quarta-feira, 1 de junho de 2022

DO DIÁRIO DE FABIANA DE LIMA

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

            Eu quero deixar claro que este relato que redijo agora, não é um registro fiel e exato do que foi e é a minha vida. Quero deixar o meu olhar, que é somente meu, das minhas sensações e das impressões do que seria a minha vida até aqui. As minhas sensações do que é a realidade em que vivo e que se mistura com um mundo particular de angústias, de sonhos e de pesadelos, que nunca pude dividir com mais ninguém.

            Escrevo em meio a uma torrente de sentimentos bons e ruins, este breve relato, como quem tenta olhar para si, de fora para dentro, como uma maiêutica socrática muito particular minha. As influências das minhas pequenas e grandes tragédias, permeadas por pequenas e grandes paixões, amores e desamores.

A começar como o que penso ser a minha infância, dos pequenos flashes difusos, que me chegam até a minha vida adulta. Com o passar do tempo, se transformaram em clarões, em meio às escuridões que existem dentro de mim. Nasci sem conhecer o meu pai, o que me disseram que partiu para o estrangeiro e nunca mais voltou, logo presumi que ele esteja morto. Quem era ele afinal de contas? A figura do meu pai era, e ainda, é uma sombra difusa, que me acompanha desde a minha tenra idade até aqui.

Ele foi um jovem promissor professor universitário, formado em belas-letras, especialista em literatura espanhola medieval e moderna, e de teatro espanhol medieval e moderno. Meu pai, me confidenciaram e, depois confirmei, também era poeta, contista e cronista, ator de teatro, produtor e diretor teatral e dramaturgo, com uma carreira promissora na academia interrompida de forma abrupta.

Até que um dia ele se foi, foi arrastado e jogado ao chão por onda reacionária e extremista, foi preso, torturado e por fim exilado. E os detalhes explicarei mais a frente, agora falo da outra ponta na minha vida, a minha mãe. Ela era jovem atriz dos palcos e das telas e se conheceram nos bastidores do meio literário e cultural. Logo se apaixonaram e se casaram não muito tempo depois, coisas de artistas apaixonados pela vida e pelas belas-artes.

A minha mãe nunca escondeu nada de mim, nada mesmo, ela não me preservou de nada. Seguido, a prisão do meu pai e sua partida para o exílio, a minha mãe grávida, se mudou do litoral agitado e se mudou para uma tranquila cidade pequena no interior. A minha mãe foi se dedicar ao magistério, foi ser a professora de crianças por fim.

Estranhamente sempre senti a forte presença do meu pai, a cada passo que a minha mãe dava na vida, a cada decisão que ela tomava eu sentia as digitais do meu pai. Primeiro eram pequenos ruídos aleatórios, sempre no alvor, no arrebol, sempre à tardinha, ao pôr-do-sol e eram sempre breves. Depois as vagas sombras e os leves ruídos se transformaram em palavras difusas, depois em imagens etéreas e por fim ações e decisões no plano da realidade. Os dois conversavam no silêncio e na quietude nas alvoradas rubras.

Assim a minha mãe se casou novamente, com um dedicado professor de português e inglês do ensino médio. Tivemos uma vida tranquila, tivemos uma vida estável e eu tive uma educação acima da média das outras crianças da minha realidade de então. Apesar do fato que vivíamos em uma cidade pequena e longe de médios e dos grandes centros urbanos. E apesar de não sermos uma família de posses. Sempre tivemos acessos aos muitos livros, vastos filmes, músicas diversificadas e longas conversas sobre belas-letras e belas-artes. Ao longo da minha vida, primeiro eu era uma simples espectadora e depois incentivada era um elemento integrante, deste pequeno universo cultural, pois a nossa casa era frequentada por professores e intelectuais da localidade. Isso desde a minha mais tenra idade até eu ter idade de bater asas e sair de casa, dos meus pais aquele pequeno universo que era bom para mim e não me desafiava em nada.

Peço desculpas para quem lê esta pequena digressão, desculpas os grandes saltos temporais e as letras vagas e difusas, mas este relato tem que ser breve. fatos de eu estar sempre ser sozinha, sempre ter poucos amigos da minha idade até a vida adulta. E eu me sentia bem assim, é uma irrelevância completa para este relato. E assim o será este meu relato íntimo!

 Mas as sensações, as contradições, as falas e imagens dispersas ao ar? Desde criança tive somente a ausente fisicamente o meu pai na minha vida, não digo que conversava com o meu pai, ou que sonhava com ela acordada. Digo que as mensagens dele chegavam primeiro difusas e depois claro e cristalina, trespassava o tempo e o espaço eu bem sabia. Nunca a minha mãe teve a coragem de me dizer o que passa pela mesma situação. Era ateia demais para isto, presa à realidade, ao mundo da matéria, e creio que divido com ela a mesma posição, mas tenho uma ligação carnal com o meu pai, com ela era uma ligação afetiva e etérea.     

Fui procurar o meu pai, por fim, fui percorrer os passos dele, fui cursar belas-letras na faculdade, como quem procurar algo, procura preencher uma lacuna na própria existência. Fui vasculhar o mundo, que outrora foi do meu pai e a minha mãe também, o mundo em que ambos estavam imersos e submersos. Eu foi ter as minhas próprias impressões e sensações deles. E descobri pôr fim a longa produção textual do meu distante pai, das críticas de artes, dos poemas milimetricamente construídos, das poesias livres em versos herméticos, das novelas e dos romances. Muita coisa publicada para um circuito alternativo e acadêmico somente, o meu pai não era para os grandes públicos.

 Descobri também a militância de oposição ao regime brutal que tomou o poder no país a tempos idos. Encontrei referências do núcleo artístico que meu pai integrava, e para a minha surpresa o grupo ainda existe, sobreviveu a forte opressão brutal por parte do regime opressivo. Estavam dispersos e ainda ativos, e para a minha grande surpresa não eram somente artistas que gravitavam no núcleo. Eram impressores de livros e revistas, produtores executivos de veículos de comunicação de massa, eram influentes comunicadores e uma variedade de trabalhadores, profissionais liberais e pequenos empreendedores e prestadores de serviços. Todos ligados de forma direta e indireta ao mundo das belas-artes, belas-letras, ao entretenimento, a música popular e erudita e comunicação em geral. Através deles colhi muito material escrito, gravações em áudio e em vídeo e depoimentos sobre o meu velho pai, por fim foi isso. O meu pai era querido e bem aceito, em variadas esferas e unia todos esses universos interligados e despertos.

 Mas uma sombra se ergueu, palavras ditas entredentes, sussurradas e cortadas, pois se a vida profissional e pública do seu pai foi desvendada a final de contas. Mas as atividades políticas simplesmente não existiam, subsequente ao grupo político que ele integrava não existia de fato e de direito. Simplesmente ninguém falava e apontava o caminho para mim. Então, se assim fosse deixei que as coisas simplesmente acontecessem sozinhas, ou que permanecessem nas profundezas das escuridões abissais do subterrâneos para todo o sempre.

Falo agora de mim, ao final da minha vida acadêmica, lá estava eu e o meu gato, o meu bichano, o meu animal de estimação, que um dia apareceu na minha casa e nunca mais foi embora. Eu estava em paz e na paz comigo mesma, pela primeira vez na minha vida. Eu e o meu fiel companheiro, que gostava de se esconder debaixo da minha cama, eu ficava preocupada e levantava a pesada cama para ver se ele estava vivo ou morto. Mas, em uma noite remota, o meu amigo de quatro patas pulou pela janela do meu pequeno apartamento. Ele se espatifou do terceiro andar, vi o pequeno corpo morto do meu bom amigo no meio da rua deserta, agonizava, uma tragédia para mim. Não tive nem coragem de recolher o corpo do meu amigo e dar um fim digo aos restos mortais dele. A tristeza se abateu em mim.  

Até que, simplesmente, o vi dias depois caminhando calmamente pelos telhados das casas próximas. E, não demorou muito para vê-lo vagando pela minha casa, e foi assim por dias e meses, o via morrer e renascer por várias vezes de várias formas. Estava vivendo esse pesadelo muito particular, os olhos, tinha os olhos castanhos claros brilhando do gato amarelo malhado, que um dia fora meu. Os olhos vazios de significados simplesmente me encaravam, os miados e ronronados desapareceram por completo e a tigela de água e comida sempre estavam intocadas. O que sobraram foram somente as carícias gélidas nas minhas pernas e pular dele em cima de mim quando estava sentada no sofá e deitada na minha cama.

Era um prelúdio, que algo ou alguma coisa que estava chegando e chegou atrás de um convite de gente próximas de meu pai. Um convite para integrar um coletivo literário recém aberto. De fato, o mesmo grupo que o meu pai um dia fez parte e foi recém reativado. Era para ser um grupo de debates, cursos, palestras, aulas, leitura de textos e por tudo que se refere à produção e difusão de textos, escritos e falados. Sem início, meio ou fim, sem locais, datas e horários pré-definidos, ou sem métodos, sem hierarquias predefinidos. Nem tendo tabus, somente o respeito às pluralidades de ideias era a lei.  Vários profissionais e amadores do texto escrito e falado se reuniam esporadicamente em locais variados para ler, recitar, debater e apreciar textos variados em mídias variadas.

Como nunca gostei de misturar com outras pessoas, de coletivos e de multidões, escutava mais do que falava nas reuniões. E foi assim que ele entrou na minha vida, Adérito Muteia, o professor luso-africano. Um pós-doutor a bem da verdade, conheceu o meu pai no exílio, no distante leste europeu e através dele descobrir muito de quem era o meu pai, de boa parte das atividades políticas dele. Aquela figura difusa de repente tomou formas concretas e descobri muitas coisas, o professor também não me poupou detalhes. O como, o quem e os muitos porquês do exílio do meu pai, afloraram como um torrente de dores, amores e paixões. Descobrir o irmão do meu pai, um delegado aposentado e sua neta, depois falo deles, aqui o foco é outro.

 Agora relato que a própria realidade pura e simples para mim se converteu em outras coisas, o professor luso-africano desnudou multiversos infinitos, para além das minudências que nos permeia.

Agora escrevo e escrevo com sangue e com as iras dos deuses e deusas que reinam no além do tempo e do espaço, para o além da realidade em que existo neste plano. Não como uma profissão de fé, componho para mudar a minha realidade como alguém preso a uma realidade agonizante e cruel.   

 

Texto de Samuel da Costa de Itajaí, Santa Catarina

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

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