para fora da terra, atingindo a goela do pobre homem.

Não posso afirmar nada, e na verdade nem quero pensar nisso, mas sinceramente, às vezes penso que a faca do meu amigo possa ter varado o mundo e com isso me sinto indiretamente responsável pela morte desse notável político. Fato trágico e inexplicável que teve repercussão em quase todo o planeta.

Deus me livre que tenha sido, mas me preocupo tanto que até me dói na consciência.

Se alguém duvidar, do que digo, a cacimba que fiz, donde brotou a vertente, ainda está lá num canto do galpão com a água mais cristalina e fresquinha que um dia já bebi.

 

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