Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)
Aflição de ser água em meio à terra
e ter a face conturbada e imóvel.
Hilda Hilst
Tenho um gosto especial pelos diários, principalmente aqueles escritos com a mais fina pena da literatura. Como não lembrar Carolina Maria de Jesus e seu “Quarto de despejo, o diário de uma favelada”? O que falar de “Memorial de Aires”, um dos meus livros preferidos de Machado de Assis? Ou mesmo “Drácula”, de Bram Stoker, todo escrito em forma de diários pelos personagens da trama em idas e vindas, questionamentos e respostas ao tecerem um impressionante relato intercalando-se uns aos outros?
Todos esses diários são eternizados nas memórias de quem os leram, alguns ficcionais, outros reais e outros ainda mistos. Vá entender a cabeça de um escritor! Mas há um no pedestal dos apaixonados por essas linhas inicialmente pessoais e despretensiosas a chamar-me curiosa atenção: o diário de Anne Frank. Isso mesmo! É o nome do que se tornou um dos livros mais emocionantes do mundo inteiro. A história da pequena Anne, assassinada pelos nazistas depois de passar anos escondida com sua família e outras pessoas no sótão de uma casa em Amsterdã, onde funcionava a fábrica de seu pai.
Mas não irei falar aqui sobre essa triste história, que não deve ser esquecida; daí também a importância dos diários. Antes falarei de uma peculiaridade simples, mas genial: Anne não escrevia ao léu, mas para Kitty, uma amiga imaginária. O que isso tem de extraordinário? Tudo! Ao direcionar a escrita a alguém, ela se torna, além de íntima, confidencial. Ainda mais se esse “alguém” for bem construído, com uma vida pregressa, profissão, família, amizades, escolhas… Isso o torna uma pessoa em potencial de não apenas escutar a sua fala, mas dialogar com as suas alegrias e dores. Como? Nas suas próprias digressões. É possível supor qual seria a resposta, mesmo que não concorde com ela.
Por isso, não me custa nem um pouco confessar: furtei a ideia de Anne. Mas não me julgueis mal. Jorge — sim, o “meu Ktty” se chama Jorge — é alguém que conviveu e convive comigo há muitos anos. Bem antes de adentrar-me no universo dos diários já detinha com ele longas conversas. Almoçava com ele, ria com ele, chorava e até brigava. Chegamos a ficar alguns anos sem nos falarmos, embora ele sempre me aparecia em sonhos, mesmo em silêncio, a abrir-me as janelas da minha alma. Engana-se quem pensa que era eu uma criança. Estou a referir de quando já era bem crescidinho. E como foi ele a escolher-me e não eu a ele dei-lhe um presente: um romance — Janelas da Alma — no qual Jorge, com toda a sua destreza, fundiu-me ao seu modo de pensar e de sentir. Tornou-se o personagem principal.
Caso se interesse em ler ficaremos felizes. Por hora, gostaria de apresentar-lhe o nosso primeiro encontro que passou a ser, também, após o livro ser publicado, o início do nosso diário. O chamo de “Entre o anelo e o Suspiro”.
Há momentos de mais puro esquecimento, esses momentos entre os quais nossa alma se liberta em princípio de estado. Como é doce o não ter que ser… Era o pensamento de Jorge ao me olhar pela primeira vez. Queria não ter que ser sempre, entregar-se a ele mesmo como as flores se entregam ao orvalho da manhã sem trocas e sem medos.
Sempre teve [ou tive?] a visão desse encontro: ora era a flor, ora o orvalho, como ora era o escritor, ora o personagem, sem preferências ou escolhas a vir destruir os versos existentes “entre o anelo e o suspiro”, como dizia aquela poesia guardada em um naco de memória.
Já era noite e toda noite era assim: preparávamo-nos, eu e Jorge, para esquecer, nunca lembrar. No esquecimento, não há sonhos – essa arrogância do pensamento. Isso já era eu a achar, em comunhão com meu personagem, a essa altura sem saber quem era ele e quem era eu.
Não importa. Calávamos
um para o outro no momento exato do esquecimento, fragrância milimétrica de
tempo entre o estar acordado e o começar a dormir. Pronto. Já foi. O barulho
recomeça e o sonho invade os nossos pensamentos.
Boa noite, Jorge.
Amanhã
volto
a
escrever-te.
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