terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

PAIS E FILHOS, FILHOS E PAIS

Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)

 

“Quando é que os pais vão entender os filhos? Quando é que os filhos vão entender os pais?”

É assim que Moacyr Scliar entra na parte final de uma crônica intitulada Um filho e seu pai, que, ao ler, recordo-me de uma passagem da vida quando eu, com dez anos, fui apresentado não ao meu pai – que já o conhecia de várias ocasiões, mas ao pai que eu queria ser. A bem da verdade minto um pouco – só um pouquinho – porque, embora já havia tido tantas mostras do herói que meu pai sempre foi e ainda é, mesmo eu hoje com os meus 49 anos de idade, foi lá naquela manhã quando, absolutamente atormentado por uma prova de ciências que estava prestes a fazer, tive a alma completamente arrebatada ao olhar para aquele homem de semblante tranquilo e assovio afinado, sua marca registrada ao se fazer presente, enquanto me levava para a escola em passos lentos antes mesmo de ir para o trabalho.

           

Voltando um pouco, acordei com aquela vontade de fazer os ponteiros do relógio regressarem para não encarar a dura realidade de ir para a escola, ainda mais em dia de prova. A disciplina já é sabida: Ciências. Qual a matéria? Corpo humano, ou, para ser mais exato, o esqueleto humano. Havia passado o dia anterior em cima dos cadernos tentando decorar os mais de 200 ossos que o constitui, sem me esquecer das extremidades de cima com seus trapézios, trapezoides, capitatos, hamatos e uma série de nomes para mim mais úteis nas histórias espaciais que eu inventava com os meus bonequinhos Playmobil.

Como sempre, o meu pai precisou chamar várias vezes para eu levantar, enquanto passava o café. Minha mãe, cúmplice daqueles momentos, me vestia ainda na cama e, uma vez de pé, não havia mais jeito: era ir ao banheiro e de lá me dirigir à mesa, onde já estavam os meus irmãos em conversas animadas — às vezes nem sempre — contrapondo comigo ao viver, calado e acabrunhado, meu pesadelo de Lucy, o esqueleto mais antigo já encontrado no mundo, estima-se que da espécie Australopithecus afarensis que viveu há 3,2 milhões de anos.

Eu praticamente nem prestava atenção no que comia. Meu pensamento saia do cérebro e descia pelo tubo anelar da traqueia, passando pelo esôfago e chegando aos intestinos grosso e delgado, quase me fazendo arrevessar, para dizer uma palavra mais apropriada para a ocasião em que eu me encontrava à mesa do café.

Mas não se iludam! Essas palavras difíceis nem em sonho eu as tinha em minha mente e nem seria capaz de pronunciá-las à época. A propósito, esse era o problema: eu não sabia nada. O dia anterior havia sido um desastre em minhas tentativas infrutíferas de decorar o esqueleto humano, a sua função e para que servia cada coisa, inclusive ossinho por ossinho. E ainda tinha que lembrar a professora dizendo que não podíamos decorar, era preciso saber… Francamente!

Terminado o café que eu mal havia começado – sem que minha mãe amorosamente repreendesse e emendava um “não deixe de merendar no recreio, hein!”, lá fui eu mochila às costas na companhia do meu pai que a essa altura já detinha todo o conhecimento do que me afligia. E foi aí que começou toda a sua destreza que fazem dos pais seres especiais, sem esforço e alteração e muito menos broncas e sermões.

— Por que está tão preocupado com a prova? – foi a pergunta que eu mal podia acreditar e cuja resposta era óbvia:

— Ora, pai! Porque eu não sei nada!

— Mas você não estudou?

— Estudei, né pai! Mas é muito osso e muita função. É tanta coisa que tem dentro da gente…

— Bom, meu filho, se você estudou você bem sabe, por exemplo, que o maior osso do corpo humano é o estribo, e…

— Que isso, pai? O senhor está louco?! Se eu escrevo isso na prova aí é que eu tiro zero mesmo! Esse é o menor e não o maior. O maior é o fêmur, que é responsável por formar a coxa. O estribo é esse ossinho aqui que fica na nossa orelha.

— Ah, sim… Eu me enganei. Bem, mas se cair na prova qual é o mineral presente nos ossos aí você sabe que é o cloro, não é?

— Pai do céu!! Que cloro que nada! É o cálcio. E o esqueleto humano junto com os dentes possuem 99% dele. Isso eu sei porque só faltou 1% pra chegar em cem. Aí não dá pra esquecer.

— Hummm…. Você foi bem inteligente… Então também não dá pra esquecer que o osso mais forte que nós temos é o osso da mão, porque a gente usa pra apertar as coisas.

— Ai, ai, ai, pai… O senhor é maluco mesmo! Ainda bem que não vai fazer a prova no meu lugar! A nossa mão não tem um osso só, tem vários, e são divididos em carpo, metacarpo  e falange. Além do mais o osso mais forte é o da mandíbula que serve pra mastigar as coisas. Desse jeito o senhor nem deve saber que ele é o único osso móvel do crânio.

— É mesmo? Puxa, não sabia…

E assim foi durante todo o trajeto de casa até a escola, com meu pai falando tudo ao contrário do que eu tinha lido nos livros e no caderno e eu consertando sem deixar de lado aquele mau humor de quem não sabia nada para fazer uma prova.

Ao chegar ao portão da escola, meu pai me deu um abraço, um beijo e desejou boa sorte na prova. Fui o observando indo embora em seu passo calmo e assovio afinado, já desconfiado de que algo muito importante havia acontecido. Eu que cheguei a pensar que o meu pai não estava a me ajudar em nada, ao receber a prova, vi que estavam ali em forma de perguntas exatamente toda a conversa que eu acabara de ter com ele. Até parece que ele havia lido o meu caderno! Será?… Fui respondendo uma a uma às questões, e quando a professora no mesmo dia entregou o resultado da prova, estava lá um 10 e abaixo dele escrito “Parabéns, você arrasou!”.

Saí da escola todo contente e fui pulando para a casa numa felicidade nada clandestina, como disse Clarice Lispector em uma de suas mais belas crônicas. A minha era evidente. Esperei ansiosamente a chegada do meu pai que reconheci pelo assovio. Entreguei a ele a prova, que apenas disse com o semblante bem de pai:

— Você é inteligente! E eu achando que eu sabia tudo…

Pois é, foi assim que eu aprendi uma das maiores lições da minha vida que nada tem a ver com ciências, mas sim, como eu disse, em ser apresentado ao pai que um dia eu queria me tornar.

Tem apenas duas coisas nessa história que eu preciso destacar: entre acertos e erros eu estava errado, muito errado em achar que o meu pai não havia me ajudado em nada, mas, mais errado do que eu estava a professora…

Não, Dona Marieta! Quem arrasou foi o meu pai.

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