Por Paulo Cézar S. Ventura (Nova Lima, MG)
Já que o esquecimento ganha
quase sempre, podemos discernir o que esquecer e lembrar.
Depois
dos sessenta anos, memória e esquecimento travam uma luta ferrenha. Cada um
querendo a primazia da ocupação dos espaços da mente. Já que o esquecimento
ganha quase sempre, podemos, pelo menos, discernir sobre o que esquecer e o que
lembrar. Esquecemos, então, datas de aniversários, da hora de fazer pequenas e
desimportantes coisas, do local onde o carro está estacionado, onde ficaram os
óculos, a mochila, o tênis para a caminhada, o chapéu etc.
E
quem mandou bater o portão sem se certificar que a chave da casa está no bolso?
Como entramos em casa agora? Melhor se lembrar do tradicional bom humor, muito
útil nessas horas. Depois dos sessenta, que razões para perder o
bom humor? Tanta coisa para esquecer!
Jordelina,
hoje com quase cem anos, começou a fazer teatro aos setenta. Algo escondido
dentro dela, tanto tempo adormecido e que, de repente, brota em seu coração
como roseira que esconde espinhos nas folhagens e mostra sua beleza a quem vê
perfumes e cheira mistérios. Assim como disse Conceição Evaristo, a escritora,
começou a se sentir viva aos setenta anos: “Nunca somos novas demais nem velhas
demais para nada”.
Todos os mistérios vêm das sombras,
é na penumbra que nos desnudamos.
Tom pastel dos silêncios
brinca na memória dos bem vividos.
Moradora
em uma cidade da região metropolitana, três vezes por semana tomava o ônibus
que a conduzia à capital para ensaiar com seu grupo de teatro, todos os atores
e atrizes já cheios de experiência de vida. O auge de Jordelina atriz foi na
peça Morte e Vida Severina, baseado em obra de João Cabral de Melo Neto.
Jordelina, mais de oitenta, brilhou. Cantou, dançou, representou provavelmente
muitas das mazelas de sua própria vida. O grupo atuou em hospitais de crianças,
em casas de repouso, em presídios até que foram convidados para atuarem em um
grande teatro da capital. Eu estava lá, nos bastidores, porque me intrigava o
fato de Jordelina estar quase surda. Como ela fazia para nunca perder a hora de
entrar no palco, a hora de soltar a voz? Foi aí que entendi. Ela decorava a
peça inteira e ficava na porta de entrada do palco observando e repetindo
baixinho as falas dos atores e atrizes que estavam no palco. Assim não perdia
sua vez.
Imagens são como sombras:
guardiãs de nossa memória
e de nosso medo da morte.
Infelizmente,
o grupo de teatro de atores e atrizes com “data de nascimento avançada” foi
dissolvido pelos produtores, o diretor de cena demitido e as pessoas
aconselhadas a irem para casa, como se mambembes fossem. O que fazer com aquele
fogo na alma tanto tempo escondido e tardiamente aberto para todas as ardências
de uma viva reconstruída? A depressão tomou conta de Jordelina, a solidão
adquiriu dimensões devastadoras, as pernas de bailarina foram sendo tomadas pelas
artroses, o esquecimento foi chegando devagarinho. A pandemia botou uma pá de
gelo no que sobrou daquelas labaredas ainda insistentes.
Logo
depois do Ano Novo deste ano de 2024, Jordelina recebeu a visita da neta e de
alguns de seus bisnetos. Como vieram de longe, ficaram por alguns dias.
—
Quem são essas pessoas que se instalaram em minha casa? Que crianças
barulhentas e inquietas?
A
memória dela, ausente, se juntou à quase ausência de sua audição. Jordelina, no
entanto, continua contando causos, basta alguns ouvidos atentos se postarem em
sua frente. Lembra da infância, dos tempos de juventude quando morou na
capital. Na verdade, lembra-se de todos os momentos felizes de sua vida,
aqueles mais antigos, menos dos tempos de teatro, os mais felizes de sua vida.
Não teve diagnóstico de Alzheimer, apenas de perda continuada de memória.
Nossa memória é banco de dados
armazenadas para quando tomarmos um vinho
diante do fogo das reminiscências.
Certo
dia, uma de suas bisnetas, Maria, de uns cinco ou seis anos, sentou-se em sua
frente e começou a fazer perguntas. Ela não as respondia, exatamente, mas
contava causos que a menina ouvia atentamente. E Maria respondia com outros
causos de sua curta existência, cheia de personagens das histórias que ouvia de
seus pais. Foi um diálogo, fragmentado, maravilhoso entre duas pessoas com uma
diferença de idade de mais de noventa anos, registrado apenas pelos olhares dos
presentes admirados.
Maria
voltou com seus pais para sua casa distante. Jordelina sempre pergunta por ela:
— Cadê Maria? O avô de Maria, filho de Jordelina, recebe um telefonema da
filha, dizendo que chegou bem e a anciã vê os bisnetos pela chamada de vídeo do
aparelho celular. De quem ela se lembra? — Olha, é Maria.
Esquecer é sobreviver: lembrar?
O futuro começa
no instante depois do verso
no primeiro beijo depois do encontro
na estória que se conta agora.
Paulo Cezar S Ventura
Graduado
(UFMG) e Mestre (USP) em Física, e Doutor em Ciências da Comunicação e da
Informação, pela Université de Bougogne, em Dijon, França. Exerceu a profissão
de professor, no CEFET-MG, onde dirigiu o LACTEA – Laboratório Aberto de
Ciência, Tecnologia, Educação e Arte. Hoje se dedica à literatura e se identifica
como poeta, cronista, contista e editor da Rolimã Editora Ltda. Autor de
diversos livros. Participa do Movimento Vidas Idosas Importam e é membro da
Academia Novalimense de Letras. pcventura@gmail.com -
@paulocezarsventura
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