Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)
Existem algumas pessoas que têm
verdadeira aversão quando o assunto é morte ou velório. Para muitas há qualquer
coisa de mórbido ou mesmo um extremo mau gosto, embora não exista quem não
tenha uma história engraçada para contar desses momentos sorumbáticos, o que
causa uma das maiores controvérsias da vida ou falta dela. Não raras vezes
aparece um bêbado vindo não se sabe de onde sem ninguém igualmente saber quem é
— talvez amigo do finado que não pode mais prestar explicações — frente a
palavras e casos desconexos proferidos aleatoriamente a causar risadas em uns e
pulgas atrás da orelha de outros.
Há também os casos que viram lendas.
Soube uma vez pela boca de todos os moradores de uma cidadezinha do interior de
Minas que por anos não se falava em outra coisa a não ser da história de D.
Etelvina, senhora de seus oitenta e poucos anos, morta, coitada, dentro do
caixão e sendo velada em casa com os braços amarrados forçando-os a
permanecerem na clássica posição cruzada no peito devido ter sido encontrada
com eles para cima. O porquê de ter sido assim havia muitas versões e não menos
controvérsias, mas foi fato necessário atar as duas mãos com barbante.
Madrugada adentro entre um prato de sopa aqui outro ali, uma conversa lá outra
cá, eis que D. Etelvina foi inchando devagarinho. Parece até ter escolhido o
momento certo, pois quando as pessoas se reuniram para a oração final, já de
manhazinha, o barbante não resistiu à pressão dos braços de velha senhora e
veio a arrebentar. Os braços, antes amarrados, como uma mola voltaram à posição
vertical de uma só vez e fez espalhar flores para tudo que era lado junto com
gente, cachorro, homens, mulheres, novos, idosos, até o padre e o sacristão aos
gritos de misericórdia, latidos e palavrões, ao disputarem, todos, a pequena
janela da sala, pois na porta já não passava ninguém. Nessas horas até os mais
corajosos se revelam e não há quem mantenha posturas.
Há ainda os fatos poéticos, como
aconteceu com um tio meu ao se despedir em um dos almoços de família, como eram
costume todos os domingos. Depois de cantar e tocar suas modas de viola como
ninguém e finda a comilança com uma generosa quantidade de gordura de porco que
ele sempre colocava em seu prato e a tradicional pinguinha, ele se sentou em
sua poltrona demonstrando total tranquilidade, enrolou um cigarrinho de palha,
pitou calmamente e aí recostou confortavelmente, colocou o seu inseparável
chapéu italiano no rosto e disse a todos: “É, está na hora de subir o morro”. O
que todos pensavam ser uma sesta era o seu desenlace, assim mesmo com discrição
e sem sofrimento. Morreu como viveu: feliz e rodeado de pessoas, cantando,
comendo, fumando e tomando cachaça. Foi-se o “Zé do Mato”, como era conhecido,
para mim o poeta da alegria e uma grande inspiração.
Quero aproveitar o ensejo da leveza e
usar a mesma pergunta de um narrador de futebol ao se referir aos títulos do
meu time do coração, porém direcionando-me a esses momentos derradeiros
difíceis para muitos: “por que é que tem que ser tão sofrido assim?” Pois é!
Não tem. Pelo menos para mim. E já que ainda estou aqui para falar sobre isso,
não deixarei que me roubem a mínima oportunidade de opinar sobre um evento cuja
atração principal será eu. Nada mais justo. Até mesmo porque devo elucidar aos
mais supersticiosos que é fato consumado passarmos todos por esse momento e, se
assim é, a única pessoa a dar informações precisas de como pensa ser este
instante sou eu mais uma vez. Portanto, desejo jogar luz a essa situação e
criar um evento poético, por que não? Dúvida? Vai vendo.
A propósito, o leitor atento deve ter
percebido o título dessa crônica e visto lá a palavra “testamento”. Segundo o
dicionário etimológico da língua portuguesa, testamento é o ato pelo qual
alguém, com observância da lei, dispõe de seu patrimônio para depois de sua
morte. Pois bem, segundo a iminência a observância aqui não é a lei, mas a
poesia. E a disposição trata-se da declaração das minhas últimas vontades.
Sendo assim, atesto:
Eu, escritor dessa crônica, brasileiro,
casado, inscrito em todas as leis do desejo de romantizar a vida e a morte que
me cabem, estando em perfeito juízo e em pleno gozo de minhas faculdades
intelectuais, sem nenhuma interdição, na presença de (03) três testemunhas a
seguir qualificadas: a literatura, o amor e a gratidão, residentes e
domiciliados nas Ruas dos que Escrevem, dos que nos Move e dos que me
Permitiram Estar Neste Mundo, livre de qualquer instrumento ou coação, resolvo
publicar a presente crônica-testamento na qual exaro minhas últimas vontades, pela
forma e maneira seguinte: PRIMEIRO: Não quero choro, se possível, prefiro os
sorrisos. Afinal, passei por essa vida e venci, embora esteja a passar e a
vencer neste exato momento da escrita. SEGUNDO: Não quero flores. Por que matar
e enterrar as pobrezinhas? Acredito que um ser, no caso eu nessa condição no
momento, seja o bastante. Além do mais, perfume de flores com vela é muito
característico de defunto, Deus me livre! Estar morto já é suficiente. No lugar
delas prefiro bolinhas de papel. Estar coberto por elas me é muito mais
agradável e mais condizente com a minha profissão. TERCEIRO: Quero papéis
avulsos na entrada do recinto e também um pote de lápis para as pessoas
escreverem, se desejarem, uma mensagem, um poema, a letra de uma música ou
outra coisa sugerida pelo coração, fazer uma bolinha com o papel e colocá-la
junto às outras. Maledicências não serão fiscalizadas, mas eu saberei e prometo
transmutá-las do lado de lá. QUARTO: Quero um evento agradável. Para isso, peço
que a partir de então a palavra “velório” seja modificada por “sarau” para que
todos possam se divertir. A palavra “capela” se houver não precisa ser
substituída na grafia, mas ressignificada, isto é, apenas caso alguém
queira cantar sem o acompanhamento de instrumento, o que será maravilhoso. Caso
tenha algum, que sejam violão e flauta transversal, meus preferidos. Violino é
lindo, mas aumenta a tristeza e não há esse sentimento em saraus. QUINTO: Ainda
sobre a música, fica valendo a popular brasileira. Chorinho não combina com o
meu momento, muito menos sofrência. Essa nem morto quero ouvir. SEXTO:
Como grand finale, em seu sentido literal, desejo ser conduzido ao último
berço ao som de “Canon em Ré maior”, de Pachelbel. E no momento exato do
plantio, para dar um ar mais poético e galante, que alguém leia em alto e bom
som a poesia “Hora Eterna”, de Henriqueta Lisboa. Não lhes furtarei o prazer da
procura, mas transcrevo aqui alguns versos:
[…] Vida que esplendes por que passas!
Quero viver, sentir num turbilhão
dentro do pensamento a certeza deste eu.
Sofra, embora – que importa? – O corpo
fatigado.
Quero vida, mais vida, alma, renovação,
força para reter tudo o que o céu me
deu,
capacidade para amar o que foi
criado!
Vida que esplendes porque passas,
e que és amada porque findas! […]
Bem a propósito, não é mesmo?
E dito isso dou por encerrada a presente
crônica-testamento na existência das (03) três testemunhas acima descritas,
para as quais dedico a minha vida e que a confirmará em juízo no cartório do
céu, de conformidade com a lei da arte e da natureza.
EM TEMPO: Não quero enfeites, nem
placas, nem mármores frios; a terra me basta. E nela, bem perto de mim, que se
plante um pé de ameixa. Dele nasci e nele eternizo. Não quero virar estrela,
prefiro ser árvore. Bem viva.
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