quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

CRÔNICA DO DIA: O NÃO LUGAR E O TRIO TERNURA

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

‘’Às vezes… Finjo ser eu o versejador!

Nos tempos pós-modernos!

E em meus versos!

Sinto que não fostes embora...

Estás perdida entre os meus versos...

Mais profanos... No estro meu...

Às vezes finjo que não te perdi,

Para todo o sempre! ’’

Samuel da Costa

 

         Quando foi apresentada a estranha e esdrúxula teoria do professor Adérito Muteia, Virginia não ficou surpresa e nem chocada. A aluna de Belas-letras, Virginia achou curiosa a teoria ser apresentada na cadeira de humanas, uma teoria que misturava física quântica e neurolinguística. Então, somente quando a estudante se aprofundou na teoria do professor Adérito Muteia, que as coisas passaram a fazer sentido, pois um dos elos que unia a física quântica e neurolinguística era a literatura fantástica do horror cósmico, lovecraftiana e a estética surrealista.   

         Os olores ocres, da mata atlântica chegavam em Virginia, para lembrá-la de onde ela estava, o pequeno bairro afastado, longe das agitações do centro da cidade e dos empobrecidos bairros populares. Uma rodovia de mão dupla, enclausurava o antigo loteamento em um vale, uma parede, uma morraria e duas entradas e saias atrofiava ainda mais o lugar. O lugar tinha ares de uma pequena cidade do interior, calma, poucas casas com dois pisos e com pouco trânsito.

         O clima era mesmo de cidade pequena, onde todos e todas se conhecem, um pequeno comércio, o fato que o local era ocupado por agentes do serviço de segurança. E como o ambiente interiorano, estático sufocava Virginia, em demasiado, pelo menos na adolescência, onde a inocência da infância fica para trás e a complexidade da vida adulta bate à porta. Foi no ensino médio e na universidade que Virginia respirou novos ares.   

         — Virginia! Minha sobrinha, quem são estes três rapazes? Que vem e vão a esmos por aqui? — Perguntou pesarosa Emengarda.   

         — Que três guris tias? — Respondeu Virgínia com uma outra pergunta, ela que se recusava a olhar para trás e olhar, o ranger da cadeira de balanço denunciavam o ir e vir, o sobe e desce da tia Hermengarda.  

         — Que três! Ó nessa, os pretinhos que vem e vão na frente da nossa casa, ó pá! — Proferiu Emengarda, a normalista de profissão, proferiu como se fosse um artilheiro a disparar uma matadeira, a fazer uma pergunta retórica. Fazer perguntas retóricas como um artilheiro dispara um obus sem parar, era uma especialidade de Hermengarda.

         Virginia espero outra dizer alguma coisa, mas Etelvina nada disse e a discórdia entre as duas irmãs não veio, como era comum. 

         — Os três negrinhos, vem ver o antilhano! O esquisito do estrangeiro que vive no final da rua — Falou mecanicamente Etelvina a datilografa de profissão.

         — Sim, tias! Os três morenos, são amigos do antilhano! — Virginia ainda olhando para a rua, com uma taça de vinho na mão, tentou encontrar umas palavras certas! — Os três vêm rápido e saem rápido. 

         — Gimbeiros! Hippomgas ordinários! — Disse Emengarda com desprezo!

         Virginia esboçou um breve sorriso, depois engoliu o sorriso, pois ela sabia o que vinha por aí, ela se virou para trás, lentamente foi até a mesa de centro, pegou o vinho verde, enchei as duas taças, serviu as duas senhoras. E por fim sentou uma cadeira funcional Bauhaus Dessau.

         Virginia ficou defronte das duas mulheres, respirou fundo, fechou os olhos e viu o que não queria ver. A jovem, de longos cabelos negros perolados, trajada com vestes brancas e vaporosas, pegou uma taça de cristal, que estava na bandeja de prata, ergueu vinho do Porto e tomou um breve gole e olhou profundamente para as duas parentas a poucos centímetros perto dela.    

         — Pois bem, o mais jovem se chama Getúlio, o segundo se chama Dornelles e o terceiro e mais velho é o Vargas. Vieram nestas paragens atrás do antilhano, o Bruxo, o Louis Charles Prêt, jovens senhoras, simples assim. — Virginia parou para ver o efeito traumático na audiência e continuou — Como o foco não é o desconhecido estrangeiro, vamos focar nos três cavalheiros. Os elementos desconhecidos em si, foram se encontrar na praia, na beira do oceano, são de bairros periféricos, de baixa instrução e aventureiros por natureza. Traço comum entre os extremos digo eu, os que têm muitos recursos e os que nada têm, em suma quem não tem nada a perder e os que tem tanto que só sobram as sensações do perigo e no inusitado a preencher os seus vazios. — Virginia, sorriu e olhou para os olhos vazios e os corpos inumanos das duas senhoras postadas em suas respectivas cadeiras de balanço de vime e retomou o relato — Sedentos de fortes emoções e bateram na porta do Oráculo e acabaram de encontrar um Mephistopheles. Fim  

         — Só isto? — Protestou Hemengarda em fúria.

         — Claro que não termina aqui minha cara! — Disse Etelvina sorrindo por dentro.

 

Fragmento do livro Do diário de uma louca, de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária de Balneário Camboriú, Santa Catarina.

 

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