segunda-feira, 1 de abril de 2024

PONTO NULO NO CÉU: NÓS CELEBRAMOS A NEGRA RAINHA

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

— Chega? Já se deu por satisfeita por hoje, senhora Fá Rodrigues Butler? — Sibelly Lopez soprou no ouvido de Fá, ambas estavam no outro lado da rua, contemplando os cinco corpos sem vida no chão, enquanto três homens, que trôpegos, que corriam em desespero pela rua abaixo.

— Por hoje sim! Tenho uma festa para dar, bons amigos para receber e uma filha pequena para pôr na cama. No mais, não fiz nada de errado, estas pobres criaturas são nada mais, que reles joguetes, nas mãos do destino. Há está hora, pessoas boas estão dormindo, ou pelo menos, deveriam estar penso eu. — Fá sorriu por dentro enquanto falava e olhava para os corpos, sem vida há poucos metros delas. — A caçada terminou, já peguei o que bem queria, depois negra ninfa, acertamos as nossas diferenças, em outra hora e em outro lugar. Não aqui bem no meio da rua.

— Verdade anjo negro! Na rua, não é mesmo um bom lugar para darmos espetáculos, mais tarde falamo-nos. Mas, saiba que temos muito o que conversar!

***

Fá Rodrigues Butler não andou muito para chegar em casa e, deixar a cena trágica que se desenrolou a pouco e deixar a figura trágica Sibelly Lopez para trás. A paisagista parou por poucos segundos apenas, entre as duas piras em chamas eviterna, na entrada conjugada, das imponentes torres gêmeas Fiote e Xoclengue, ela respirou profundamente e adentrou. Ao passar pelas piras, as chamas se intensificaram, uma chama azul na pira a esquerda e uma chama amarela na direita subiram aos céus, pareciam querer transcender ao cosmo. Fá sentiu seu negro arco-íris despontar no seu cerne, com todas as forças do universo, era a glória dos celestes deuses e deusas imortais eclodido. Enfim o gosto da liberdade, mesmo que efêmera, teve o seu devido efeito, na dama da noite, depois ela bem sabia, que iria arcar com as consequências, que inevitavelmente viriam e não tardariam. Mas, ela não pensou muito nisso, por diante tinha uma festa para dar e sagrar a deusa de ébano era premente, pelo menos um pouco.

Ela adentrou no hall do prédio, de forma imponente, passou por três seguranças bem-vestidos com ternos à italiana, duas zeladoras limpavam o chão de mármore Nero Marquina, com seus tons escuros e abundantes veios brancos. Passou pelo velho porteiro decrépito sentado por detrás do balcão imponente e seus telefones decorativos. Todos sequer pensaram em olhar para a moradora ilustre, ou mesmo dar-lhe um boa noite. Todos simplesmente evitaram olhar nos olhos famintos da paisagista. Ela parou entre os dois elevadores privativos que estavam separados por alguns metros. Um levaria a dama da noite para casa, agora o outro iria direto para o salão de festas. Ela decidiu tomar o elevador de acesso ao salão de festa da torre Fiote, ela não queria ver a velha mãe, mais tarde a veria, mas não agora, Fá queria evitar as perturbações de sempre. Ela parou diante do elevador, o aparelho de portas de mogno, ricamente detalhado, com seus entalhes da escola barroca e a porta em ferro e bronze se abriu sozinha. O aparelho parecia estar mais que faminto, para capturar a negra alma torturada de Fá. Ela adentrou no elevador e ele subiu automaticamente para fazer ruídos, um forte olor floral tomou conta do elevador, um arrepio correu pela alma imortal dela, o alarme de Fá disparou naquela hora extrema.

Ao chegar até o último andar da torre Fiote, Fá saiu do elevador com um peso enorme nas costas, ela pressentiu nuvens negras se formando no horizonte não muito distante. A paisagista percorreu o corredor na semiescuridão e no limiar do salão de festas, duas estátuas vivas completamente nuas, davam o tom do que estaria por vir, cada uma em uma ponte da entrada e entreolhando-se no desespero da equidistância. Eram duas transexuais recobertas com uma leve pintura corporal branca, olhos pintados de negro, grinaldas brancas, unhas pintadas de vermelho vinho e completamente idênticas. Elas estavam em cima de colunas jônicas de mármore Ebony Crystal, que mediam meio metro, estavam completamente imóveis e pareciam sem vida. Fá passou por elas, como se elas não existissem, como se fossem meros enfeites, peças decorativas, um prelúdio de um tétrico teatro de horror que se avizinhava. A imagem da negra imperatriz Sibelly Lopez veio na mente da paisagista.

Fá ficou parada diante das duas monumentais portas de madeira Lignum Vitae, ricamente decoradas com entalhes com simbolismo pagã do norte da Europa central. Ela ficou ali parada esperando-as que fossem abertas, e os segundos se arrastaram e se transformaram em minutos, até elas se abrirem lentamente. Ela, um tanto nervosa, adentrou no salão de festas, com os passos comedidos, e logo avistou um trono vazio, ao fundo e ao centro do amplo salão de festas, em cima de uma pequena plataforma e com duas pequenas escadarias de acesso nas laterais, a imponente peça não deveria estar ali, mas estava. Do piso até a o fim das escadarias era recoberto com uma manta vermelha vívida e viscosa. O cheiro putrefato de cobre chegou até Fá como um aviso que estava por vir.

— Por onde andava a nossa mais que querida anfitriã? — A voz metálica, cravou nos ouvidos de Fá como se fosse punhais. Ela virou para a esquerda e viu o coronel Moreira César sentado em uma poltrona, usando um uniforme de gala militar do início do século XIX. No colo dele uma criança de dois anos dormia complacentemente.

— Tire estas tuas mãos imundas dela, seu animal sujo e nojento! — Gritou bem alto Fá, a plenos pulmões, em nano-segundos ela se projetou na frente do coronel e tirou a criança dos braços do coronel. — Nunca! Nunca mais mesmo, coloque as tuas mãos sujas, nela novamente seu animal. Valentina, minha querida, venha até aqui agora mesmo. — Era calma o tom de voz da dona da festa, mas cheio de força.

— Chamou, madame? — Disse a governanta a pouco metros de Fá.

— Valentina! Leve Agnes até os meus aposentos, na torre Xoclengue, leve-a agora mesmo. — Ordenou a paisagista e passou a criança, que ainda dormia, para as mãos da governanta — Fique com ela, até a festa terminar e não quero que mais ninguém chegue perto dela hoje e também que você não saia perto dela hoje à noite, nem por um só minuto. Fique ao lado dela a noite toda, não saia do lado dela um segundo que seja. Me ouviu? — Falou incisiva para a governanta.

— Mas senhora e a festa? Tenho tantas coisas para providenciar ainda...

— Vá! E agora mesmo! É uma ordem! — A voz de Fá ecoou pelo salão de festas como um estrondo.

A governanta saiu com a criança no colo, em direção a saída lateral do salão de festas, enquanto a dona da festa a seguia com os olhos atentos.

— Moreira César agora é com a gente — Falou a paisagista, com fúria assassina ao se voltar os ferinos olhos verdes para o militar de alta patente, esse que parecia se divertir com a coisa toda. O homem deixou a postura debochada de lado e ergueu e postou como um militar graduado que era.

— Espero que não tenhas aprontado das suas hoje de noite. Espero que não tenhas recoberto as ruas da minha cidade, com sangue de novo. Custa muito caro apagar as suas pegadas, os seus rastros pela cidade afora, toda vez que tu resolves passear ou dar uma festa deste tipo. Este pulso magnético chama muita atenção de muita gente. — Falou o coronel como que dá instruções para os subalternos.

— Baixe o tom da tua voz coronel, estás na minha casa e não lhe devo satisfações dos meus atos. Pelo que sei, estou fazendo um bom trabalho, que aliás deveria ser teu, eu faço um bom trabalho por sinal. E vai acabar quando tiver que acabar, estes como é que vocês chamam mesmo…

— Pontos nulos no céu! — Disse Moreira César sem esconder a irritação.

— Isto mesmo, são provas contundentes das insignificâncias de vocês. Chega coronel, não vou debater amenidades com você, não hoje. Chega, tenho mais o que fazer. — Disse a paisagista enfurecida e deu as costas para o coronel, mas no fundo ela sabia do terreno pantanoso que estava se metendo, e ela intuiu, se uma peça insignificante como aquela ousou enfrentá-la é porque havia coisas ruins por vir.

Ao caminhar pelo salão de festas, Fá tinha esquecido da manta vermelha vívida e viscosa, e ela sentiu uma viscosidade no chão, ela olhou para baixo e viu uma camada fina de sangue fresco e um forte olor de cobre se intensificou, era um presságio, que denunciava que a rainha de ébano estava por chegar ao recinto. O alarme de Fá estava ligado em alerta total. Ela olhou para o enorme salão vazio e de repente não muito longe estava uma banda de jazz que se aprontava para tocar no pequeno palco, estavam afinando os instrumentos. Fá reconheceu as figuras, que outrora estavam esquálidas na viela escura, que ela deixou no chão há poucos minutos passados. A banda estava usando ternos brancos e com gel no cabelo e sapatos lustrosos, um guitarrista, um contrabaixista, um baterista e por fim duas mulheres vestidas elegantemente dividiam o posto de vocalista da banda. Em um instante os músicos ficaram estáticos, mudos, como se fossem estátuas vivas antes de começarem a tocar. Sim, era obra da imperatriz Sibelly Lopez, pensou Fá, assim como os dois seres andróginos postados na entrada do salão de festas. O sangue fresco no chão desapareceu por completo, sem deixar vestígio algum e um forte olor da negra flor halfeti tomou conta do ar. Era ela o tempo todo, e Fá bem sabia, mas não queria ver o óbvio, era a negra ninfa, operando nas sombras como de costume. E no desespero, Fá Rodrigues Butler desejou o impossível, naquela hora extrema. Ela desejou ardentemente, que a soberana deusa de ébano estivesse morta àquela hora. Ou simplesmente, desaparecesse no ar, que ela fosse chorar suas mágoas eviterna em algum canto escuro em uma outra dimensão qualquer. Que ela fosse para outro perdido e esquecido tecido do cosmo. Mas a realidade imposta era bem outra, e Fá procurou-a em toda a parte, em desespero, foi encontrá-la na janela leste do salão de festas e estava olhando para baixo. Muito apavorada, Fá Rodrigues Butler se aproximou furtivamente da deusa de ébano.

— Ponto nulo no céu! Que coisa mais ridícula, não acha minha cara? Fá minha querida amiga como estás? — Sibelly olhava pela janela no alto da torre Fiote, para os quatro corpos enfileirados, com os braços aberto, em cima de lanças de um muro, os quatro olhavam para o alto da torre Fiote. — O teu senso de humor é atroz, Fá minha querida, você passou de todos os limites, desta vez. Mesmo assim adoro o seu estilo, minha querida! — Disse Sibelly olhando perdidamente pela janela.

— Não me ameace Sibelly, não aqui na minha casa! — Fã levantou a voz, mas de repente se lembrou de quem estava na frente dela. A imagem de Sibelly elegante vestida e delicada é substituída na mente de Fá, em uma mulher trajada de uniforme militar surgiu empunhando uma AK-47 em uma mão e na outra uma pistola Tokarev TT-30 que olhava para com sede de sangue nos olhos. Depois ela estava semeando um campo com as mortíferas Mina-S, as temidas minas antipessoal terrestres alemãs, como se não fosse nada. Em outro quadro ela está mirando e disparando em um tanque Merkava, com um lança granadas RPG-7 e depois logo marchando pela neve na Sibéria. Depois no deserto de Gobi sempre à frente de uma coluna de soldados fortemente armados. Sibelly em uma cidade eslava em meio a bombas explodindo, colunas de fumaça, gritos de horror, choros desesperados e corpos ensanguentados. E por fim ela estava na frente de um enorme contingente de soldados, dando ordens unidas, passando a tropa em revista, no meio de um descampado, em uma região erma.

Fá dá um passo para trás com um medo abissal de Sibelly, Fá jamais tivera tanto medo antes, mas agora estava aterrada. O pavor impregnou todo o cerne, mais que profundo, ela levantou a mão esquerda e tentou apontar para a mulher na frente dela, mas não conseguiu. Uma força poderosa a fez abaixar a mão, e balbuciou algumas palavras incompreensíveis, que morriam na boca de Fá, em vez de falar, ela escutou a outra proferir tranquilamente.

— Nunca! Nunca mais mesmo, se esqueça de quem somos e do quem você é. Se nos desafiamos novamente, sua estúpida, não serás destroçada, pura e simplesmente sim em praça pública à moda antiga, te juro com todas as minhas forças. Será um pesadelo, bem pior do que a tua débil mente infantil poderia criar e acreditar.

Outra imagem foi projetada na mente de Fá, Agnes adulta, completamente nua, ela estava deitada em uma pira de sacrifícios. Agnes estava ornada com vestes brancas de puro linho. Homens com uniformes nazistas de alta patente, adentram no que parecia ser uma câmara de sacrifícios humano, eram cinco, estavam com os rostos cobertos por uma escuridão sobrenatural. Fá intuiu, com pesar no coração, que fossem os mesmos, que ela vira na rua a pouco menos de uma hora surrando os três moradores de rua. A sala é iluminada à meia luz, por primitivas tochas, mas Fá pode ver o sorriso de satisfação nos lábios de Agnes. E por mais que se tenta, Fá não conseguiu ver os olhos dos oficiais nazistas, só o que pareciam ser as bocas e narizes, eles não sorriam e nem falavam nada. O oficial de maior patente levantou no ar uma adaga athame, o objeto cortante emanou um feixe de luz que cegou Fá. Ela aterrada, voltou para a realidade presente, Sibelly Lopez havia desaparecido e na frente dela, só o vento frio da janela aberta, o céu encoberto por nuvens negras e raios que de instantes em instantes rasgavam o céu.

— Maldita! Malditos todos! — Fá gritou a plenos pulmões e jogou no chão uma taça de champanhe, que surgiu nas mãos dela sem ela o saber como. A fina peça, delicadamente entalhada artesanalmente, de cristal Bohemia se espatifou no chão de mármore, chamou a atenção de todos ali presentes. Fá não se espantou em ver o enorme salão de festas repleto com os convidados que se materializam do nada, outra obra de Lopez considerada a dona da festa. A jovem senhora calculando, o profundo mal-estar, causado pela desagradável cena, ensaio um sorriso e mil pedidos de desculpas. Ela sorriu e se voltou para os convidados, que olhava para ela atônitos. E ela levando as mãos ao alto bateu palmas.

— Vamos à festa, a banda! E a banda? Toquem meus caros, toquem! — Disse bem alto a dona da festa.

A fina flor da classe artística provinciana, da pequena cidade portuária, estava toda lá, uma pequena massa de rebeldes locais, de toda a ordem, estava presente na festa de Fá. Eram pintores, artistas plásticos, tatuadores de renome, editores de revistas de arte e literatura, escultores, donos de jornais independentes e portais de notícias, professores universitários progressistas, dançarinos e dançarinas, bailarinas e bailarinos, badalados disck jóqueis, web designers, escritores independentes, influenciadores digitais, produtores culturais e artistas de teatro, diretores e produtores de TVs e rádios, críticos literários, músicos de relevância local, designers de moda, donos de galerias de arte. E toda a sorte de espíritos livres que gravitam no meio artístico e cultural da pequena cidade e cercanias, pessoas toleradas pela velha elite conservadora.

Os garçons, garçonetes e todos os convidados formaram um corredor humano, diante de Fá, os poucos convidados desavisados acresceram ao corredor humano. A anfitriã viu no fim do corredor o trono, e lá estava ela, Sibelly Lopez, com um diadema de ouro cravejado de joias na cabeça, ela de trajes sumários, dona de si, segurava um respiro do narguilé na boca. No alto do trono, acima dos mortais, a deusa de ébano então sorriu para Fá. A negra imperatriz se elevou do trono e bateu palmas, todos ergueram as taças e os copos em suas mãos, olharam para Sibelly Lopez e em uníssono saudaram: — Salve a rainha da noite! Salve a deusa da escuridão!

Fá derrotada, não teve escolha, ela lentamente atravessou o corredor humano, olhava para belíssima mulher negra majestosa sentada em um trono. Sibelly Lopez evitou olhar para a outra que se aproximava, a mulher postada no trono de mármore era a expressão máxima do poder encarnado e tinhas os olhos frios de uma déspota cruel que iria proferir uma pena de morte. E quando Fá naquela hora queria que seu coração parasse ao se ajoelhar diante do trono.

 

Fragmento do livro Em dias de sol e calor, em noite de tempestades e frio, de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária e Balneário Camboriú, Santa Catarina.

 

 

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