Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
Ela olhou para trás, para a escrivaninha de forma desolada, pois lá estava ela,
a velha máquina de escrever Kanzler e as muitas saudades de Quincys bateu no
seu amago mais profundo àquela hora extrema. Fá lembrou do velho pai sentado
ali e trabalhando por horas e mais horas a fio, sem parar um minuto sequer. O
velho pai, bem alinhado, de barba longa e branca com seu inquieto cachimbo de
madrepérola no canto da boca. E ele sorrindo para ela de forma terna entre uma
pequena pausa e outra para trocar a lauda por outra. Ela lembrou de um dia, em
especial, era um outono e um vento álgido soprava e o pai chamou-a para perto.
Ela se se aproximou do velho escritor escocês, ela bem tímida e com medo dos
grandes olhos verdes vívidos, por detrás dos óculos tartaruga, ele de pele
alvíssima, o terno bem alinhado e do cravo vermelho na lapela. Tudo ali era um
mistério abissal para Fá. O velho escritor colocou a pequena filha no colo e
fez a pergunta fatídica, que dali para frente ele iria repetir por diversas
vezes como uma senha entre ambos: — Vamos trabalhar minha doce menina de olhos
famintos? — E era idílico, mágico, etéreo e belo para ela, pois a frieza do
velho refinado senhor europeu desterrado desaparecia completamente por uns
instantes pelo menos, por mais breve que fosse. E ele ficava bem mais próximo
da mãe e da avó da menina, ficava mais latino, mais terno, mais emotivo e
mediterrâneo por fim.
E a quimera evanesceu e a dura realidade se impõe, com todo o seu rigor, a mesa
de trabalho do Quincys estava vazia naquele momento e o martelar ritmado do
intelectual libertário do norte da Europa não enchia mais a imaginação da
menina, ele se fora para sempre e não votaria nunca mais. Coisas mais premente
surgiram e se insurgiram quando a mãe de Fá adentrou na loja de forma
intempestiva ignorando a ordem natural das coisas.
— Para onde a senhora foi? Agora é assim mãe? Sai e não avisa para aonde vai e
nem quando volta?
— Desde quando eu tenho que dar satisfação para a senhorita? Sou mais velha e
não te devo satisfações alguma, dos meus atos, menina malcriada! — A velha
cigana colocou a delicada cesta de vime usada para carregar flores no balcão, a
cesta estava vazia. A filha não tive coragem de parar de olhar para antiga e
bem conservada máquina de escrever de Quincys, enquanto falava com a mãe. Fá
sabia, muito bem, para onde a mãe tinha ido, mas não tinha o denodo de fazer o
confronto derradeiro, nessas horas extremas a mãe é sempre a soberana e dona de
todos as razões, mesmo que as razões não existiam ou pareciam não existir.
— A negra flor mãe! A halfeti, ela não te pertence mãe! E não tens o direito de
dispor dela como bens queres! Ora essa!
— Quem te disse que fui eu que dispus dela? Quem disse que eu quero, ou deixo
de querer as coisas? Tu deves ficar bem quieta e não se mete em coisas, que
estão para além da tua frágil concepção, minha querida filhinha.
— A hora dele chegou então? Vão buscá-lo por fim? Sibelly já sabe? A proscrição
acabou?
— Não faça perguntas minha querida, muito menos as que eu não posso
responder-te, há horas que é melhor não saber, de coisa alguma! — A velha
senhora romani caminhou até a artesanal cadeira de balanço de ferro e de vime,
sentou nela, se se ajeitou como se a idade avançada não pesasse em nada. O
rangido do ir e vir da cadeira de balanço afastou um pouco o pesar da falta de Quincys no coração e na mente de Fá. E
então a velha cigana esperou uma eternidade, até a filha parar de olhar para a
mesa de trabalho de Quincys e se voltar para ela e então a velha senhora
começou a tricotar lentamente uma chale.
— O africano vem se esquivando da escuridão eviterna, e vem fazendo isto por
muito tempo, minha amada filha. Vem fugindo dela faz muito tempo e vocês dois
bem sabem disto. Falando nisso, tu vais dar mesmo uma festa hoje de noite?
— Vou sim! — Decidiu ela naquela mesma hora, queria provar para mãe que estava
bem crescida para tomar as próprias decisões, não importando de pedir permissão
para quem quer que seja.
— Posso saber quem foi convidado? — Foi ríspido o tom da voz da mão de
Fá.
— Todo mundo ora essa, desta vez ninguém fica de fora, vai ser um grande
festejo com tudo que eu tenho o direito de o ter! — A velha senhora parou de se
se balançar e de tricotar e olhou espantada para a filha.
— Cuidado minha filha, seja discreta, estes teus espetáculos não são nada bom
para os dias de hoje, pois já chamamos muitas atenções para nós sendo quem
somos. São tempos difíceis estes em que vivemos hoje! Muito diferente do
passado, onde a neblina não nos abriga mais como antes. — E Fá escutou a mãe
que repetia sempre o mesmo discurso anos e anos a fio, com o mesmo tom gélido.
A mulher de aparência jovem temia em fazer a pergunta fatídica, mais com medo
da pergunta em si, do que a resposta propriamente dita, que ela sabia qual
seria.
— Mãe! Responde-me logo! O que será feito da minha Agnes? O que será que eles
reservam para ela?
— Que pergunta ora essa minha filha! Ela vai como tu bem sabes, vai reinar
absoluta na escuridão sem fim. É muito diferente de nós duas, Agnes terá um
reinado próprio, mesmo que breve, mas será somente dela. E se conforme logo,
com o legado que carregamos, por mais pesado que seja.
— Mãe! Por que as coisas tem que ser assim?
— Porque são assim e pronto menina! E me deixa em paz com o meu tricô! — Foi o
jeito que o que a velha senhora espanhola encontrou, de parar com a conversa
cheias de frivolidades de mente jovem e impressionável da filha.
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