segunda-feira, 1 de abril de 2024

O RECADO

Por Dias Campos (São Paulo, SP)

 

            Quando se pensava que o maior diamante do mundo já tinha sido encontrado, a África a todos surpreenderia, fazendo com que os olhos dos cobiçosos rebrilhassem mais uma vez.

            E se havia quem se maravilhasse a cada novo achado, esse alguém era o engenheiro chefe, David Johnson, idólatra dessas preciosidades e amante do dinheiro que elas proporcionam; tanto que alardeava aos quatro ventos que só Deus poderia afastá-lo dessas duas paixões.

Desta vez, porém, não seriam os 1.112 quilates da nova descoberta – três a mais do que os da sua antecessora – os únicos responsáveis pelos holofotes a serem direcionados para as minas de Botsuana, mas, sim, algo que havia em seu interior...

Por força disso, à medida que o engenheiro de plantão lavava a pedra, ele e os mineiros que o rodeavam, ao invés de se manterem em júbilo, deixavam transparecer um quê de desapontamento, pois o seu valor comercial transmudava de extraordinário para aproveitável.

David foi logo avisado, e correu ao ponto onde acharam a gema. Vinha, é claro, com um misto de euforia e decepção, pois se não deixaram de repassar a boa notícia, também não ocultaram a má.

Antes mesmo de pôr as mãos na novidade, os olhos do perito ofuscaram! Mas foi só observá-la para que o deslumbre diminuísse. – Eram desenhos dispostos em um veio retilíneo que cruzavam a gema de ponta a ponta, sendo que pareciam ter sido esculpidos por uma impressora a laser de última geração, haja vista a perfeição com que se repetiam.

Depois de examinar a novidade o mais que podia, David a levou para sua sala, onde aconteceria uma reunião a portas fechadas com toda a sua equipe. Não saiu, contudo, sem advertir os funcionários que a admiravam de que estavam terminantemente proibidos de fazerem comentários; quem o fizesse, seria demitido sem direito à contradita.

David não tomou essa decisão por medo de que a notícia vazasse. Até porque, seus empregados não só estavam acostumados com o sigilo que deve imperar nesse ramo de atividade, como, também, não ousaram maculá-lo quando encontraram o diamante anterior.

Eram, na verdade, aqueles desenhos – riscos horizontais em que se pendiam outros verticais e formas curvilíneas – que o incomodavam sobremaneira.

Já em seu gabinete, ladeado por toda a equipe, o achado seria passado de mão em mão. David queria que cada um opinasse sobre aqueles desenhos, como se necessitasse de uma justificativa para o seu incômodo.

Se bem que as opiniões começassem científicas, não faltaram criatividade e gracejos a tentarem explicar aquele estranhíssimo fenômeno; a exemplo da hipótese levantada pelo palhaço-mor da equipe, que afirmou serem hieróglifos entalhados por Micrômegas (de Voltaire), aduzindo que, por ter o viajante intergaláctico se apaixonado por uma terráquea, não lhe restou alternativa senão a de rabiscar o seu endereço e o contato telefônico no primeiro “guardanapo” que encontrou, já que sua nave espacial estava na iminência de decolar em direção à sua morada na estrela Sirius.

Todos riram, incluindo David. Mas essa brincadeira causou-lhe forte impressão, mesmo que não a tivesse demonstrado.

Terminada a reunião, o engenheiro chefe permaneceu em seu gabinete. Era preciso debruçar-se sobre aqueles desenhos, e sobre o mal-estar que eles provocavam. Na realidade, mesmo não conseguindo definir o que sentia, para David, eles nada tinham de naturais. E, coisa singular, até pareciam... familiares!

David, então, escaneou como pôde aqueles desenhos, e guardou a pedra a sete chaves. Em seguida, deitou-se sobre a cama. Precisava pensar, rememorar... Sentou-se novamente, e ficou observando as imagens na tela do seu celular. E ora ampliava-as, ora girara-as. E olhava para o teto... e nada lhe vinha à mente.

 Levantou-se, andou pelo quarto; foi à janela, mirou o horizonte... e jogou o celular sobre a cama, como se a comichão que o afligia não tivesse passado de uma grande tolice.

E como o pensamento voltava-se para a milionária quantia que deixariam de lucrar graças à desgraça imposta pela mãe natureza, David desenterrou alguns palavrões e tornou a se deitar. Talvez no sono encontrasse a maneira mais dócil de repassar a notícia para o poderoso e nada compreensível CEO da mineradora.

Mas o sonho traria uma reviravolta...

Súbito, acordou. Estava ofegante e suava frio.

Com o passar dos segundos, em que inspirava e expirava lenta e profundamente, David retomava o prumo. E o nevoeiro que lhe encobria a memória começou a dispersar-se.

Quando a bruma foi de todo afastada, determinadas lembranças acerca de um erudito reavivaram-se em sua mente como se assistisse a um filme de altíssima definição.

David pôs as mãos sobre a cabeça, avocou os céus, e levantou-se de um pulo. Era preciso reencontrar aquele velho amigo, e o mais rápido possível!

Com a ajuda do Google, não foi difícil achar o do Dr. Elliott Moore e obter o seu contato.

Não abusando dos rapapés, e sem entrar em detalhes, David enviou uma mensagem por e-mail para o seu antigo professor, suplicando que o contatasse com urgência. E para justificar tamanha pressa, anexou fotos daqueles desenhos, mas editadas, de modo que permitiam ser razoavelmente examinadas, mas dificultavam deduzir onde estavam incrustradas.

Como estivesse aflito, não se lembrou que Botsuana está 6 horas à frente de Ottawa, lar do Dr. Moore. Quando percebeu a diferença, e olhou paro o relógio – eram 4 da madrugada –, imaginou que o septuagenário já adentrava o limiar do quinto sono. E praguejou.

No entanto, e para sua felicidade, Dr. Moore estava com insônia, e navegava pela internet.

A surpresa foi tão grande, que o PhD em linguística logo clicou na mensagem.

Ora, como David era o seu aluno preferido no colégio, aquele que afirmava seria o seu discípulo, jurando aprofundar-se no fascinante mundo das letras mortas, ensinamentos que recebia após o término das aulas regulares, Dr. Moore ficou muito feliz ao constatar que ele buscava reavivar a amizade, usando mão, justamente, daquilo que aprendera.

O bate-papo inicial – “Mas que surpresa!”; “Como vão as coisas?”; “Casou com aquela garota de quem gostava?”; “E como vai a família?” – impunha a David uma agonia insuportável, como a que sente uma criança que está diante de seu pai, prestes a receber o presente que há tempos cobiçava, mas cuja entrega ele retarda por pura diversão.

Quando o assunto enfim migrou para aqueles desenhos, a frequência cardíaca de David disparou. E quando o Dr. Moore disse ter achado bastante criativa a forma que usara para chamar-lhe a atenção, o coração de David quase saiu pela boca!

O problema é que nem o seu ex-professor expressamente lhe confirmava as suspeitas, nem David tinha coragem de perguntar o que de fato representavam aqueles desenhos.

Até que chegou um momento em que o Dr. Moore questinou o porquê de David ter preferido o sânscrito ao invés do latim, já que esta última língua era a que mais o atraía.

David petrificou-se!...

De repente, uma chusma de perguntas acotovelavam-se em seu cérebro. Dr. Moore falava a verdade, ou, por força da idade, via naqueles desenhos o que gostaria de ver? Seria possível que o tempo e a pressão tivessem sido tão caprichosos, ou não foram eles os autores daquelas palavras? Mas se não foi a natureza quem os escrevera, por que em sânscrito e com qual objetivo? E quais as consequências que esse fato imporia à ciência, à religião, ao mundo?...

David sentia-se como se lhe tivessem arrancado o chão. E porque estivesse atordoado, esquecia-se de perguntar o significado daquela escrita e resolvia contar onde estava contida.

Desta vez, foi o Dr. Moore quem perdeu a voz ante o pasmo da revelação.

E como continuasse mudo, coube ao ex-aluno retomar a conversa. E indagou sobre a tradução.

Dr. Moore demorou um pouco para reequilibrar-se. E tão assombrado estava, que disse só revelaria o significado daquelas palavras se pudesse reexaminá-las, tendo nas mãos a gema.

Como havia muito em jogo, e porque não vislumbrasse alternativa, David acabou cedendo. E para que o Dr. Moore não alegasse inconvenientes que pudessem atrasar a sua chegada a Botsuana, o engenheiro chefe garantiu que a empresa providenciaria a passagem aérea (primeira classe) para o primeiro voo que houvesse, e bancaria a sua estada. Pedia, no entanto, segredo absoluto sobre o assunto. Ele aceitou.

A viagem do Canadá até o continente africano demoraria pouco mais de 24h. Essa duração, David deveria passá-la com certa tranquilidade. No entanto, alguém caiu em tentação, e a notícia sobre a gigantesca novidade vazou.

Foi um pandemônio! De um momento para o outro, David viu-se cercado pela imprensa internacional, pelos acionistas, e pelo CEO da mineradora, que determinou enviasse-lhe algumas fotos, que mantivesse o diamante longe de tudo e de todos, e afirmou iria encontrá-lo assim que se recuperasse da crise de gota que o acometia.

No dia seguinte, David já estava no aeroporto uma hora antes do horário previsto para o pouso. Recebeu o mestre com a devida formalidade, que foi logo abandonada ao entrarem no veículo que os levaria para a área de exploração.

Dr. Moore bem que tentou perguntar sobre aqueles desenhos, mas David meneou a cabeça em negativas, indicando com os olhos que o motorista não poderia ouvi-los.

Assim que chegaram, David o conduziu ao seu gabinete, cômodo onde guardara o achado, e determinou que ninguém viesse importuná-los. E para justificar a presença de um estranho, alegou ser outro especialista em lapidação.

No exato instante que viu a pedra, os olhos do Dr. Moore arregalaram-se; menos pelo seu tamanho descomunal do que pelos desenhos que já entrevia.

E um silêncio sepulcral imperava naquela sala enquanto o expert, usando da sua preciosa lente de aumento e tremendo de emoção, perscrutava caractere por caractere, palavra por palavra.

Ao terminar a análise, Dr. Moore colocou a gema sobre a bancada, inspirou profusamente, fixou os olhos no anfitrião, e certificou tratar-se do sânscrito.

David sorriu. Ato contínuo, perguntou o que significavam.

Dr. Moore passou a falar, já com a voz entrecortada: “Vós não podeis servir a Deus e a Mamon”. – nome por que era conhecido o deus das riquezas.

E se a fisionomia do Dr. Moore denotava um amálgama em que se debatiam aturdimento, incompreensão, pequenez, incredulidade, não haveria palavras que pudessem descrever o semblante de David...

Passados alguns dias, e mesmo diante do atestado pelo Dr. Moore, o CEO da empresa, mais propenso ao pragmatismo do que predisposto à verdade, além de zombar do que ouviu, ameaçou processar a ambos, caso essa tolice fosse parar nos jornais.

Dr. Moore retornou para Ottawa, onde o tédio da aposentadoria seria para sempre minorado pela mesmíssima convicção com que Hamlet se dirigiu a Horácio. – “Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe sua vã filosofia.”

David, por seu turno, pediu demissão e viajou para o Tibet. Se vira naqueles desenhos a mão de Deus a afastá-lo de suas grandes paixões, também não descria que o isolamento provisório e a meditação seriam imprescindíveis à sua reeducação.

E quando se sentisse forte o bastante para retomar a vida de relação, regressaria à sua pátria, abraçaria a carreira acadêmica, pediria sua namorada em casamento, e, se o Dr. Moore ainda tivesse disposição, ficaria muito feliz e honrado em se tornar o seu mais novo discípulo.

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