terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

QUANDO TUDO TERMINAR (PRIMEIRA PARTE)

 

Quando tudo terminar

Primeira parte

Ah se o tempo pairasse

Então nada seria como antes

Já não te deixaria, jogada entre as feras

Desprotegida & sozinha

Então toda a minha existência

Justificar-se-ia & então eu me perderia

Na imensidão dos teus olhos

De um verde tão intenso

E eu saberia

Com toda a certeza que já não posso viver

Sem você...

Sem tua doce presença na minha vida.

 

Otto Meisel sempre preferiu viver em regiões fronteiriças, vivia como seus antepassados, que sempre viveram assim. O clã, a qual Meisel pertencia, vivia e morria, entre a legalidade e a ilegalidade, entre um oceano e outro, entre uma nação e outra, entre uma guerra e outra, entre um continente e outro. Em uma marcha sem fim, indo e vindo ao sabor das conveniências da ocasião. Viviam e morriam entre: lealdades e traições, migrações e imigrações forçadas e voluntárias. E o teuto tomou para si esse peculiar legado familiar. Por isso escolheu para viver na cidade portuária e seus inúmeros e infindáveis vai e vem de navios, caminhões, contêineres, mercadorias legais e ilegais e gente de todos os naipes, de os matizes, estirpes, raças, índoles e credos. E para morar, escolheu um bairro que não se decidia se queria ser uma zona rural ou urbana, com olarias, que importunavam a todos com seus fornos arcaicos enfumaçados. Bairro cortado por uma movimentada rodovia que ligava o litoral informal, sazonal e quente com o vale europeu frio, sisudo e formal.

Otto foi encontrar trabalho um pouco longe dali, no Bar-café Garibaldi, que se localizava próximo à orla da praia, na via de acesso rápido entre cidades. Otto também dividia a vida em duas partes distintas e bem demarcadas, uma clandestina de noite e uma aparentemente normal e de dia. Viver entre os mais variados riscos e desventuras da fronteira da ilegalidade com a legalidade. O ar puro da orla da beira-mar de dia, o clima carregado da noite da beira do cais e por fim entre traições e lealdades, o clima ameno do bairro semirrural e o clima soturno e viciado da zona portuária. Um equilíbrio que nem sempre repousava nas mãos de Otto. Os choques entre mundos eram inevitáveis, constantes e cada vez mais violentos e cada mundo lhe cobraria, à sua maneira, seu preço e uma definição em definitivo. 

 

***

 

O aroma de alfazemas pairava no ar, e se misturava com a música romântica francesa antiga. A luz vermelha, que vinha do abajur ao lado da cama, deixou o quarto à meia luz. As roupas espalhadas por toda à parte compunham o ambiente. Para os dois amantes não havia nada para se dizer, pois, o silêncio já dizia tudo, e falava bem alto por si. E abraçados na cama, ficaram por mais uns alguns instantes, além do habitual, mas parecia uma eternidade para ambos.  Agnes bem sabia que aquilo não poderia durar por muito tempo. Otto, também, sabia que as coisas não poderiam ficar no pé em que estavam. Ele queria dizer alguma coisa, mas lhe faltavam as palavras certas, elas nasciam e morriam de forma rápida na mente dele. Agnes nem sequer deixou espaços para tais coisas nos últimos dias. Não poderia, pois como uma boa profissional que era, tinha decidido por fim nessa história de uma vez por todas. Conhecia Otto o suficiente para tanto, e daria um golpe abaixo da cintura, à hora tinha que ser naquele momento exato. Agnes aproveitou o momento em que Otto estava fragilizado, cheio de culpas e remorsos.  

Amanhã mesmo, quando raiar o dia, apareço no teu trabalho, e tu vai me preparar um senhor café da manhã, seu canalha, aproveitador miserável, seu desgraçado maldito. Vou querer ser servida por pelo teu amiguinho muito especial. Que tal, torradas e chá com conhaque canadense de sete anos? E pra Cigana, pão-de-mel e café morno sem açúcar, um limão cortado no meio e dois saquinhos de adoçante cristalizado importado, e tu vai me servir, mais ninguém.           

 Não era do perfil de Agnes se portar daquela maneira grosseira com os seus clientes. Nem com os habituais, nem tão pouco com os ocasionais, mas aquilo tinha que ter um fim em absoluto. E não poderia ficar de pé uma centelha sequer, da relação que estava construindo com Otto, aquela relação era bem ruim para ambos. Agnes sabia da realidade em que vivia e não queria aquela ilusão para si, era pragmática demais para isso. 

Se tu, fizer isto sua puta desgraçada, maldita! Te mato... sabes que a minha mulher trabalha comigo? Não sabes? – Esbravejou Otto, sem soltar Agnes dos braços, ainda abraçava com terno carinho, apesar do tom de voz áspero e as duras palavras que lhe proferia. 

Não! Não eu sabia! – A voz dela soou com um lamento sincero e como um pedido de desculpas, apesar da mentira que acabara de dizer.

Pois agora tu sabes, te mato, se pôr os pés por lá, te mato, tu e aquela tua amiga ordinária!Retrucou o teuto, com todo o ódio do mundo, sem olhar nos olhos dela.

Enquanto isso, lá fora, a noite estava se despedindo, e o dia com as suas múltiplas possibilidades, vinha para expulsar Agnes da vida de Otto e Otto da cama de Agnes. Só que dessa vez era para sempre, pelo menos era o que ambos imaginavam.  

 

Samuel da Costa é contista e poeta em Itajaí, Santa Catarina.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

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