quarta-feira, 1 de março de 2023

RI MELHOR QUEM CONHECE OS CLÁSSICOS

Por Dias Campos (São Paulo, SP)

            Da sua escola, Pedro Garrido sempre foi o mais franzino e o que maiores notas tirava. Esses dois predicados eram suficientes para que os mais truculentos e ineptos dele fizessem gato e sapato. Por isso, quando o ensino médio terminou, parecia que retiravam um gigantesco bloco de granito dos ombros.

            Essa sensação de liberdade, aliando-se ao seu refúgio, o estudo disciplinado, fizeram decolar a autoestima e a autoconfiança do rapaz, o que o levou a conquistar o primeiro lugar no vestibular para Letras da mais afamada universidade do seu Estado.

Devido à minguada constituição física e à meritória classificação, o seu maior temor era ser o alvo predileto dos veteranos. E ele bem que tremeu quando quiseram que dançasse sozinho sobre uma mesa... Mas como havia lindas calouras ao redor, Pedro Garrido foi rapidamente substituído.

Acudido por esse milagre, o que lhe cabia fazer era agradecer aos céus e seguir adiante, procurando não se fazer notar até a data da abolição dos escravos, data em que os bichos ficariam livres do jugo dos capatazes.

Com efeito, o primeiranista passou despercebido até ser contemplado com a alforria. E uma vez liberto, pôde entregar-se com todas as suas forças ao seu sonho juvenil – debruçar-se sobre os livros e se tornar professor de Literatura.

Como amasse escrever, e escrevesse muito além dos de sua idade, Pedro Garrido logo foi descoberto pelo grêmio estudantil, que o encarregou de uma Coluna no seu periódico.

Graças à criatividade, à originalidade e ao bom cunho português, seus contos e crônicas conquistaram estudantes e professores; e a tal ponto, que nomes como Homero, Virgílio, Ovídio e Dante deixaram os claustros acadêmicos e se vulgarizaram até entre os alunos das outras Faculdades, o que fez com que a procura por esses ícones redobrasse os afazeres de mais de uma bibliotecária.

Como os textos de Pedro Garrido eram cada vez mais lidos, apreciados e repassados para além dos muros da universidade, um dos seus contos, o que elegera Machado de Assis como personagem principal, acabou chegando às mãos de Carlos Sampaio, seu colega de classe no colégio e o líder das cavalgaduras que com ele praticavam bullying.

E se é verdade que esse autêntico representante do obscurantismo desdenhou do que leu, também é exato afirmar que ficou mordido de inveja ao identificar o autor com a sua saudosa vítima.

Alheio a essa urticação, Pedro Garrido prosseguiu com determinação e brilhantismo, formando-se Summa cum laude para regozijo de sua família, dos demais alunos e de todo o corpo docente. – O seu TCC foi sobre a influência dos Clássicos em Os Lusíadas.

Como corolário aos seus méritos, mal se iniciavam as férias e ele já recebia uma atraente proposta para lecionar Literatura em uma universidade particular.

Ora, como o seu sonho se tornava realidade; como precisasse bancar a Pós-graduação; e como a paciência de sua noiva não se estenderia para além do Mestrado, Pedro Garrido não titubeou em aceitar o emprego.

Não se poderia descrever a emoção de que foi tomado quando assinou aquele contrato!

Mas como o júbilo não se bastaria à total recuperação das energias, Pedro Garrido e sua futura esposa decidiram viajar. E depois de muito pesquisarem, escolheram um lindo chalé, em uma acolhedora cidadezinha montanhesa.

A viagem foi tranquila. E como chegassem ao centrinho, que, apinhado de turistas e todo iluminado, convidava os amantes a curtirem o frio, os apaixonados concordaram que um bom tinto e um fondue de queijo seriam indispensáveis.

Depois de caminharem um pouco, agarradinhos, toparam com um local muito aconchegante. E decidiram entrar.

Por sorte, havia uma única mesa disponível. E o maître os conduziu com toda solicitude.

Pedro Garrido não poderia sentir-se mais afortunado!... As férias apenas começavam; ao retornar, aguardava-o um bom emprego; sua escrita já caminhava para o terceiro capítulo do romance de estreia; e estava prestes a desfrutar de muitos jantares românticos. Realmente, os bons ventos sopravam fortes nas velas do seu destino, e não havia quem divisasse nuvens acinzentadas no horizonte.

A borrasca, contudo, pode sobrevir de inopino e dos pontos mais improváveis do oceano. Pois não é que na mesa ao lado sentava-se um casal, cujo varão era ninguém menos que o troglodita que atazanara Pedro Garrido durante o ensino médio? E se este não o reconheceu, visto que aquele lhe dava as costas, não se pode dizer o mesmo de Carlos Sampaio, tão logo girou a cabeça buscando o garçom.

Súbito, lembranças deliciosas ressurgiram, e uma vontade louca de retomar as velhas práticas tomou conta do antigo desafeto.

Entretanto, a adolescência ficara para trás. E como eram homens feitos, estavam acompanhados e em lugar público, aquele desejo teve que ser contido.

Só que à medida que o tempo passava, a vileza de Carlos Sampaio só fazia aumentar, o que já incomodava até a sua parceira, que percebia não ser mais o centro das atenções.

Indagado sobre o que acontecia, o ex-perseguidor resolveu contar tudo o que impusera ao seu vizinho. Mas ao contrário do que esperava, risadas compartilhadas, o que ouviu foram desaprovações, o que o deixou bastante contrariado.

As terrinas de sopa de cebola chegaram. E enquanto comentavam o quão deliciosas estavam (receita tradicional francesa), a mente de Carlos Sampaio dividia-se entre as respostas à namorada e as lembranças das torturas impostas a Pedro Garrido – e se continha para não gargalhar.

De repente, Carlos Sampaio não se aguentou e, “sem querer”, deixou a colher escapar da mão. Ao se abaixar para pegá-la, virou o rosto para a mesa do lado e, fingindo surpresa, interpretou o reencontro entre velhos colegas.

Pedro Garrido não se demorou a recordar do malfeitor. E um profundo mal-estar tomou conta do seu coração. Sequer teve tempo para pensar em como reagir, pois o ator levantou-se e foi abraçá-lo. Em seguida, todos se cumprimentaram – A namorada do brutamonte já lhe sentia a má-fé; e se portava com a polidez possível.

Ao contrário do farsante, que, efusivo, relembrava o convívio, gesticulava e ria com prazer, Pedro Garrido sorria forçado, respondia com monossílabos e mal o encarava.

E para que a comédia fosse ainda mais verossímil, Carlos Sampaio não se esqueceu de mencionar que seu irmão caçula cursava engenharia na mesma universidade em que Pedro Garrido se formou, e que, por força dessa coincidência e pelo prestígio alcançado pelo novo escritor, chegara às suas mãos um exemplar daquele conto protagonizado pelo Bruxo do Cosme Velho. E finalizava parabenizando-o muito, pois nunca lera texto tão criativo, original e aprisionador.

Esse elogio, digno de ser encenado nas mais célebres ribaltas, tirava o prumo de Pedro Garrido. Afinal, se Carlos Sampaio sempre foi o seu algoz, como se deparava, agora, com tanta mudança de caráter?

É fato, porém, que Pedro Garrido aprendera que as pessoas podem, sim, melhorar-se com os anos. Seria esse o primeiro caso concreto a experimentá-lo?

Também é correto afirmar que, na Faculdade, ele nunca desprezou um punhado de confetes. Aliás, a cada vez que lhe aplaudiam os textos, mais envaidecido, estimulado e confiante ficava.

Por força dessas matrizes, Pedro Garrido baixava a guarda, e cedia à apetitosa isca.

Mesmo que o peixe já tivesse sido fisgado, é de boa técnica, muitas vezes, que se deixe correr a linha... Foi quando Carlos Sampaio sugeriu juntarem as mesas.

A namorada do pseudo-admirador, no entanto, porque percebesse o seu ardil, bem que tentou desestimular a união, objetando que os pombinhos gostariam de continuar a sós – o outro semblante feminino aquiescia.

Mas diante da insistência do enganador, que fazia questão de colocar as conversas em dia, e da postura ambígua de Pedro Garrido, um balaio em que se chocavam a privacidade possível e ego passível de incenso, as mulheres não tiveram alternativas; em particular porque Carlos Sampaio, tomando a iniciativa, puxou sua mesa e a colou à outra.

Como os recém-chegados não tinham feito os pedidos, o falso amigo não se fez de rogado e recomendou a sopa de cebola. E porque ele e seu par afirmassem que estavam divinas, os noivos abriram mão do fondue e pediram mais duas terrinas.

 Para que o clima ficasse bastante descontraído, Carlos Sampaio, mesmo sem saber se bebiam álcool, tratou de pegar a sua garrafa e encheu de tinto as taças vazias. E como recebesse sorrisos em troca, deram-se ao brinde inicial.

A conversação, de início tímida, foi ganhando ritmo.

Tão logo chegaram as iguarias, Pedro Garrido fez questão de pedir mais uma garrafa do mesmo vinho. E as taças foram erguidas pela segunda vez.

O ambiente se tornava cada vez mais amistoso; e a tal ponto, que a acompanhante de Carlos Sampaio deixava da sua prevenção e se revelava uma ótima piadista.

E como quisesse que seu peixe pensasse que poderia continuar nadando livremente, o ardiloso pescador perguntava se ele já tinha publicado algum romance, pois se fosse tão bom quanto o conto que lera, compraria um exemplar assim que retornasse à capital.

Pedro Garrido sentiu-se lisonjeado. Aduziu, no entanto, que apesar de todos os feedbacks positivos que recebera até o momento – já ganhara vários prêmios literários –, não daria para afirmar, cem por cento, que seu romance seria um sucesso meteórico; mesmo que adorasse o que escrevia.

E se o ouvinte interpretava extremo interesse, de igual forma o convencia de que, mesmo inacabado, seu livro já o deixava com água na boca.

Dessa forma, o iludido assegurou que o avisaria quando o concluísse; e os namorados prometeram não faltar à noite de autógrafos.

Pedro Garrido perguntou ao “novo admirador” o que fazia da vida.

Carlos Sampaio respondeu que era sócio majoritário de uma grande lotérica no centro da cidade, batizada de Buraco da sorte. E, abusando da indelicadeza, afirmou que, ao contrário da dúvida que paira sobre o escritor iniciante, sua remuneração era certa, e seus lucros, inevitáveis. Afinal, fizesse sol ou chuva, ele ganharia com os bilhetes e as apostas, com as comissões que incidem sobre a venda de outros produtos e pelo recebimento de contas de telefone, gás, luz, etc. – Dita a localização, e Pedro Garrido se lembrou de que, vez por outra, passava por lá e fazia uma fezinha.

Como percebesse que essa cutucada bambeava levemente o humor do seu peixinho, Carlos Sampaio decidia-se por começar a recolher a linha. Foi quando passou a relembrar do bullying que praticara contra ele.

E a cada cena descrita – por sinal, com requintes de detalhes –, mais risadas dava e mais se comportava como se estivesse agradando.

Sua namorada, porém, despertou para a realidade no mesmo instante em que lhe ouviu a primeira recordação. E ficou sem saber o que fazer, tamanha a vergonha que a possuía.

A alma gêmea de Pedro Garrido – para quem nunca contara sobre o bullying –, e que no início até sorria, pois pareciam lembranças engraçadas revividas por velhos amigos, tocava-se de que tudo tinha sido verdade, quando, ao se virar, notou a profunda mudança na fisionomia.

Pedro Garrido empalideceu. Os lábios estavam cerrados; os olhos, fixos no covarde, já se umedeciam; e sua mão direita tremia sobre a mesa, depois que lhe caiu a colher.

Constatado o estrago, Carlos Sampaio não se furtou em dar mais uma paulada. E o fez afirmando que era tão certo continuar a ganhar dinheiro ao final de cada mês quanto era inevitável levar à sua boca mais uma colherada de sopa de cebola – e caprichou na gesticulação.

É desnecessário mencionar que não havia mais clima para continuarem o jantar.

Pedro Garrido e sua noiva levantaram-se em silêncio. E antes de irem em direção ao caixa, deixou claro que pagaria metade da conta. E se foram.

Carlos Sampaio ainda teve ânimo para pedir sobremesa. Mas não conseguiria apreciá-la como pretendia, pois teria que aguentar bem mais de uma reprimenda.

E se a lua cheia prosseguiria em sua vereda celeste convidando os jovens ao amor, naquela noite, pelo menos, dois dos muitos casais não lhe responderiam ao chamamento.

Pedro Garrido e sua paixão decidiram antecipar a volta para casa. Não valia a pena correrem o risco de reencontrarem Carlos Sampaio.

            Não obstante essa decisão, as férias ainda estavam no início. E sempre haveria um quarto à disposição deles na casa de praia do sogrão.

E para que não tivessem que passar horas explicando o retorno antecipado, resolveram pôr a culpa em um surto de carrapatos que tomara conta da cidade. E que ninguém se preocupasse, pois o dinheiro seria devolvido sem tardança.

            Por fim, como não queriam reavivar os dissabores por que passaram, prometeram não mais tocar nos assuntos bullying e Carlos Sampaio.

            Seguiram-se as semanas de descanso e os prazerosos bate-papos à beira-mar; sendo que as caipirinhas e as porções de camarões fritos degustados sob os guarda-sóis foram essenciais à recuperação física e mental dos noivos.

            Terminadas as férias, e de volta ao seu apartamento, Pedro Garrido lembrou-se de que deixara algumas pendências para serem resolvidas. Além da dispensa que estava às moscas, teria que trocar duas lâmpadas queimadas, consertar uma torneira que pingava e comprar veneno para acabar com as formiguinhas que adoravam passear sobre a pia da cozinha. Sendo assim, dirigiu-se, à tarde, ao centro da cidade, onde já era freguês de uma loja especializada.

            Mas se não se esquecera dessa loja, certo estabelecimento tinha-se apagado de sua memória...

E quando dele se aproximou, notou o desapontamento e as reclamações de algumas pessoas, que quiseram apostar e pagar as suas contas, mas deram com as portas de aço desenroladas.

Concatenando as ideias, Pedro Garrido recordou a conversa que tivera com Carlos Sampaio naquela fatídica noite... Tratava-se da Buraco da sorte.

E um frio antártico subiu-lhe pela espinha!...

            Essa gelidez, entretanto, logo passou, pois a ordem judicial, afixada no mesmo dia e pela manhã na porta da casa lotérica, demonstrava que as chances de revê-lo naquele dia seriam mínimas – era provável que estivesse implorando ajuda ao seu advogado.

Neste exato momento, as palavras ditas e encenadas por Carlos Sampaio naquele restaurante nas montanhas, equiparando a certeza de se ganhar dinheiro com a de se levar à boca uma colherada de sopa, e que, malgrado o seu esforço por esquecê-las, ainda lhe surgiam como vultos agourentos, perdiam para sempre o seu poder de humilhar.

Por força desse insight, uma ideia lhe vinha à mente. E ele puxou de uma caneta...

Em seguida, resolveu adiar as compras, e retornou às pressas para a sua residência.

Já defronte à tela do computador, começou a escrever um conto.

Sem dar nomes aos bois, Pedro Garrido iria recontar os acontecimentos por que passou, desde o bullying que sofreu quando jovem até o reencontro com o maior dos seus fantasmas. Por fim, e com o auxílio dos Clássicos, Carlos Sampaio receberia uma lição que por certo jamais esqueceria.

No dia seguinte, Pedro Garrido contatou o responsável pelo jornal do grêmio estudantil da sua Faculdade e perguntou se ainda teriam interesse em publicar mais um dos seus contos. A aceitação foi imediata. E ele o enviou por e-mail.

Passados poucos dias, não apenas o autor receberia o seu exemplar, mas, também, o caçula da família Sampaio, que ainda não se formara e que não deixara de admirá-lo.

E como previra Pedro Garrido, após ouvir do irmão sobre a incrível semelhança entre a ficção e o que acontecera à sua lotérica, Carlos Sampaio, muitíssimo desconfiado, agarrou o jornalzinho e foi àquele texto.

Depois de alguma leitura, o arrogante não tinha dúvidas sobre quem eram, de fato, os personagens principais. E até bateu palmas para Pedro Garrido pela coragem de se expor daquela maneira.

Mas se Carlos Sampaio se deliciava a cada período, seu bom humor mudaria assim que passasse a ler o final da história.

Pedro Garrido imaginou que o protagonista recebia um telefonema do seu funcionário avisando que a lotérica tinha sido fechada por ordem do juiz.

Ato contínuo, o vilão quase teve um enfarte, pois via secar a sua mina de ouro. – Por coincidência, foi isso mesmo que aconteceu a Carlos Sampaio.

Mas como não tinha chegado a sua hora, ele conseguiu recuperar as forças, e o raciocínio, e pediu mais detalhes ao empregado.

O pobre moço, então, achou melhor fotografar a ordem de lacração e enviá-la pelo celular.

Recebida a foto via WhatsApp, o patrão precisou ampliá-la, pois não queria perder nenhuma informação.

E depois de se inteirar sobre o conteúdo da decisão, notou, logo abaixo, em letra cursiva e à caneta azul, a frase Tra la spica e la man qual muro he messo.

Ele só não deu de ombros porque a fonte colocada entre parênteses chamava muito a atenção – Os Lusíadas, Canto Nono, Estância 78.

Não que essas inserções fossem mais importantes do que a desgraça que o abatia. Mas como só saberia o que fazer depois de consultar com o seu advogado, e porque a curiosidade era a sua marca registrada, a vítima da interdição estatal não se conteve e foi ao Google pesquisar.

O fato de ser um verso escrito por Petrarca e transcrito por Camões em nada mudaria a vida do desafortunado. Mas a sua tradução, esta, sim, faria com que Carlos Sampaio se arrependesse para sempre do gesto que um dia praticou – Da mão à boca se perde muitas vezes a sopa.

 

 

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