O
“MORTICÍNIO” DAS CATURRAS
Já dizia meu falecido vô Bira, que “qualquer querência é querência,
depois que a gente se aquerencía”. E eu pra não lhe faltar com a verdade, tenho
querências tantas que em qualquer lugar desse meu Rio Grande, onde boleio a
perna, espalho as garras e me acomodo como se fosse dono, pois lugar que se encontra
cara alegre e mate amargo pra lavar a poeira das estradas, é terra de gaúcho.
Por outro lado, não existem raízes mais fortes e nem mais profundas do
que aquelas que nos prendem ao rincão onde nascemos, por isso ande eu por onde
andar, cruze os caminhos que cruzar, de quando em vez me pego troteando no rumo
de Santaninha, nem que seja pra ver mais uma tropa flagelada, mais um caponete
que virou cinza, ou mais um rancho que virou tapera, nesse pago já tão solito,
tão atirado à própria sorte.
Pois, foi na última vez que voltei à querência mãe, que ao passar em
frente a tapera do tio Dorivaldo Teixeira, de longe avistei toda imponente, florida
como sempre e pontilhada de ninhos de caturritas, aquela *paineira velha, que
pelo que parece só ela resistia ao tempo, pois até o rancho principiava a
rachar as paredes e o galpão velho já tinha inclinado a parte da frente, que
nem o gado quando ajoelha p´ra se deitar e remoer o pasto abocanhado durante o
dia.
Pensando bem, nessas minhas andanças por esse Rio Grande de Deus e de
todos os gaúchos, não lembro de ter visto muitas paineiras, até pra não lhe
faltar com a verdade, de Bagé até Santaninha não lembro de ter visto outra,
além daquela que estava ali vendendo saúde e debulhando flores por cima do
pasto, me fazendo lembrar desse causo, que de tão antigo eu quase arremato
esses mal escritos, passando por cima, como se nada tivesse pra ser lembrado.
- Vamos então ao bendito causo.
Era uma tarde veraneira, o sol já baixinho e o tio “Valdo” e meu primo
Valdir caprichavam a pontaria, com uma espingarda velha lustrosa de azeite, num
bando de caturritas que se cruzavam fazendo um rebuliço medonho, por entre o
mundaréu de ninhos que se emaranhavam desd’as primeiras forquilhas, logo acima
do tronco até as guias da paineira.
A espingarda velha já estava com o cano quente, pois a cada tiro, trocava
o atirador, o cartucho e dê-lhe chumbo de novo e as caturritas, de tão
acostumadas estavam com os estampidos, já nem voavam e desse jeito as
pobrezinhas iam despencando aos lotes lá de riba.
Lembro que meu tio atirava nas “cocótas”, que pousavam nos galhos da
direita da paineira e meu primo nas que pousavam nos galhos da esquerda e devia
ter por certo melhor vista, pois a cada tiro desabava de meia dúzia pra mais,
direto p´ro o chão e aquele lado já estava tão coalhado de caturritas, que por
certo não cabia uma pata de cachorro sem pisar por cima dos bichinhos mortos.
Sem contar as que se empilhavam, por cima.
O lado direito raleava um pouco, mas dava pra encher três ou quatro
sacos, não digo até transbordar, mas até onde desse pra atar a boca, por certo
enchia.
Eu, na época era guri de sete pra oito anos, e estava uma sarna pra botar
as mãos naquela espingarda e fazer um escarcéu naquele bando de bichos
barulhentos, parecia “cousa” fácil. Se eles não erravam um tiro, não seria eu
que ia errar, não ia mesmo, nem que piscasse os “zóio” na hora de atirar, nem
que tremesse o braço, nem que não tivesse pontaria.
Nem cego errava, de tanta caturrita que tinha.
Acontece que arma não é coisa pra guri e por mais que eu “purganteasse”,
não havia jeito de me deixarem dar um tiro. Um que fosse já me deixava
satisfeito, pelo menos um pra sentir o gosto.
Até que pelas tantas insistências... E outras tantas negativas. “Mais
contrariado que burro comendo urtiga”, o meu tio foi lá dentro, pegou uma
espingarda de dois canos, que tinha sido do falecido Feliciano Teixeira, “seu
pai” e, que a mais de vinte anos ficava pendurada bem na entrada da sala, num
cabide, feito com um dente de porco, mais pra enfeite e ninho de marinbondo do
que pra qualquer outra coisa e carregando essa arma, com dois cartuchos só de
pólvora, me largou nas mãos pedindo por amor de Deus que parasse de“
Purgantear”.
Era a realização do meu sonho, uma espingarda “a meu ver carregada”, colocada
em minhas mãos e um bando de caturritas esvoaçando na frente.
Já sentia a glória do meu primeiro tiro, o penaredo verde voando e a
revoada das que sobrassem. Isso se sobrasse alguma.
Ia ser um tiro de respeito, ou melhor, dois acolherados em um só.
Calcei o joelho esquerdo no chão e a coronha carunchada, no ombro
direito, alinhando a “cuiera” de canos da arma no rumo do bicharedo, pois a
alça de mira há muito a ferrugem tinha comido.
Não foi sem forcejar, que com dois dedos de cada mão, puxei os dois
“pinguéis” já p´ra lá de encravados, pelo tempo sem uso, cheguei até a pensar
que não detonariam os cartuchos e, talvez, por isso não estivesse com a arma
bem firme, “pois” quando disparou, levei um coice tão “brabo” no peito, que me
largou tastaveando pra trás, até me esparramar por cima da tia Noêmia que
remendava uma bombacha ali perto, derrubando a coitada com cadeira e tudo por
cima de meia dúzia de cusquinhos, que antes mamavam numa cadela baia.
Digo antes do tiro, pois depois disso a cadela não foi mais vista.
Na paineira, se abriu um clarão, que acredito entre folhas, flores e
gravetos dos ninhos, devo ter derrubado uma “meia arroba”.
Matei setenta e seis carurritas, isso porque se eu disser que foram
setenta e sete, periga até me chamarem de mentiroso.
Quando consegui levantar, ainda meio azoado das idéias, perna bamba e
fedendo a pólvora queimada, vi que meu tio ainda estava no mesmo lugar, com a
boca escancarada e os olhos cravados no clarão que ficou na paineira, sem entender
como um tiro sem um grão de chumbo pra contar, tinha feito tamanho estrago.
Recolhi a espingarda que havia saltado a meia dúzia de passos e lhe digo.
O par de canos tinha ficado que nem ralador de laranja de tanto buraco que
apareceu e na coronha, ainda, saía uma fumacínha branca, pelos buraquinhos dos
“carunchos”, de onde apesar de meio surdo, eu vi os “carunchinhos” saírem tossindo,
e oscos de fumaça...
E as caturritas que matei, coitadinhas, ficaram crivadinhas com as lascas
da ferrugem que tinha se acumulado nos canos da arma.
Esse é um dos pecados que até, hoje, tenho remorsos. E por certo, morro
de velho e não boto em dia, essa pendência com o Patrão Velho.
*A
paineira, citada nesse causo é, certamente, uma das poucas que existem pelo
menos neste lado do Rio Grande do Sul e tem uma história muito interessante,
pois foram trazidas duas mudinhas de paineira de Cachoeira do Sul no ano de
1933, por José Francisco Teixeira, mais conhecido por “Nenezinho” (irmão mais
novo de Dorivaldo Teixeira), que retornava aos pagos, após cumprir o serviço
militar.
A
outra muda, plantada ao lado do rancho de seu pai Feliciano Teixeira,
infelizmente não vingou.
Como
o leitor pode ver essa árvore, hoje, tem quase 80 anos, e é uma das poucas
coisas que restam onde um dia foi o referido rancho, ao qual ainda restam
pedaços de parede caída, a beira da estrada entre Minas do Camaquã e Santana da
Boa Vista, quase em frente ao “Cerro da Ronda.” Esse trecho é talvez a única
parte verdadeira deste causo, além do local e os personagens.
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