quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

ENTRE MEMÓRIAS E ESQUECIMENTOS

Por Paulo Cézar S. Ventura (Nova Lima, MG)

 

Já que o esquecimento ganha quase sempre, podemos discernir o que esquecer e lembrar.


Depois dos sessenta anos, memória e esquecimento travam uma luta ferrenha. Cada um querendo a primazia da ocupação dos espaços da mente. Já que o esquecimento ganha quase sempre, podemos, pelo menos, discernir sobre o que esquecer e o que lembrar. Esquecemos, então, datas de aniversários, da hora de fazer pequenas e desimportantes coisas, do local onde o carro está estacionado, onde ficaram os óculos, a mochila, o tênis para a caminhada, o chapéu etc.

E quem mandou bater o portão sem se certificar que a chave da casa está no bolso? Como entramos em casa agora? Melhor se lembrar do tradicional bom humor, muito útil nessas horas. Depois dos sessenta, que razões para perder o bom humor? Tanta coisa para esquecer!

Jordelina, hoje com quase cem anos, começou a fazer teatro aos setenta. Algo escondido dentro dela, tanto tempo adormecido e que, de repente, brota em seu coração como roseira que esconde espinhos nas folhagens e mostra sua beleza a quem vê perfumes e cheira mistérios. Assim como disse Conceição Evaristo, a escritora, começou a se sentir viva aos setenta anos: “Nunca somos novas demais nem velhas demais para nada”.

Todos os mistérios vêm das sombras,
é na penumbra que nos desnudamos.
Tom pastel dos silêncios
brinca na memória dos bem vividos.

Moradora em uma cidade da região metropolitana, três vezes por semana tomava o ônibus que a conduzia à capital para ensaiar com seu grupo de teatro, todos os atores e atrizes já cheios de experiência de vida. O auge de Jordelina atriz foi na peça Morte e Vida Severina, baseado em obra de João Cabral de Melo Neto. Jordelina, mais de oitenta, brilhou. Cantou, dançou, representou provavelmente muitas das mazelas de sua própria vida. O grupo atuou em hospitais de crianças, em casas de repouso, em presídios até que foram convidados para atuarem em um grande teatro da capital. Eu estava lá, nos bastidores, porque me intrigava o fato de Jordelina estar quase surda. Como ela fazia para nunca perder a hora de entrar no palco, a hora de soltar a voz? Foi aí que entendi. Ela decorava a peça inteira e ficava na porta de entrada do palco observando e repetindo baixinho as falas dos atores e atrizes que estavam no palco. Assim não perdia sua vez.

Imagens são como sombras:
guardiãs de nossa memória
e de nosso medo da morte.

Infelizmente, o grupo de teatro de atores e atrizes com “data de nascimento avançada” foi dissolvido pelos produtores, o diretor de cena demitido e as pessoas aconselhadas a irem para casa, como se mambembes fossem. O que fazer com aquele fogo na alma tanto tempo escondido e tardiamente aberto para todas as ardências de uma viva reconstruída? A depressão tomou conta de Jordelina, a solidão adquiriu dimensões devastadoras, as pernas de bailarina foram sendo tomadas pelas artroses, o esquecimento foi chegando devagarinho. A pandemia botou uma pá de gelo no que sobrou daquelas labaredas ainda insistentes.

Logo depois do Ano Novo deste ano de 2024, Jordelina recebeu a visita da neta e de alguns de seus bisnetos. Como vieram de longe, ficaram por alguns dias.

— Quem são essas pessoas que se instalaram em minha casa? Que crianças barulhentas e inquietas?

A memória dela, ausente, se juntou à quase ausência de sua audição. Jordelina, no entanto, continua contando causos, basta alguns ouvidos atentos se postarem em sua frente. Lembra da infância, dos tempos de juventude quando morou na capital. Na verdade, lembra-se de todos os momentos felizes de sua vida, aqueles mais antigos, menos dos tempos de teatro, os mais felizes de sua vida. Não teve diagnóstico de Alzheimer, apenas de perda continuada de memória.

Nossa memória é banco de dados
armazenadas para quando tomarmos um vinho
diante do fogo das reminiscências.

Certo dia, uma de suas bisnetas, Maria, de uns cinco ou seis anos, sentou-se em sua frente e começou a fazer perguntas. Ela não as respondia, exatamente, mas contava causos que a menina ouvia atentamente. E Maria respondia com outros causos de sua curta existência, cheia de personagens das histórias que ouvia de seus pais. Foi um diálogo, fragmentado, maravilhoso entre duas pessoas com uma diferença de idade de mais de noventa anos, registrado apenas pelos olhares dos presentes admirados.

Maria voltou com seus pais para sua casa distante. Jordelina sempre pergunta por ela: — Cadê Maria? O avô de Maria, filho de Jordelina, recebe um telefonema da filha, dizendo que chegou bem e a anciã vê os bisnetos pela chamada de vídeo do aparelho celular. De quem ela se lembra? — Olha, é Maria.

Esquecer é sobreviver: lembrar?
O futuro começa
no instante depois do verso
no primeiro beijo depois do encontro
na estória que se conta agora.

 

 

 

 

Paulo Cezar S Ventura

Graduado (UFMG) e Mestre (USP) em Física, e Doutor em Ciências da Comunicação e da Informação, pela Université de Bougogne, em Dijon, França. Exerceu a profissão de professor, no CEFET-MG, onde dirigiu o LACTEA – Laboratório Aberto de Ciência, Tecnologia, Educação e Arte. Hoje se dedica à literatura e se identifica como poeta, cronista, contista e editor da Rolimã Editora Ltda. Autor de diversos livros. Participa do Movimento Vidas Idosas Importam e é membro da Academia Novalimense de Letras. pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura

 

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