terça-feira, 1 de março de 2022

NÃO VOU DEIXAR VOCÊ DAQUI

 Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

‘’No silêncio da madrugada, minha alma se propõe,

Ao bem, ou ao errado? Não sei.

Quem poderá me julgar?

No silêncio da madrugada,

É que minha mente é livre,

Para atacar ou recuar,

E quem virá me julgar?

Se a sabedoria viesse no silêncio,

Da madrugada,

Que bom seria, pois ali eu estaria. ’’

José Luis Grando

 

Os passageiros dividiam o espaço do vagão com correspondências e mercadorias advindas da cidade portuária. O trem estava a caminho do litoral para o interior. Os poucos passageiros, na maioria, eram trabalhadores pobres e maltrapilhos, estavam inertes em seus próprios mundos.

O silêncio ali imperava e reinava absoluto, em todos os sentidos, até o barulho da locomotiva parecia querer ficar lá fora. Sentada em um banco de madeira, uma menina usava um modesto vestido de chita floral rosa, incrivelmente limpo, um surrado laço amarelo na cabeça e os pés estavam desnudos. Ela parecia estar em estado catatônico, e um menino com pouco mais de um ano, enrolado em uma manta marrom, estava sentado no colo da menina, o menino dormia complacentemente o melhor de todos os sonos.

De repente o menino despertou e sorriu para os homens sentados na frente de ambos. Os três homens vestiam ternos pretos bem alinhados e feitos sob medida, sapatos engraxados, unhas bem feitas, cabelos bem cortados, dentes bem tratados e barbas feitas. Destoavam, em muito, dos restos dos passageiros vestidos modestamente. A menina, que até então, estava no seu mundo particular a olhar para o vazio, virou e olhou para os três homens bem alinhados. A menina viu as roupas dos homens cobertas de sangue, os sapatos cobertos de lama, exalavam um olor putrefato de cadáver e os olhos deles estavam injetados. O homem mais alto dos três então fez menção de pegar o menino que estava no colo da menina.

            ─ Não põe as tuas mãos sujas nele, seu animal imundo! ─ Gritou a menina, a plenos pulmões, a voz dela soou gutural e ecoou na mente dele de tal forma que o deixou tonto. Os demais passageiros pareciam nem se importar com o fato.

            ─ Calma, menina, eu só queria fazer graça com o teu irmãozinho! Não posso? ─ Armênio Vieira Souto se impressionou quando viu os olhos da menina, tinha um brilho estranho, pareciam sem vida, pareciam de uma pessoa morta.

            ─ Se tentar pôr as mãos nele de novo, eu te mato! Sua pestilência assassina, pústula maldita e infernal! 

 Os outros passageiros, não estavam entendendo nada do que acontecia. Armênio fez menção de chorar naquele momento.

            ─ O que há? O que foi irmão?

            ─ O que foi chefe? O senhor está bem? 

            ─ Nada seus idiotas, me deixem em paz! Estamos chegando à estação, afinal de contas? Falta muito ainda, pra gente chegar?

            ─ Estamos chegando chefe!        

            ─ Bom! Estou farto dessa gente preta ordinária! Queria mesmo é pegar o vapor.

            ─ Tas tolo seu abobado’’, tas falando do que afinal, meu irmão? ─ O irmão mais novo de Armênio, nunca viu o irmão em tal estado, tão fragilizado. Ele sempre foi tão forte.             

            ─ Ora! Ter que dividir o vagão, com toda esta gente preta e ordinária! Laudelino meu irmão, só não aguento mais é só isto! Da próxima vez, pegamos o vapor.

            ─ Que gente preta, irmão? Não tem preto algum com a gente! Tás falando do que? ─ Os demais passageiros, que até então estavam em seus mundos particulares, se voltaram para acompanhar a cena que se desenrolava.

Ao chegarem à estação, os três homens enfim se encaravam, era hora do derradeiro fim daquela parceria. Armênio estava em alerta total, estava estranhando as poucas pessoas na estação naquela hora do dia. Ele viu um soldado da polícia militar negro, bem alinhado, alto e corpulento, no ombro esquerdo uma carabina Mauser 98k, versão sniper. O militar negro estava conversando com teuto pequeno que usava roupas surradas e com olhos brilhantes, óculos com aro de tartaruga, segurava um caderno de notas. O homem estava tomando notas bem rápido do que o soldado falava. Armênio intuiu que ele era um jornalista. De repente o policial militar para de dar atenção para o jornalista e olhou profundamente para Armênio. Armênio teve a mesma sensação aterradora que teve a poucos minutos com os dois irmãos no trem. Mas o militar negro sorriu para Armênio e voltou a dar atenção ao jornalista como se nada houve acontecido.     

            ─ Aguinaldo as nossas coisas chegam ainda hoje. O vapor chega ao fim do dia. Nossa parceria acaba aí e agora. Boa sorte! E espero mesmo que respeite o doutor Irineu e fique longe do litoral. O serviço foi o último, não tem mais nada para nós por lá.

─ Norberto as nossas coisas chegam ainda hoje. O vapor chega ao fim do dia. A nossa parceria acaba aqui e agora. Boa sorte pra ti! Espero mesmo que respeite o doutor Gustav Blumenthal e fique bem longe do litoral, por um bom tempo. O serviço que fizemos foi o último e não tem mais nada para nós no litoral.  

            ─ Mas chefe?

            ─ Acabou Norberto! E não me olha com essa cara de burro quando foge!

            ─ O que faço da minha vida agora? O que faço Armando?

            ─ Te vira homem! E adeus! ─ retrucou Armando o irmão de Armênio com certo pesar na voz. Então os dois irmãos pegaram um carro de mola e desapareceu rua abaixo. Aguinaldo pegou o táxi com destino incerto.   

 

Samuel da Costa é contista, novelista e poeta, em Itajaí, SC.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário