quarta-feira, 1 de março de 2023

MINHA QUERIDA AGNES (AGNUS DEI)

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú. SC)

 

‘’Nem todos os cavalos da rainha

Nem todos os homens do rei

Podem nos reunir de novo’’

 

            Valentina caminhava lentamente na semi-escuridão, carregava a pequena Agnes no colo com terno carinho. Àquela hora a velha babá de profissão sentiu toda a dor, que por décadas sentia calada, de forma absoluta, dentro do seu frágil ser. Sentiu, também, toda a enormidade do peso da idade, a lhe cair nas costas, que chegou sem aviso afinal de contas, como uma torrente. Agnes nunca fora pesada de carregar, aliás nenhuma das crianças fora, pelo menos das que ela cuidava, carregar a inocência delas era como carregar plumas. Cuidar de crianças bem pequenas foi a forma que Valentina encontrou, para aliviar as muitas pesadas culpas que ela carregava dentro de si. Valentina caminhava como se estivesse a caminho de um batalhão de fuzilamento, naquela hora extrema, pois ela sentia no íntimo a escuridão chegando.

            — Tina, aquele homem bonzinho de roupa engraçada, vai mesmo me trazer muitos presentes pra mim? Como ele prometeu!

            — Isso é com a tua mãe, meu anjo bom, só ela pode te responder!

            — Tina tu vai ler aquele livro pra mim, mais uma vez? Tu vai Tina? Tu vai?

            — Qual livro meu anjo? — Fez a pergunta já sabendo qual era a resposta.

            — Os filhos do sol, livro supimpa Tina!!!

            — Muito adulto menina minha, a tua mãe não gosta que eu leia para a senhorita, que a senhorita escute tais desatinos literários.                                                                                                             

              Valentina chega por fim ao quarto dormir da menina Agnes, as portas automáticas se abriram automaticamente. A velha senhora, de cabelos grisalhos, mesmo na semi-escuridão que se deslumbrou com o que viu, toda a magnificência do aposento da menina pequena, como se fosse a primeira vez que adentrava naquele sítio. Naquela noite fria de outono, o quarto enorme da pequena Agnes tinha o olor de rosas frescas colhidas no arrebol. Valentina esperava que as luzes acendessem automaticamente, assim que ela colocasse os pés no quarto de dormir da menina. Não acenderam, somente as luzes de segurança se fizeram presente. Valentina levou a criança até a cama, colocou a Agnes letárgica na cama e cobriu, ela ergueu a cabeça e sorriu para Valentina antes de cair completamente no sono.

             Valentina foi até a pequena biblioteca da menina e pegou o livro Os Filhos do Sol, de capa dura, de couro cru, desgastada pela ação prolongada do tempo, com páginas brancas e incrivelmente novas. Sem editora, sem nome do autor, nacionalidade e escrito em português europeu que mistura arcaísmos com modernismos. Um livro antigo, que Valentina nem sabia como foi parar na biblioteca da menina Agnes, pois era a própria babá da menina que era encarregada das compras dos livros para Agnes. Os títulos dos livros geralmente passavam pelo crivo da mãe da menina. Valentina perguntou para a mãe de Agnes sobre o livro, e ela respondeu de forma vaga: — São desígnios dos deuses e das deusas, minha querida Valentina! Se quiseres ler, para a pequena, leia ora essa. E não me aborreça mais com essas miudezas! — Valentina coloca o livro de volta na estante, dá uns poucos passos e vai até a janela, ela viu as luzes vermelhas lá embaixo e muita movimentação de ambulâncias e viaturas das forças de segurança, policiais civis e militares andando de um lugar para outro. Populares e jornalistas, ao redor da cena sendo contidos pelas forças de segurança.

             — Deus é sempre assim, quando ela volta para casa e resolve dar essas festas dos infernos! Deus será?

             — Falando sozinha Valentina?

            A velha senhora fecha os olhos e sorri, a quanto tempo não ouvia aquela voz doce, limpa e cheia de mistérios?

            — O livro é presente, afinal de contas? Claro que é, de quem mais poderia ser?

             Valentina continuava a olhar para baixo, não tinha coragem de encará-la. Mas tinha o cheiro forte de rosas frescas, o livro e o quarto à meia luz. Valentina viu ali um cenário bem montado esperando o momento certo para agir.

             — Quase isso meu anjo!

            — Kriseide eu não tive culpa alguma do que aconteceu naquele dia!

            — Sabe qual é problema de vocês? São incapazes de viver, com as suas próprias fraquezas e angústias! Ou seja, são incapazes de viverem consigo mesmos e com os seus erros! Os mais simples que sejam!

            Valentina fechou os olhos, mil vozes gritavam na mente da velha senhora, ela sentiu uma chuva de vidro dilacerar seu corpo por inteiro, brutal e rápida seu corpo ardia em chamas para depois ser projetado para trás. Ela deitada no chão, respirando sofregamente sentiu várias micros agulhas lhe triturar a carne a indo parar nos ossos. Para depois acordar sentada na poltrona de leitura, sem um arranhão sequer com o livros dos filhos do sol. Valentina estava com o livro nas mãos, ela olhou para a menina no berço. E logo imaginou que era somente o começo de um pesadelo sem fim não só para ela.  

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