Por Dias Campos (São Paulo, SP)
Quando
se pensava que o maior diamante do mundo já tinha sido encontrado, a África a
todos surpreenderia, fazendo com que os olhos dos cobiçosos rebrilhassem mais
uma vez.
E
se havia quem se maravilhasse a cada novo achado, esse alguém era o engenheiro
chefe, David Johnson, idólatra dessas preciosidades e amante do dinheiro que
elas proporcionam; tanto que alardeava aos quatro ventos que só Deus poderia
afastá-lo dessas duas paixões.
Desta vez, porém,
não seriam os 1.112 quilates da nova descoberta – três a mais do que os da sua
antecessora – os únicos responsáveis pelos holofotes a serem direcionados para
as minas de Botsuana, mas, sim, algo que havia em seu interior...
Por força
disso, à medida que o engenheiro de plantão lavava a pedra, ele e os mineiros
que o rodeavam, ao invés de se manterem em júbilo, deixavam transparecer um quê
de desapontamento, pois o seu valor comercial transmudava de extraordinário
para aproveitável.
David foi logo
avisado, e correu ao ponto onde acharam a gema. Vinha, é claro, com um misto de
euforia e decepção, pois se não deixaram de repassar a boa notícia, também não ocultaram
a má.
Antes mesmo de
pôr as mãos na novidade, os olhos do perito ofuscaram! Mas foi só observá-la para
que o deslumbre diminuísse. – Eram desenhos dispostos em um veio retilíneo que
cruzavam a gema de ponta a ponta, sendo que pareciam ter sido esculpidos por
uma impressora a laser de última
geração, haja vista a perfeição com que se repetiam.
Depois de
examinar a novidade o mais que podia, David a levou para sua sala, onde aconteceria
uma reunião a portas fechadas com toda a sua equipe. Não saiu, contudo, sem
advertir os funcionários que a admiravam de que estavam terminantemente
proibidos de fazerem comentários; quem o fizesse, seria demitido sem direito à
contradita.
David não
tomou essa decisão por medo de que a notícia vazasse. Até porque, seus empregados
não só estavam acostumados com o sigilo que deve imperar nesse ramo de
atividade, como, também, não ousaram maculá-lo quando encontraram o diamante
anterior.
Eram, na
verdade, aqueles desenhos – riscos horizontais em que se pendiam outros verticais
e formas curvilíneas – que o incomodavam sobremaneira.
Já em seu
gabinete, ladeado por toda a equipe, o achado seria passado de mão em mão.
David queria que cada um opinasse sobre aqueles desenhos, como se necessitasse
de uma justificativa para o seu incômodo.
Se bem que as
opiniões começassem científicas, não faltaram criatividade e gracejos a
tentarem explicar aquele estranhíssimo fenômeno; a exemplo da hipótese levantada
pelo palhaço-mor da equipe, que afirmou serem hieróglifos entalhados por Micrômegas
(de Voltaire), aduzindo que, por ter o viajante intergaláctico se apaixonado
por uma terráquea, não lhe restou alternativa senão a de rabiscar o seu endereço
e o contato telefônico no primeiro “guardanapo” que encontrou, já que sua nave
espacial estava na iminência de decolar em direção à sua morada na estrela
Sirius.
Todos riram,
incluindo David. Mas essa brincadeira causou-lhe forte impressão, mesmo que não
a tivesse demonstrado.
Terminada a
reunião, o engenheiro chefe permaneceu em seu gabinete. Era preciso debruçar-se
sobre aqueles desenhos, e sobre o mal-estar que eles provocavam. Na realidade,
mesmo não conseguindo definir o que sentia, para David, eles nada tinham de
naturais. E, coisa singular, até pareciam... familiares!
David, então,
escaneou como pôde aqueles desenhos, e guardou a pedra a sete chaves. Em
seguida, deitou-se sobre a cama. Precisava pensar, rememorar... Sentou-se
novamente, e ficou observando as imagens na tela do seu celular. E ora
ampliava-as, ora girara-as. E olhava para o teto... e nada lhe vinha à mente.
Levantou-se, andou pelo quarto; foi à janela,
mirou o horizonte... e jogou o celular sobre a cama, como se a comichão que o
afligia não tivesse passado de uma grande tolice.
E como o
pensamento voltava-se para a milionária quantia que deixariam de lucrar graças
à desgraça imposta pela mãe natureza, David desenterrou alguns palavrões e tornou
a se deitar. Talvez no sono encontrasse a maneira mais dócil de repassar a
notícia para o poderoso e nada compreensível CEO da mineradora.
Mas o sonho
traria uma reviravolta...
Súbito,
acordou. Estava ofegante e suava frio.
Com o passar
dos segundos, em que inspirava e expirava lenta e profundamente, David retomava
o prumo. E o nevoeiro que lhe encobria a memória começou a dispersar-se.
Quando a bruma
foi de todo afastada, determinadas lembranças acerca de um erudito reavivaram-se
em sua mente como se assistisse a um filme de altíssima definição.
David pôs as
mãos sobre a cabeça, avocou os céus, e levantou-se de um pulo. Era preciso
reencontrar aquele velho amigo, e o mais rápido possível!
Com a ajuda do
Google, não foi difícil achar o do Dr. Elliott Moore e obter o seu contato.
Não abusando
dos rapapés, e sem entrar em detalhes, David enviou uma mensagem por e-mail para
o seu antigo professor, suplicando que o contatasse com urgência. E para
justificar tamanha pressa, anexou fotos daqueles desenhos, mas editadas, de
modo que permitiam ser razoavelmente examinadas, mas dificultavam deduzir onde
estavam incrustradas.
Como estivesse
aflito, não se lembrou que Botsuana está 6 horas à frente de Ottawa, lar do Dr.
Moore. Quando percebeu a diferença, e olhou paro o relógio – eram 4 da
madrugada –, imaginou que o septuagenário já adentrava o limiar do quinto sono.
E praguejou.
No entanto, e
para sua felicidade, Dr. Moore estava com insônia, e navegava pela internet.
A surpresa foi
tão grande, que o PhD em linguística logo clicou na mensagem.
Ora, como
David era o seu aluno preferido no colégio, aquele que afirmava seria o seu
discípulo, jurando aprofundar-se no fascinante mundo das letras mortas, ensinamentos
que recebia após o término das aulas regulares, Dr. Moore ficou muito feliz ao
constatar que ele buscava reavivar a amizade, usando mão, justamente, daquilo
que aprendera.
O bate-papo
inicial – “Mas que surpresa!”; “Como vão as coisas?”; “Casou com aquela garota
de quem gostava?”; “E como vai a família?” – impunha a David uma agonia
insuportável, como a que sente uma criança que está diante de seu pai, prestes
a receber o presente que há tempos cobiçava, mas cuja entrega ele retarda por pura
diversão.
Quando o
assunto enfim migrou para aqueles desenhos, a frequência cardíaca de David disparou.
E quando o Dr. Moore disse ter achado bastante criativa a forma que usara para
chamar-lhe a atenção, o coração de David quase saiu pela boca!
O problema é
que nem o seu ex-professor expressamente lhe confirmava as suspeitas, nem David
tinha coragem de perguntar o que de fato representavam aqueles desenhos.
Até que chegou
um momento em que o Dr. Moore questinou o porquê de David ter preferido o
sânscrito ao invés do latim, já que esta última língua era a que mais o atraía.
David
petrificou-se!...
De repente,
uma chusma de perguntas acotovelavam-se em seu cérebro. Dr. Moore falava a verdade,
ou, por força da idade, via naqueles desenhos o que gostaria de ver? Seria
possível que o tempo e a pressão tivessem sido tão caprichosos, ou não foram
eles os autores daquelas palavras? Mas se não foi a natureza quem os escrevera,
por que em sânscrito e com qual objetivo? E quais as consequências que esse
fato imporia à ciência, à religião, ao mundo?...
David
sentia-se como se lhe tivessem arrancado o chão. E porque estivesse atordoado,
esquecia-se de perguntar o significado daquela escrita e resolvia contar onde
estava contida.
Desta vez, foi
o Dr. Moore quem perdeu a voz ante o pasmo da revelação.
E como continuasse
mudo, coube ao ex-aluno retomar a conversa. E indagou sobre a tradução.
Dr. Moore
demorou um pouco para reequilibrar-se. E tão assombrado estava, que disse só
revelaria o significado daquelas palavras se pudesse reexaminá-las, tendo nas
mãos a gema.
Como havia
muito em jogo, e porque não vislumbrasse alternativa, David acabou cedendo. E
para que o Dr. Moore não alegasse inconvenientes que pudessem atrasar a sua
chegada a Botsuana, o engenheiro chefe garantiu que a empresa providenciaria a
passagem aérea (primeira classe) para o primeiro voo que houvesse, e bancaria a
sua estada. Pedia, no entanto, segredo absoluto sobre o assunto. Ele aceitou.
A viagem do
Canadá até o continente africano demoraria pouco mais de 24h. Essa duração,
David deveria passá-la com certa tranquilidade. No entanto, alguém caiu em
tentação, e a notícia sobre a gigantesca novidade vazou.
Foi um
pandemônio! De um momento para o outro, David viu-se cercado pela imprensa
internacional, pelos acionistas, e pelo CEO da mineradora, que determinou enviasse-lhe
algumas fotos, que mantivesse o diamante longe de tudo e de todos, e afirmou
iria encontrá-lo assim que se recuperasse da crise de gota que o acometia.
No dia seguinte,
David já estava no aeroporto uma hora antes do horário previsto para o pouso.
Recebeu o mestre com a devida formalidade, que foi logo abandonada ao entrarem
no veículo que os levaria para a área de exploração.
Dr. Moore bem
que tentou perguntar sobre aqueles desenhos, mas David meneou a cabeça em
negativas, indicando com os olhos que o motorista não poderia ouvi-los.
Assim que
chegaram, David o conduziu ao seu gabinete, cômodo onde guardara o achado, e
determinou que ninguém viesse importuná-los. E para justificar a presença de um
estranho, alegou ser outro especialista em lapidação.
No exato
instante que viu a pedra, os olhos do Dr. Moore arregalaram-se; menos pelo seu
tamanho descomunal do que pelos desenhos que já entrevia.
E um silêncio
sepulcral imperava naquela sala enquanto o expert,
usando da sua preciosa lente de aumento e tremendo de emoção, perscrutava caractere
por caractere, palavra por palavra.
Ao terminar a
análise, Dr. Moore colocou a gema sobre a bancada, inspirou profusamente, fixou
os olhos no anfitrião, e certificou tratar-se do sânscrito.
David sorriu.
Ato contínuo, perguntou o que significavam.
Dr. Moore
passou a falar, já com a voz entrecortada: “Vós não podeis servir a Deus e a
Mamon”. – nome por que era conhecido o deus das riquezas.
E se a fisionomia
do Dr. Moore denotava um amálgama em que se debatiam aturdimento, incompreensão,
pequenez, incredulidade, não haveria palavras que pudessem descrever o
semblante de David...
Passados
alguns dias, e mesmo diante do atestado pelo Dr. Moore, o CEO da empresa, mais propenso
ao pragmatismo do que predisposto à verdade, além de zombar do que ouviu,
ameaçou processar a ambos, caso essa tolice fosse parar nos jornais.
Dr. Moore
retornou para Ottawa, onde o tédio da aposentadoria seria para sempre minorado
pela mesmíssima convicção com que Hamlet se dirigiu a Horácio. – “Há mais
coisas entre o céu e a terra do que supõe sua vã filosofia.”
David, por seu
turno, pediu demissão e viajou para o Tibet. Se vira naqueles desenhos a mão de
Deus a afastá-lo de suas grandes paixões, também não descria que o isolamento provisório
e a meditação seriam imprescindíveis à sua reeducação.
E quando se
sentisse forte o bastante para retomar a vida de relação, regressaria à sua
pátria, abraçaria a carreira acadêmica, pediria sua namorada em casamento, e,
se o Dr. Moore ainda tivesse disposição, ficaria muito feliz e honrado em se
tornar o seu mais novo discípulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário