Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)
Desculpe, pai, mas desconfio que não lhe
obedeci. Nem ao senhor nem à mãe. Lembra aquele dia quando eu tinha 5 anos?
Tudo bem, faz muito tempo, mas o senhor há de lembrar. Foi aquele dia que eu vi
outras crianças pegando papel na rua e colocando dentro de um saco para levá-lo
a um depósito, onde era pesado e o seu peso pago em moedas. Pai do céu! O
senhor não imagina como os meus olhos brilharam. Não sei se pela oportunidade
de ganhar dinheiro, pois era muito bom quando o moço do depósito nos entregava
as moedas, ou pela própria ação de juntar-me às outras crianças no trabalho de
vender papéis. Acredito que eram as duas coisas, acrescido de ainda poder levar
recursos para casa, afinal eu já estava me tornando um homem! Lembro-me
bem da sensação… “Uau! Ganhar dinheiro é tão fácil e tão gostoso!” O senhor não
me reconheceu na rua. Tudo bem, pai, não há nenhum mal nisso. Não tinha mesmo
como me reconhecer, eu estava todo sujo. Lembra como foi? O senhor estava a
voltar do trabalho quando em uma das inúmeras idas e vindas minhas com o saco
às costas cheio de papel a caminhar até o depósito, passou por mim.
— Oi, pai.
— Oi, filho. Oi, filho?!
Pois é, naquele momento o senhor me
levou embora e junto com a mãe, depois dela ter me dado um banho daqueles,
sentaram para conversar comigo. Nossa! Como me lembro dos olhos da minha mãe,
olhos de ternura. Os do senhor também. Só não entendi muito bem o sorrisinho
que estava junto deles quando eu disse estar trabalhando para ajudar nas
despesas da casa. O quê? Eu não disse isso a vocês? Mas eu deveria. Então digo
agora, mais de 40 anos depois. Engraçado, eu sempre achei que tinha dito isso…
Porque lembro bem o senhor e a mãe — ah, os olhos da minha mãe… —, dizerem que
eu não precisava fazer aquilo, que nesse ponto eu era diferente das outras
crianças. Diferente como, pai? Porque elas eram pobres e a gente não? Sabe de
uma coisa, pai, descobri que na vida existem vários tipos de pobreza e de
riqueza, e aquelas crianças eram muito ricas. Puxa vida, como eram ricas em
liberdade e alegria. O senhor precisava ver como ficávamos alegres no meio da
rua, quando encontrávamos um papelão mais grosso que ia render boas moedas. As
risadas, pai… Quanta riqueza naquelas risadas! Mas o senhor tem razão em um
ponto… Pai, eu vou te contar um segredo que eu nunca contei para ninguém. Eu
fiz uma coisa errada. Senti-me tão mal, pai! Era como se o senhor e a mãe nunca
fossem me perdoar. Sabe, essa sensação era muito pior do que pensar no castigo
de Deus que falavam nas igrejas. Nesse ponto eu fui mesmo diferente das outras
crianças. Sabe o que elas faziam? Elas pegavam uma pedra bem grande e colocavam
dentro do saco no meio dos papéis que era para pesar mais na hora da balança.
Então… Eu fiz isso também. Mas foi uma tentativa só. Foi muito esquisito.
Porque enquanto os meninos riam lá fora eu achava que aquilo não estava certo.
Mas eles me chamavam de bobo. Ah, isso não! Aí fui provar que eu não era bobo.
Peguei uma pedra bem pesada e coloquei no saco. Ela era tão pesada que foi
parar lá no fundo. Bem, o moço do depósito logo achou algo estranho, porque eu
mal conseguia carregar o saco. Além disso, eu tremia igual vara verde, e os meus
olhos faltavam saltar do rosto de tanto medo. O meu coração batia de um jeito
que dava para ver no peito sem camisa. O moço fez uma cara desconfiada, pegou o
saco e pôs na balança. Pois é, deu para ouvir um “pléim” bem alto, o barulho da
pedra no fundo ao bater no ferro. Que vergonha! Ele pegou a pedra, olhou e
disse: “Ah, seu moleque…”. Ser chamado de moleque foi a pior coisa que já me
aconteceu na vida. Os meninos tinham razão. Eu fui mesmo muito bobo, mas não
por ter colocado a pedra no fundo e não no meio dos papéis, como eles disseram,
mas por ter cedido àquela manobra. Não se preocupe, pai, o senhor e a mãe
ensinaram direitinho, o erro foi todo meu. Mas valeu. Só não valeu o fato de
não ter lhe obedecido, e aí voltamos ao início. Sabe o que é, pai? O tempo
passou, não foi? E por mais que eu tenha estudado e formado no almejado curso
superior, graças a vocês, com tanto sacrifício, eu queria mesmo era vender
papéis. Desculpe, pai, mas aquele menino de 5 anos sempre cresceu dentro de
mim. Ou melhor, eu crescia e ele vinha junto. Aí, no lugar do saco fiz uma
prensa de madeira e nela colo e costuro papéis transformados em livros, que são
pesados em uma balança um tanto diferente daquela de antigamente e enviados
pelo Correio às pessoas. Está assim confessada a minha desobediência. Pois é,
pai, precisava dizer isso ao senhor. Apesar de tudo, sou um vendedor de papéis.
A diferença é que eles são escritos. Só não uso pedras; prefiro a poesia.
Mil gracias amigo Pacceli
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