sábado, 1 de outubro de 2022

ÓPERA MUNDI (THE BLACK FLOWERS OF THE DESERT)

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

‘’Retoquei a minha vida

Achei forças e alicerces

Em lugares que eu não conhecia

Fiz que o amor brilhasse

Restaurando as nossas inocências

Impulsionando o nosso puro amor’’

Patrícia Raphael

           

Elas chegaram na hora marca, bem trajada, andando sem pressa com elegância despretensiosa, com a pretensão de quem vai conquistar o mundo. As duas modelos sorriam, uma de felicidade plena e outra um sorriso um pouco forçado. Segurando as suas respetivas bolsas e trajando as suas roupas diáfanas de leves tom florais, naquela manhã de sol outonal ameno .

            Postada na janela, Lenny a fotógrafa badalada, confirmou a impressão que teve quando vi as fotografias delas. Uma é funcionária pública, e talvez já tenha feito um audiovisual, fotografias publicitárias, uma propaganda para a TV ou mesmo uma peça de teatro amador. Lenny calculou vendo os sapatos que usa, o cabelo alisado platinado, os acessórios, a maquiagem e o modo contido de sorrir. A outra é um ser que brilha, sem muito esforço, uma cabeleireira de um salão de beleza sofisticada, talvez uma massagista de um spa bem frequentado. O  reluzente e cheio cabelo negro, o leve brilho na sedosa pele morena, os sapatos confortáveis e os assessórios multicores e reluzentes.

Indo para além do briefing que Otto tinha lhe passado, em uma análise fria a irmã mais nova é uma brisa primaveril, em um dia de sol sem nuvens. A outra um pouco mais velha, sóbria e contida, emanando a negra dor, a pura emoção negra. A imagética Lenny raramente errava nas suas análises frias.

E as irmãs, unidas para além dos laços de sangue, pelos laços da raça ou mesmo compartilhar o mesmo tecido social. Em uma tessitura astral, elas são irmãs de almas, mesmo seguindo caminhos profissionais diferentes e enfrentando a realidade de formas diferentes. Um desafio para Lenny, ressaltar a irmandade das duas, sem que cada uma perca a sua personalidade própria. A fotógrafa olha para Madalena e com o olhar manda a assistente receber as duas novas clientes.   

            Nem apertaram a companhia do solar dos Blumenthau, a porta abre sozinha e poucos segundos depois Madalena aparece para recebê-las.

            — Bem vindas jovem senhoritas! — O sorriso muito forçado e servil de Madalena constrangi as duas jovens modelos mulheres. 

            — Madalena! Chega de bobagens, entrem meninas e vamos começar trabalhar.

As duas mulheres trocaram olhares e um sorriso natural brotou nos lábios das duas! Madalena as conduz pela ampla sala de estar e foram parar em uma ampla sala de reunião!

— Então madames! Como conheceram o ordinário do meu velho pai? — Diz Lenny de chofre, ela segura um cigarro na mão esquerda e está encostada em uma coluna lateral da sala. 

— Que pergunta mais indiscreta! — Diz a irmã mais velha de forma seca!

— Provavelmente a filhotinha, pensa que o querido papaizinho se diverte na senzala na calada da noite. — A irmã mais jovem sorri alto e Lenny a acompanha, a irmã mais velha e a Madalena hirtas se entreolham em seus constrangimentos.

— Chega de bobagens, somos mulheres adultas, temos hora marcada e a senhorita recebe os nossos briefings! — A irmã mais velha, impávida, demarca seu território afinal. Como quem crava bem fundo no chão uma bandeira.

— Isto aqui meus anjos? — A fotógrafa dá poucos passos, vai até a mesa da sala de reuniões e levanta as duas pastas com os dois briefings. — Esqueçam meninas! Isto aqui foi escrito por burocratas, homens brancos, este povo não entende de nada, além de números e estatísticas. — Lenny recua e vai até uma lata de lixo de aço inox e joga com força os dois documentos na lixeira. — Sabem o que é pior que um publicitário? Vários publicitários que trabalham para políticos. 

— Gostei! — Diz a irmã mais nova.

— Madalena, faça-me o favor de nunca mais me chamar de madame e leve as meninas para o vestíbulo! — Diz Lenny olhando profundamente para a assistente e volta para as duas irmãs. — Geralmente converso bastante com quem fotografo e eu mesmo separo as peças de roupas que vou usar na secção. Mas vão e podem escolher as peças, que querem usar para a seção fotográfica, minhas queridas. E vamos ousar, hoje é dia de ousadia. E depois um grande Evóe!

Madalena conduziu as duas modelos, cruzaram a sala de reuniões e adentram em um vestíbulo, uma ampla suíte, convertida em vestíbulo e a luminária Bauhaus no teto dá ares modernista no cômodo. As muitas araras e os enormes guarda-roupas sem portas e diversidades de peças encheram os olhos das irmãs. As duas mulheres, se comportam como se estivessem fazendo compras em uma loja de departamento em um shopping qualquer. Escolhem as peças íntimas, sem pressa alguma, e em puro êxtase, provam os sapatos, sandálias e sapatilhas, entre risos contidos e risadas bramidas, encostam as peças por cima das roupas, ficam descalças e experimentam os calçados.

            Madalena e Lenny olham a cena em uma distância segura, enquanto as irmãs se divertem no vestíbulo, com uma ampla variedade de peças e sapatos a disposição. Ambas sabiam que o dia prometia muito e por fim Lenny olha para Madalena de forma abissal.

— Madalena tu és uma mulher trans?

— Madame? Que pergunta indiscreta!

— És?

— Claro que não! Sou uma mulher...

— E que eu não quero surpresas, quando eu tirar a tua roupa e te jogar na minha cama!

Madalena corou, não sabia o que dizer, pois nunca pensou de fato em ter algo com a chefe!

— E se fosse? Uma mulher trans? Faria alguma diferença?

— Não mesmo! Na verdade, só um pouquinho.

E o dia rendeu, a sessão de fotografia durou o dia inteiro e adentrou o começo da noite. Terminando em saudações a Baco e Dionísio.

 

 

Samuel da Costa é contador e funcionário público em Itajaí, Santa Catarina.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

 

 

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