sábado, 1 de outubro de 2022

O GRANDE DEUS RAPTOR DE ALMAS

                                      Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)


Para Fabiane Braga Lima

 

 Eu não plantei flores!

E nunca vou plantá-las!

Para não vê-las morrerem...

Abruptamente!

Pisoteadas cruelmente,

Pelas botas asseadas...

E lustradas.

Dos soldados desumanizados!

Fortemente armados,

 Que em descompassados...

E uniformizados!

Passam em marcha.

          

 

            Ao chegar no final da escada, um embrulho de estômago o fez sentir vivo de novo. O que lhe passou pela mente sem aviso foi a lembrança amarga, de receber o trágico relatório secreto, do núcleo de repressão Moreira César, por fim estava em suas mãos. O relatório estava batido na máquina de escrever e estava bem resumido.

Não tinha fotografias dos elementos, só dados básicos dos membros do aparato repressivo. E uma breve passada de olhos e ele viu, lá estava o que ele suspeitava e temia. Estavam todos vivos, com as vidas destroçadas por tragédias e mais tragédias. Pequenas e grandes tragédias se abateram nos homens e mulheres que operavam no interior do núcleo de repressão Moreira César. E as palavras de Aldo gritou bem alto na mente dele: — Vocês vão morrer aos poucos e várias vezes! Eu juro!

Constavam no relatório: acidentes de trânsitos, cânceres, suicídios, desaparecimentos repentinos, prisões, descaminhos e falências empresariais e pessoais. Coisas que aconteceram com membros do núcleo repressão e as pessoas que gravitavam ao redor, dos agentes.

Eram parentes e pessoas próximas de quem um dia integrou o núcleo de repressão Moreira César. Dos elementos efetivos em si, havia registros de passagem por clínicas psiquiátricas, centros de recuperação para drogados e alcoólicos, internamentos prolongados em hospícios e clínicas psiquiátricas. Estavam todos vivos, mas com as vidas arrasadas.

Fechou o relatório após as leituras e uma coisa martelava na cabeça, ele sabia das atrocidades cometidas pelo núcleo de repressão. E uma vez com a queda do regime autoritário e a posterior redemocratização todos e todas do aparato repressivo voltaram para as suas lotações de origem. Como se nada tivesse acontecido, sem responder pelos abusos que cometeram.

Ele era somente um escrivão da polícia civil há época, voltou para a burocracia estatal e fez faculdade de direito, os demais elementos dos porões da repressão ele cortou todos os laços pessoais e profissionais.

E de repente recobrou a consciência, de onde estava e o que deveria fazer, deveria sair dali o mais rápido possível e relatar tudo que vira e ouvira para seus superiores.

   Ao ganhar a luz do dia e no meio da calçada, olhou para a entrada do prédio, a porta aberta surgiu como uma luz ao final de um túnel escuro. E a cada passo que dava, uma coisa acontecia, algo que simplesmente nunca havia acontecido antes. Eram os gritos de dores infindas, choros angustiantes, soluços prolongados e clamores chorosos. Suspensos no ar ficaram os cheiros devastadores de sangue fresco, carne queimada, urina em brasa, vômitos e fezes. Nem em pesadelos sentira isso antes, era como se estivesse de volta aos porões da repressão. Vozes gritando, clamando, chorando e cheiro de carne humana queimada, coisas que preferiu apagar das lembranças, deixar  para trás e seguir a vida em frente.

Ao se distanciar do prédio um pouco mais, se apressou em descer a rua, andou uns bons metros e olhou para cima do prédio, uma luz negra atingiu o último andar, pequenos e finos feixes brancos de luzes se destacaram em meio a escuridão. Olhou para frente e atravessou a rua, que estava estranhamente vazia àquela hora da tarde. Uma viatura da polícia desceu a rua, em altíssima velocidade e estava com a sirene desligada. Foi atingido ao tirar os pés da calçada e pô-los na rua, o frágil corpo voou longe, subiu alto e caiu na gramada a poucos metros de onde estava.

Acordou no hospital, em meio de gritos de horror, choros e lamentos, abriu os olhos e tentou em vão se mover. Foi quando os cheiros dos porões da repressão invadiram o ambiente. Um homem negro, alto, vestido como um diplomata europeu apareceu na porta.

— Hora de ir chefe! O raptor de alma apareceu por fim! — Era cordato o tom de voz do homem negro!

— O quê? — Sonolento o homem olhava para o teto do leito.

Acordou cheio de vitalidade, cheio de energia, estava de pé próximo a porta e não entendeu nada! Olhou para trás e viu seu próprio corpo deitado no leito de olhos fechados com o rosto contraído. Era como se sentisse dores atrozes.

— E ele? — Ele estava falando em dialeto trentino e apontando para si mesmo. Fazia tempo que não ouvia e nem falava em italiano. Olho para as roupas que estava vestindo, era um terno caro, no pulso um relógio, feito sob medida por um relojoeiro suíço. Nos pés confortáveis, sapatos feitos de couro de crocodilo.

— Chefe é hora de partir e deixá-lo para trás! — Disse como um soldado em combate. O homem africano estava falando em italiano no polido sotaque de Roma.

— Temos que ir! — Disse em tom militar.  

O homem negro assentiu com a cabeça e ambos partiram, outros dois homens negros estavam no lado de fora do leito hospitalar.

Ao passar pelos corredores do hospital que estava vazio queria fazer mil perguntas, queria parar, mas não conseguia.

— Onde está o raptor de almas? — Por fim perguntou

— Está no conclave anual! Em um prédio a poucos quilômetros daqui, já identificamos todos os elementos que estarão no conclave!

Ao passar pela recepção também vazia, notou um outro homem negro também bem vestido, mas parecia um professor universitário e uma mulher loura de uns trinta anos. Estavam na porta de saída do hospital e olhavam para o quarteto.

Saíram do hospital, uma limusine estava esperando, a porta se abriu e ele foi tragado pela escuridão luxuriante do carro de luxo.   

 

Samuel da Costa é contista e funcionário público em Itajaí, Santa Catarina.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br     

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