Quando tudo terminar
Primeira parte
Ah se o tempo pairasse
Então nada seria como antes
Já não te deixaria, jogada entre as feras
Desprotegida & sozinha
Então toda a minha existência
Justificar-se-ia & então eu me perderia
Na imensidão dos teus olhos
De um verde tão intenso
E eu saberia
Com toda a certeza que já não posso viver
Sem você...
Sem tua doce presença na minha vida.
Otto Meisel
sempre preferiu viver em regiões fronteiriças, vivia como seus antepassados,
que sempre viveram assim. O clã, a qual Meisel
pertencia, vivia e morria, entre a legalidade e a ilegalidade, entre um oceano
e outro, entre uma nação e outra, entre uma guerra e outra, entre um continente
e outro. Em uma marcha sem fim, indo e vindo ao sabor das conveniências da
ocasião. Viviam e morriam entre: lealdades e traições, migrações e imigrações
forçadas e voluntárias. E o teuto tomou para si esse peculiar legado familiar.
Por isso escolheu para viver na cidade portuária e seus inúmeros e infindáveis
vai e vem de navios, caminhões, contêineres, mercadorias legais e ilegais e
gente de todos os naipes, de os matizes, estirpes, raças, índoles e credos. E
para morar, escolheu um bairro que não se decidia se queria ser uma zona rural
ou urbana, com olarias, que importunavam a todos com seus fornos arcaicos
enfumaçados. Bairro cortado por uma movimentada rodovia que ligava o litoral
informal, sazonal e quente com o vale europeu frio, sisudo e formal.
Otto foi encontrar trabalho um pouco
longe dali, no Bar-café Garibaldi, que se localizava próximo à orla da
praia, na via de acesso rápido entre cidades. Otto também dividia a vida em
duas partes distintas e bem demarcadas, uma clandestina de noite e uma
aparentemente normal e de dia. Viver entre os mais variados riscos e
desventuras da fronteira da ilegalidade com a legalidade. O ar puro da orla da
beira-mar de dia, o clima carregado da noite da beira do cais e por fim entre
traições e lealdades, o clima ameno do bairro semirrural e o clima soturno e
viciado da zona portuária. Um equilíbrio que nem sempre repousava nas mãos de
Otto. Os choques entre mundos eram inevitáveis, constantes e cada vez mais
violentos e cada mundo lhe cobraria, à sua maneira, seu preço e uma definição
em definitivo.
***
O aroma de alfazemas pairava no ar, e se
misturava com a música romântica francesa antiga. A luz vermelha, que vinha do
abajur ao lado da cama, deixou o quarto à meia luz. As roupas espalhadas por
toda à parte compunham o ambiente. Para os dois amantes não havia nada para se
dizer, pois, o silêncio já dizia tudo, e falava bem alto por si. E abraçados na
cama, ficaram por mais uns alguns instantes, além do habitual, mas parecia uma
eternidade para ambos. Agnes bem sabia que aquilo não poderia durar
por muito tempo. Otto, também, sabia que as coisas não poderiam ficar no pé em
que estavam. Ele queria dizer alguma coisa, mas lhe faltavam as palavras
certas, elas nasciam e morriam de forma rápida na mente dele. Agnes nem sequer
deixou espaços para tais coisas nos últimos dias. Não poderia, pois como uma
boa profissional que era, tinha decidido por fim nessa história de uma vez por
todas. Conhecia Otto o suficiente para tanto, e daria um golpe abaixo da
cintura, à hora tinha que ser naquele momento exato. Agnes aproveitou o momento
em que Otto estava fragilizado, cheio de culpas e remorsos.
─ Amanhã mesmo, quando
raiar o dia, apareço no teu trabalho, e tu vai me preparar um senhor café da
manhã, seu canalha, aproveitador miserável, seu desgraçado maldito. Vou querer
ser servida por pelo teu amiguinho muito especial. Que tal, torradas e chá com
conhaque canadense de sete anos? E pra Cigana, pão-de-mel e café morno sem
açúcar, um limão cortado no meio e dois saquinhos de adoçante cristalizado
importado, e tu vai me servir, mais ninguém.
Não era do perfil de Agnes se portar daquela
maneira grosseira com os seus clientes. Nem com os habituais, nem tão pouco com
os ocasionais, mas aquilo tinha que ter um fim em absoluto. E não poderia ficar
de pé uma centelha sequer, da relação que estava construindo com Otto, aquela
relação era bem ruim para ambos. Agnes sabia da realidade em que vivia e não
queria aquela ilusão para si, era pragmática demais para isso.
─ Se tu, fizer isto sua
puta desgraçada, maldita! Te mato... sabes que a minha mulher trabalha comigo?
Não sabes? – Esbravejou Otto, sem soltar Agnes dos braços, ainda abraçava com
terno carinho, apesar do tom de voz áspero e as duras palavras que lhe
proferia.
─ Não! Não eu sabia! – A
voz dela soou com um lamento sincero e como um pedido de desculpas, apesar da
mentira que acabara de dizer.
─ Pois agora tu sabes, te
mato, se pôr os pés por lá, te mato, tu e aquela tua amiga ordinária! ─ Retrucou o teuto, com todo o ódio do mundo, sem olhar nos
olhos dela.
Enquanto isso, lá fora, a noite estava se despedindo, e o dia com as
suas múltiplas possibilidades, vinha para expulsar Agnes da vida de Otto e Otto
da cama de Agnes. Só que dessa vez era para sempre, pelo menos era o que ambos
imaginavam.
Samuel da Costa
é contista e poeta em Itajaí, Santa Catarina.
Contato:
samueldeitajai@yahoo.com.br
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